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Publicado em 14 de outubro de 2024 às 15:57
Basta pisar em solo paraense no segundo final de semana de outubro que uma energia inexplicável toca o coração. É tempo de Círio de Nazaré, uma celebração religiosa e cultural em homenagem à padroeira do Pará, Nossa Senhora de Nazaré. Mas dizem que é impossível explicar essa magnitude, é preciso viver. E eu vivi.>
Já que explicar o Círio parece ser, de fato, um desafio, vou ao menos tentar traduzir meu sentimento. Por isso peço a você, caro leitor, uma liberdade poética para este jornalista sair um pouco do script. Embarquei de Vitória, no Espírito Santo na sexta-feira, 11 de outubro, ainda pela manhã.
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No Aeroporto de Belém, um roda de Carimbó, dança tradicional paraense, recepcionava quem chegava na terra do açaí e do tacacá. A programação do Círio é extensa e conta com 14 marchas religiosas. Na verdade, começa uma semana antes do dia oficial, que neste ano foi no domingo, 13 de outubro. Mas depois chegaremos lá.
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Pois bem, ao andar pelas ruas históricas da Cidade Velha ou no tradicional Mercado Ver-o-Peso, não havia uma pessoa que não desejasse “Feliz Círio”, como forma de cumprimento. Seria o Natal dos paraenses? Essa resposta eu deixo para vocês.>
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Enquanto isso, milhares de romeiros de todo Pará e estados próximos iam chegando de suas peregrinações. Uns a pé com cajado, outros de bicicleta, mas todos com o mesmo objetivo: agradecer a Nossa Senhora de Nazaré pelas graças alcançadas. O empresário José Rodrigues, por exemplo, percorreu 106 quilômetros de bike para agradecer.
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Histórias como a do José são comuns por toda parte. E depois de muito esforço e cansaço, os romeiros são acolhidos em um espaço chamado Casa de Plácido, local inaugurado em 2009, com a finalidade de prestar cuidados necessários para finalizarem suas missões. Tudo voluntariado. Serviços como lava pés, alimentação, massagem, ambulatório e banheiros ficam à disposição 24 horas. Confesso que foi uma das maiores demonstrações de amor ao próximo que já presenciei. >
O segundo dia de Círio foi repleto de cerimônias. Pela manhã, visitei o Museu do Estado do Pará, que abriga a capela Lauro Sodré - local onde aconteceu a primeira procissão do Círio de Nazaré, em 1793. Hoje o espaço é aberto ao público e guarda relíquias e traços da história da festa mais tradicional do Estado. >
Logo na frente do museu, uma música animada chamou minha atenção. Era a passagem de som do "Arrastão do Círio", do Arraial do Pavulagem. Essa é uma das festividades mais coloridas, animadas e esperadas pelos apreciadores de cultura. É possível curtir ao som dos ritmos da Mazurca, Retumbão, Samba de Cacete e Rojão. Além disso, a Barca de Miriti (palmeira que imita um isopor ecológico) abrilhantou o evento.>
Por volta das 11h, chegamos na Estação das Docas - complexo gastronômico e cultural - para acompanhar a chegada da Romaria Fluvial. Inclusive o presidente Lula foi a bordo do navio da Marinha, levando a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. A procissão pelo rio atraiu mais de 200 embarcações neste ano, totalizando cerca de 50 mil fiéis.>
Das Docas, a imagem da santa seguiu por uma Moto Romaria até o Colégio Gentil Bittencourt, perto da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. É de lá que sai uma das procissões mais aguardadas de todo Círio, a Trasladação. E podem acreditar: eu não tinha ideia do tamanho que seria essa experiência. >
Aos poucos era possível ver algumas das ruas mais famosas de Belém sendo tomadas por fiéis, como as Avenidas Nazaré e Presidente Vargas. E diante de todas as manifestações de fé que pude presenciar, nenhuma me chamou mais atenção do que as cenas que vi na Trasladação e na manhã do Círio: pessoas caminhando mais de 3 km de joelhos. >
Não sei bem dizer o que senti. Era uma mistura de admiração e preocupação, afinal elas estavam fazendo um sacrifício. O rosto de cada um que pagava promessa dessa forma expressava um amor incondicional por uma santa que havia atendido a sua prece mais íntima. Naquele momento a dor se transformava em força, o suor em esforço, e o cansaço em profundo agradecimento.>
