Repórter / fkhoury@redegazeta.com.br
Publicado em 4 de junho de 2025 às 17:11
A palavra “transgredir” significa ir além dos termos ou limites. No mundo da arte, da moda, da política - e da vida - isso representa mais do que um ato de desafio. É uma necessidade diante de estruturas que insistem em manter tudo como sempre foi. E por incrível que pareça, esse assunto tem tudo a ver com empreendedorismo.
Antes de mais nada, é preciso ter em mente que falar de moda como forma de expressão não é novidade. E a busca por identidade e estilo também surfam nessa mesma onda. Mas se me permitem, caros leitores, este jornalista precisa trazer uma reflexão: seria possível protestar apenas na forma de se vestir?
A resposta pode até parecer clara, um pouco óbvia, mas há anos empreendedores capixabas usam a moda como protesto. A estilista e multiartista Gabi King é uma prova disso. Aos 55 anos, sendo 30 trabalhando com moda, a empreendedora sabe bem do poder dos microempreendedores ligados à moda alternativa. No início dos anos 2000, a estilista foi uma das pioneiras ao montar uma feira que reunia empreendedores nesse ramo: o “Supermercado da Moda”.
Gabi diz que a incubadora abraçava as pessoas que queriam fazer moda logo depois que saiam da faculdade. "Sempre foi um local de mistura, onde todas as pessoas sempre foram super aceitas. É uma zona de conforto".
E quem diria que em 2025, o cotidiano do capixaba estaria tão plural. O varejo capixaba de moda cresceu 6,1% no último ano, quase o dobro da taxa registrada no país, que foi de 3,5%, conforme aponta o Observatório da Indústria.
crescimento do varejo capixaba em 2024
São diversas pessoas querendo criar e gerar conexão, principalmente, com os conterrâneos. E sim, esse ramo é extenso e promissor. Só que o papo hoje não é sobre moda praia ou streetwear.
A estilista e multiartista Gabi King é uma das pioneiras no ramo da moda alternativa no ES
Não é mera coincidência: estamos em junho, mês do orgulho LGBTQIAP+. Orgulho que se reflete em uma luta que, mais uma vez, esbarra no mundo da moda. Para a performer e travesti capixaba Nataly Kuplich, as roupas sempre acompanharam suas fases da vida.
“Foi dentro da ballroom - movimento de resistência LGBTQIAP+ criado nos anos 1970 - que eu aprendi a costurar, usar cola quente, ir a brechós, customizar. A falta de dinheiro e de acesso mostra como a normatividade cis não nos serve. A transição não é só mental - tudo muda: o ciclo, o que se pensa, o que se veste. A roupa torna tátil o que sentimos. É expressão, mas também é evolução”, conta.
Para o estudante de Produção de Moda e Design de Moda, Breu Ramos, a moda representa tranformação - capaz tanto de alienar quanto de libertar.
Estamos falando de roupas que levam autenticidade para aqueles que - por muitas vezes - se viram perdidos dentro de si, como o produtor de moda Dante de Castro.
A coordenadora da Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (GOLD), Deborah Sabara, defende que a moda pode ser uma ferramenta poderosa de identidade, pertencimento e transformação social, especialmente no Espírito Santo. Para a ativista, é essencial que os criadores capixabas recebam visibilidade e reconhecimento.
"Utilizar a moda do meu estado é importante para criar vínculo com a ancestralidade, mas também com um lugar de pertencimento. A moda também pode fazer isso com a gente, ressignificar e recriar o tempo todo. E é de suma importância garantir visibilidade para além das possibilidades de ajudar esses artistas da moda capixaba", diz.
Segundo dados de uma pesquisa entre o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Datafolha, compilados em dezembro de 2024, 24% do público LGBTQIAP+ está inserido no empreendedorismo - o que representa cerca de 3,7 milhões de pessoas. Para 19% delas, essa é a principal ocupação profissional.
