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Heróis narram medo e as estratégias de guerra para evitar contaminação

Heróis narram medo e as estratégias de guerra para evitar contaminação

Empenhados em salvar vidas, profissionais da saúde relatam mudanças radicais no trabalho e na vida pessoal, mas não escondem medo da nova rotina imposta pelo enfrentamento ao novo coronavírus

Publicado em 9 de maio de 2020 às 06:00

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Layssa Batista Degli Esposti, ortodontista, 37 anos
Layssa Batista Degli Esposti, ortodontista, 37 anos. (arquivo pessoal)

Após horas de plantão, a técnica de enfermagem sente a boca seca. A roupa de proteção a deixa com fadiga. Num impulso, ela retira a máscara e toma um pouco de água. O alerta dos colegas a deixa preocupada ao perceber que pôs fim à sua sede no ambiente onde estavam sendo atendidos pacientes com a Covid-19. Ela acabou sendo afastada até a confirmação de que não estava com a doença.

A situação vivida por ela, que preferiu não ter o nome divulgado, é um dos muitos exemplos do quanto a mudança de rotina tem impactado os profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate ao novo coronavírus. Os desafios desses heróis reais vão além da convivência diária com o risco de contrair a doença e da necessidade de um uso bem maior de equipamentos de proteção (os EPIs).

Os profissionais estão passando por múltiplos dramas e, por isso, A Gazeta apresenta esta reportagem como forma de homenagear e agradecer os agentes que estão na batalha contra esse inimigo microscópico. A identificação de todos que solicitaram foi preservada.

Esses trabalhadores sofrem com o medo de transmitirem a doença para outras pessoas, principalmente seus familiares; com o crescimento do número de casos; em nem sempre terem as respostas para os pacientes; com o estresse de turnos de trabalho mais intensos, quando é preciso transmitir uma segurança nem sempre presente no coração. Temem a falta de equipamentos de segurança, o desemprego e até os dilemas morais.

“Tenho colegas que se desesperam quando chegam ao plantão e sabem que vão enfrentar 12 horas de trabalho. É visível nos olhos o medo. Não tem sido fácil”, relata uma enfermeira.

Lucas Padilha, médico de família e comunidade, atende na Unidade de Saúde de Jardim Camburi
Lucas Padilha, médico de família e comunidade, atende na Unidade de Saúde de Jardim Camburi. (Acervo pessoal)

A jornada começa com o uso dos equipamentos de proteção, que, embora necessários, tornam a rotina desgastante, como relata o médico anestesista Felipe Reuter. “O equipamento é mais pesado. Temos que usar óculos, máscara, gorro, capote impermeável, dentre outros EPIs, e não só em cirurgia. É preciso estar o tempo inteiro de máscara, com frequente uso de álcool. É desgastante ainda estar sempre se controlando para evitar contaminação”, desabafa.

A chamada desparamentação, ou seja, a retirada dos equipamentos de segurança, é considerado o momento mais crítico, pois é quando a contaminação pode ocorrer. “Você estava em um ambiente com nível alto de exposição, prestou assistência a um paciente com a Covid-19 ou com suspeita da doença e, neste momento, o vírus está no seu paramento, na luva, na máscara, no capote e é preciso estar alerta. Existe um rito a ser praticado, que sempre foi importante, mas que agora é vital”, relata Andressa Barcellos, presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Espírito Santo (Coren-ES).

MEDIDAS EXTREMAS

A preocupação, porém, não fica restrita ao local de trabalho. Quase todos temem ainda ser transmissores da doença para seus familiares, amigos, vizinhos. E para evitar, não são poucos os que decidiram adotar medidas extremas para protegê-los, como se isolar, mudar para outro apartamento, mandar filhos e pais para outra cidade e até deixar de ter contato mais íntimo com a pessoa com quem convive. “Não beijo minha esposa há dois meses”, relata um outro técnico de enfermagem.

Na próxima segunda-feira, dia 11, completam dois meses desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o planeta está enfrentando a pandemia de Sars-Cov-2, nome científico para o vírus. Até a última quinta-feira, o Espírito Santo já havia registrado um total de 3.988 casos confirmados, com 157 mortes. Desse total, 1.244 casos são de profissionais de saúde que foram infectados, sendo que dois deles morreram. E não há perspectivas de quando esse cenário poderá mudar.

Damaris Faian Bueno, oftalmologista, 47 anos
Damaris Faian Bueno, oftalmologista, 47 anos. (Arquivo pessoal)

Na prática, a expectativa é de mudanças ainda maiores na área médica, opina Paulo Gouvêa, conselheiro e coordenador do Comitê de Crise para o Enfrentamento do Coronavírus, do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES). Ele avalia que os cuidados com a proteção individual do profissional e do paciente vão ser ainda maiores, com a presença mais frequente de locais para lavar as mãos e a disponibilização de álcool em gel. Gouvêa cita como exemplo o atendimento emergencial há 35 anos, que passou por alterações por conta do surgimento da Aids.

“Naquela época, os profissionais se expunham muito mais. Hoje é inconcebível tocar em um paciente sem EPI para a mão. Mas ao longo das últimas décadas se negligenciou muito os cuidados com a via aérea. Agora tudo vai mudar novamente com essa nova zona de risco”, assinala.