“Vim pela saúde da minha filha. Só dela estar comigo, depois da gente ter enfrentado tudo que passamos. E hoje, ela está com saúde. Não tem nada que pague. Para mim, o Círio é a maior demonstração de amor ao próximo que poderia acontecer no mundo”, disse uma romeira (sem identificação) ao cumprir a procissão de joelhos. >
O trajeto desses romeiros é feito sobre papelão ou blocos de borracha para amenizar o impacto. E ao longo do percurso, pessoas próximas e voluntários vão ajudando com o fornecimento de suprimentos, como água, e apoio psicológico. Um ponto fundamental no processo, que traduz da forma mais genuína a palavra compaixão. >
Para ter ideia da gigantesca proporção, o Círio reúne mais de 2 milhões de pessoas nas ruas de Belém. Quem fica no meio da procissão acaba sendo praticamente levado pelo movimento orgânico do caminhar. Na frente da santa, cinco estações simbolizam a corda que protege a berlinda (local onde fica Nossa Senhora). >
No total, são 400 metros de corda. E ir segurando essa estrutura pode ser um dos maiores desafios de todo o Círio. Não só pela dificuldade em garantir um lugar, mas por sustentar o peso do caminho sendo espremido por pessoas de todos os lados sob um calor de mais de 30 °C. >
Foi em uma dessas que vi a cantora Gretchen ali no meio segurando a corda. Outros famosos também já tiveram essa experiência, como o humorista Paulo Vieira. E por falar em celebridades, preciso citar um dos locais mais cobiçados da festa: a Varanda da Fafá de Belém. E eu consegui dar uma passada. Personalidades como a atriz Dira Paes, Rafa Kalimann e Alane (ex-BBB 24) marcaram presença.>
“Eu acho que o povo capixaba ia se identificar com a conexão que existe do Círio com uma fé que abrange todas as religiões. É uma fé que transcende esse momento. Se você é de lá, ou se você é de cá, é um sentimento de amor. É um sentimento de acolhimento, que todo mundo precisa”, destacou a atriz Dira Paes.>
“Isso aqui é muito especial, é muito inexplicável. Eu ouvi no ano passado, que foi a minha primeira vez aqui, que eu sairia tentando explicar para as pessoas o que é o Círio. Qual é a emoção, o que a gente extrai. E todo mundo falou: ‘Você não vai conseguir’. E de fato, eu não consigo. É só vivendo”, contou Rafa Kalimann.>
Entre anônimos e famosos, uma coisa é certa: todos são tocados pela fé. E quando Nossa Senhora de Nazaré passa bem na sua frente, uma energia única e divina faz você entender o porquê não há limites para devoção. Fiquei arrepiado, emocionado e grato por viver aquele momento.>
Por fim, o dia mais importante do Círio de Nazaré. No sábado, na Trasladação, a santa saiu da Basílica e seguiu até a Catedral da Sé. No domingo, ela faz o caminho inverso. Era por volta das 7h quando a imagem começou a percorrer o trajeto. E ao longo dos 3,6 km de percurso, era possível ver os carros de promessa e fiéis com objetos na cabeça representando graças alcançadas. >
“Isso aqui foi uma conquista, uma bênção. Foi a minha casa, que eu já pago há mais de quatro anos essa promessa. É uma tradição no Círio trazer os objetos representando a graça. E nesse ano ainda coloquei a minha moto”, disse uma romeira. >
Em 2013, o Círio de Nazaré foi registrado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). E não é por menos, o evento - principalmente no domingo - remete o que Belém tem de melhor: sua cultura. A título de curiosidade, os paraenses costumam chamar carinhosamente a santa de 'Naza' ou 'Nazinha'. São tantos elementos que fica difícil escrever cada detalhe desse momento.>
A chegada da imagem à Basílica fecha com chave de ouro mais um ano de muita devoção. Milhares de fiéis acompanharam a missa de encerramento, com a certeza de que Nossa Senhora de Nazaré os abençoou durante todo o Círio. Por sinal, a palavra Círio significa “grande vela”. Ou seja, representa a luz na vida de cada um que aqui esteve. Inclusive a minha.>
* O repórter viajou a convite do Instituto Cultural Vale, um dos patrocinadores do Círio de Nazaré>
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