O levantamento mostra ainda que esse movimento está em expansão: 11% das pessoas LGBTQIAP+ estão atualmente envolvidas na criação de um negócio, enquanto 20% planejam empreender nos próximos três anos. Por outro lado, 44% afirmam não ter e nem pretendem ter um negócio próprio, evidenciando que o empreendedorismo, apesar de relevante, ainda não é uma realidade para todos.
A pesquisa também reforça a importância do empreendedorismo como estratégia de sobrevivência e afirmação de identidade em contextos de exclusão. Em muitos casos, criar um negócio não é apenas uma escolha econômica, mas uma forma de construir espaços mais seguros, diversos e inclusivos para trabalhar e viver.
A ativista Débora Sabará destaca a necessidade de investimentos na cadeia produtiva da moda local. “Deve ser criado um incentivo na área, além da divulgação das possibilidades que já existem. Talvez um financiamento para iniciar essa atividade da moda capixaba. Esse incentivo financeiro pode acontecer não com a entrega direta de dinheiro, mas com a compra do que a pessoa precisa como maquinário e material de trabalho”.
Com base nessa ideia, a Associação Gold pretende tirar do papel um projeto ambicioso chamado a Fábrica dos Sonhos. “É um sonho construir uma fábrica para garantir o maior aproveitamento e a geração de renda com fabricação e costura de roupas do carnaval capixaba”, revela.
Na periferia, a moda também é uma poderosa ferramenta de comunicação. Segundo a estilista e microempreendedora Karol Abouts, moradora do Bairro da Penha, em Vitória, o vestuário nesse contexto reflete vivências, traduz criatividade diante das limitações impostas pelas desigualdades e afirma a identidade de quem, muitas vezes, é invisibilizado pela sociedade.
“Eu diria que a resistência existe pelo simples fato de você poder vestir o que quiser. A periferia tem um estilo muito próprio da moda, seja pela ostentação ou pela identidade. É mostrar que a periferia existe e tem um estilo. Eu mostro que é possível se vestir bem com pouco. Sinto que a moda é identidade, ainda mais para pessoas pretas e periféricas”.
O empreendedorismo negro representa uma força expressiva na economia brasileira. De acordo com dados divulgados em dezembro de 2023 pela pesquisa do Sebrae com base na PNAD Contínua do IBGE, pessoas negras são responsáveis por 52,4% dos negócios no Brasil. No Espírito Santo, esse índice é ainda mais alto: 55,9% dos empreendimentos são comandados por empreendedores negros. E mesmo assim, as dificuldades são evidentes.
"Ainda é muito difícil empreender nessa área. Você precisa ter um propósito muito grande na sua vida para não desistir. Por muitos anos eu tive que ter um outro emprego para manter a minha marca. O meu sonho é poder sustentar a minha mãe com a moda", afirma Karol.
Em um pequeno ateliê em Vitória, a moda ganha novos significados. Gabriella Vasconcelos, Daniela Neves e Sofia Viana, fundadoras da marca Mira, transformam tecidos em histórias, roupas em expressão, e coleções em manifestações de identidade.
A marca nasceu do desejo de vestir peças únicas sem precisar recorrer ao alto custo das grandes etiquetas - e de repensar o impacto ambiental de uma das indústrias mais poluentes do mundo.
"Começamos com a proposta de reaproveitar peças. A ideia é querer fugir do consumo desenfreado e aumentar a vida útil das roupas, fazer tudo virar outra peça", conta Gabriella, que começou vendendo em um brechó online.
Na marca não existe padronização de tamanhos. As roupas são ajustáveis, pensadas para acolher diferentes corpos e histórias. O processo é artesanal e lento: a marca lança apenas duas coleções por ano, prezando pela originalidade, sustentabilidade e conexão com o público.
