Publicado em 14 de março de 2020 às 17:40
Por Luanna Esteves>
Com oito filhos na canoa, mais um na barriga, dona Felicidade desceu o Rio Santa Maria do município de Santa Leopoldina até Vitória para tratar a febre amarela do marido. Isso nos primeiros meses de 1935. Ele não resistiu e faleceu. Sem conhecer ninguém nem ter casa para morar, ela recomeçou a vida do zero, arregaçou as mangas e se tornou referência de mulher na Ilha das Caieiras, tanto que virou nome da principal rua do bairro: Felicidade Corrêa dos Santos. >
Preta, pobre, mulher, analfabeta, dona Felicidade fez história como uma grande matriarca, já que era ela quem sustentava a família na época em que o Código Civil pregava que só o homem era o responsável pela casa. Além de ser benzedeira, conquistou respeito com sua determinação para o trabalho e para criar os nove filhos, em um período de muita escassez. >
Você tá vendo a gente aqui hoje? Somos simples, mas somos ricos, minha filha. Nós passamos muita dificuldade quando crianças. Tirava a roupa de noite e lavava para vestir no outro dia cedo, porque só tinha uma peça, descreveu tia Laura, como é carinhosamente conhecida, com 89 anos, uma das filhas ainda vivas de dona Felicidade. >
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O tia veio com um grande feito. Laura Corrêa ajudou a fundar a primeira creche de Vitória, a CMEI Magnólia Dias Miranda Cunha, para ajudar mães que queriam trabalhar fora. >
Minha mãe era baixinha, mas era forte igual a gente, sabe?! Ela lavava roupa para fora, trabalhava para as famílias que eram mais bem de vida aqui na ilha e também vendia água. A gente ajudava, pois levava a lata dágua na cabeça, custava 300 réis na época, conta tia Laura. >
Dona Felicidade morreu em 1991, época em que a atividade do desfio de siri já se firmava como uma tradição. Por coincidência, o sustento da família Corrêa dos Santos sempre veio da água. O marido de dona Felicidade fabricava barcos, ela vendia água e lavava roupas e suas filhas e netas desfiam siri, fruto do mar. >
A tradição começou com a gente. No início, a gente desfiava para comer. Mas com o povo pedindo, passamos a vender no Mercado da Vila Rubim. E dava supercerto. Aí fomos passando adiante o jeito de desfiar, conta tia Laura, que é a desfiadeira mais antiga. >
Por limitações de saúde, hoje ela não desfia mais, assim como sua irmã caçula, tia Elza, de 84 anos. Mas antes de parar, passaram os conhecimentos para as filhas, noras e netas. Tem que ensinar que a gente não depende de ninguém eles é que dependem da gente, né?!, provoca, entre sorrisos, tia Laura. >
Simone Leal é de uma terceira geração de desfiadeiras e se orgulha de, há 20 anos, ter esse ofício como a principal fonte de renda da família. Não é só pelo dinheiro, mas também pelos valores. Nós, desfiadeiras, mantemos a tradição gastronômica de Vitória. E a gente não só desfia. Se precisar, a gente pesca, limpa, desfia, cozinha, vende. A gente faz de tudo, somos batalhadoras, guerreiras mesmo. E aprendemos com tia Laura e tia Elza a sermos independentes de homem, compartilha. >
Quando a reportagem comentou com Simone que só há 58 anos, com o Estatuto da Mulher Casada, foi abolida a regra social de que as mulheres não poderiam trabalhar sem autorização do marido, ela soltou um Deus me livre! bem alto. >
Já imaginou eu, Simone, ou alguma mulher da minha comunidade sem poder trabalhar, sem poder ter nosso próprio dinheiro? Impossível. Isso seria como uma prisão. >
Resgatando a história, os direitos da mulher são bem recentes. Apenas há 32 anos, a Constituição delibera que mulheres e homens têm os mesmos direitos, apesar de ainda ganhar 20% a menos que o homem para exercer a mesma função, segundo uma pesquisa do IBGE de 2019. Simone bate o pé e conclui: Pois é essa liberdade que nós, mulheres da Ilha, podemos ensinar. Tendo nosso próprio trabalho, a gente pode tudo. >
Na mesma década (1930) em que dona Felicidade batalhava para se reerguer sozinha na Ilha das Caieiras, em Vitória, em Guaçuí, no Sul do Estado, Emiliana Emery se tornava a primeira mulher capixaba a abrir uma fábrica, que produzia pães e doces. Mas como não só de pão vive a mulher, dona Emiliana foi a primeira capixaba a conseguir o título de eleitora e teve forte influência na emancipação política da sua cidade, quando o Código Civil da época (vigente desde 1916) pregava que a mulher só poderia trabalhar ou abrir uma conta no banco com autorização do marido. Separadas por alguns quilômetros e pela condição social, as duas lutavam por algo em comum: a independência financeira, o que era considerado afrontoso. >
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