E essa parece ser a moda da vez. A marca capixaba Cria Upcycling vem com essa mesma proposta: empreender no ramo sustentável. O termo “upcycling” significa reutilizar peças descartadas, em novos produtos com maior valor agregado.
“Surge da ideia de ter uma identidade própria através do seu estilo. É você dar sentido ao que já existe. Vem muito desse grito de quem não tem condição de comprar a própria roupa, mas que entende que você pode criar algo de valor naquilo que não tem valor. Quem consumir o meu produto também vai ajudar uma artista independente que trabalha com isso de forma muito responsável”, revela Joelma Silva, idealizadora da marca.
Ideias que, geralmente, partem de pequenos empreendedores. São costureiras, artesãos, criadores de peças sob medida e artigos de vestuário que, na maioria das vezes, trabalham de casa, imprimindo um forte caráter artesanal e autoral ao setor. Das 9.894 empresas industriais registradas no estado, 75% são microempreendedores individuais (MEIs) - um dado que reforça o papel do ‘pequeno’ no fortalecimento dessa cadeia.
Poderíamos dizer que a Gabi King abriu caminhos. Em 2025, duas décadas depois do ‘Supermercado’, a empreendedora Valentina Saleme, de 21 anos, busca seguir a mesma concepção de juntar microempreendedores capixabas. Chamada “Rolê da calçada”, a feira acontece uma vez por mês em lugares públicos e estratégicos.
Valentina ainda reforça: "O legal não é só a venda, mas o contato, conhecer eles. Tem desde bolsas, calças, vestidos até cosméticos naturais".
4ª edição do "Rolê na Calçada", em Vila Velha
No contexto industrial capixaba, a moda representa cerca de 10% da atividade produtiva, um número significativo considerando que é majoritariamente formado por MEIs e negócios de menor escala. Além disso, a presença das mulheres no comando do setor chama atenção, representando 74% - uma porcentagem expressiva.
A estilista britânica Bella Freud, bisneta de Sigmund Freud - pai da psicanálise-, esteve no Brasil no último mês para participar de um evento no Rio de Janeiro. Durante sua palestra, Bella explorou a interseção entre moda e psicologia, destacando como as escolhas de vestuário refletem aspectos profundos da identidade e da psique humana. "Por que você escolheu as roupas que está vestindo hoje?", indaga em seu podcast.
Sob um contexto regional, a consultora de moda capixaba Elian Ramile acredita que o surgimento das primeiras faculdades de moda no Espírito Santo, na década de 1990, contribuíram para uma mudança cultural e econômica do setor no estado.
Ainda segundo Elian, o mais importante é dar consciência e não julgamento. "É dar voz a pessoas. Tudo que acontece com a sociedade impacta na moda e vice e versa. Você se veste não só com roupas, mas de uma postura ideológica”, complementa.
De acordo com a gerente da unidade de Competitividade do Sebrae/ES, Ana Karla Macabu, uma das maneiras de fomentar o trabalho desses microempreendedores é o programa Plural - que desde 2024 atua com o objetivo de promover o empreendedorismo como mecanismo de transformação social, ampliando os negócios liderados por pessoas de grupos sub-representados na sociedade.
Segundo Ana, a indústria da moda no Espírito Santo tem se consolidado como um setor estratégico não apenas para a economia local, mas também como um espaço de resistência, inovação e protagonismo social.
Mais do que seguir tendências, a moda no Espírito Santo está ocupando um lugar de construção identitária, geração de renda e valorização cultural. É na costura feita em casa, no ateliê colaborativo, nas feiras de rua e nas plataformas digitais que a moda capixaba reafirma seu papel: o de uma expressão criativa profundamente conectada com o território, com as pessoas e com o futuro que deseja construir.
Em tempos de vozes silenciadas e normas engessadas, quem escolhe transgredir não apenas rompe barreiras: constrói novos caminhos. Entre outras palavras, é ter coragem de ir além do que a sociedade impõe.
O mercado da moda capixaba como forma de resistência
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