Alterações que também já causaram impacto nos consultórios dos dentistas, que lidam diretamente com a mucosa da boca. Thiago Degli Esposti, 41 anos, periodontista e mestre em implantes, conta que a preocupação agora começa já na chegada do paciente. “Nossa preocupação tem sido começar a bloquear a transmissão na chegada do paciente ao consultório. Na porta já tem um espaço com hipoclorito para limpar a sola do sapato. Ele recebe um propé (meinha para calçar sobre o sapato). Dali, o paciente é orientado a ir ao banheiro lavar as mãos.”

Os cuidados se estendem não só aos profissionais que vão atender o paciente, mas também para a limpeza do consultório. “Como o equipamento que utilizamos pode fazer com que gotículas de saliva fiquem no ar, é preciso esperar um tempo para fazer a limpeza do ambiente. Então, temos feito revezamento de consultórios para garantir que não haja contaminação”, relata Esposti.

E, se não bastassem os desafios diários, muito técnicos e auxiliares de enfermagem encontram dificuldades ao final da sua jornada de trabalho, quando seguem para suas casas. O Coren tem recebido vários relatos de profissionais sendo hostilizados no transporte público, nos prédios onde residem, em padarias. E tem orientado aos profissionais da enfermagem que evitem usar o uniforme fora do local de trabalho.

Em uma das denúncias, um condomínio queria que a técnica de enfermagem utilizasse o elevador de serviço. Em outra, o profissional foi agredido com palavras dentro de um coletivo. “O problema tem sido mais frequente com quem utiliza o transporte público. Mas acreditamos que é a falta de informação”, pondera Andressa.

Thiago Degli Esposti, 41 anos, periodontista e mestre em implantes
Thiago Degli Esposti, 41 anos, periodontista e mestre em implantes. (Arquivo pessoal)

ALÍVIO E EMOÇÃO

Mas nem tudo são dificuldades. Para os que atuam há quase dois meses na contenção da pandemia, não há momento mais especial do que a liberação de um paciente que se curou da Covid-19. Prova disso são os diversos vídeos feitos em hospitais, com pacientes deixando o local sob aplausos dos profissionais. “Em qualquer doença, é muito bom ver o paciente ir para casa, recuperado. Mas nesta, chega a emocionar. É bom demais. Uma batalha vencida. É o resultado do trabalho de uma equipe, da qual faço parte”, conta outra técnica de enfermagem.

Neste momento em que profissionais são exaltados como heróis ou discriminados pelo medo da contaminação, outro momento especial ocorre quando eles estão afastados, com sintomas da doença, isolados da família para evitar a transmissão, mas recebem o resultado do exame não confirmando a presença do vírus. “É um alívio muito grande. Hoje vou poder abraçar meu marido e meu filho, e dormir na minha cama”, desabafa a técnica de enfermagem, sem economizar na alegria.”

Damaris Faian Bueno, oftalmologista, 47 anos
Damaris Faian Bueno, oftalmologista, 47 anos, com os filhos Paula e Gustavo. (Arquivo pessoal)

"ADOTAMOS MEDIDAS RÍGIDAS PARA EVITAR A CONTAMINAÇÃO"

A oftalmologista Damaris Faian Bueno, relata que está vivendo um momento em que todos estão com medo diante de uma doença que ainda está mostrando o seu comportamento. "Lidar com o desconhecido assusta muito", observa. Ela adminitra quatro clínicas de oftalmologia na Grande Vitória e a da Capital, com atendimento 24 horas , onde tem sido priorizado pacientes que não podem ficar sem acompanhamento para não agravar o quadro de suas doenças, com horários espaçados, dando prioridade para as urgências e emergências.

"Tenho medo de me contaminar e de contaminar outras pessoas, mas não posso deixar de atender. Adotamos medidas rígidas para evitar a contaminação, com cuidados que começam já na chegada à clínica, com espaçamento entre cadeiras. Uso cinco tipos de EPIs (óculos, gorro, luva, capote e máscara), além do jaleco, que lavo todos os dias. Nossos funcionários também utilizam proteção. Ainda assim, tem pacientes que insistem em não usar máscara e, quando você orienta sobre a necessidade e diz que é uma proteção, a pessoa acha ruim. Mas ainda não teve ninguém que se recusasse após longa conversa. Quando vou para casa, o cuidado não é menor e só entro na parte social da casa após retirar a minha roupa e tomar banho na área de serviço. E após o dia na clínica, tem a outra jornada, a de mãe, de professora. Tenho que entender de plataformas educacionais - que nem sabia que existiam tantas - , lidar com as demandas de dois filhos que estão isolados, sem poder sair, e que também ficam estressados longe dos amigos, dos familiares. Sem falar na rotina da casa. Costumo brincar com meus filhos que enquanto houver vida, há louça suja na pia. E como ainda estamos vivendo um período de insegurança, ainda não há perspectivas de quando essa situação vai se reverter, do que acontecerá na próxima semana.”

Thiago Degli Esposti, 41 anos, periodontista e mestre em implantes
Thiago Degli Esposti, 41 anos, periodontista e mestre em implantes. (Arquivo pessoal)

"NO CONSULTÓRIO E EM CASA OS CUIDADOS FORAM REDOBRADOS"

O periodontista e mestre em implantes Thiago Degli Esposti relata antes da pandemia já adotava medidas para evitar qualquer tipo de contaminação. mas que agora a preocupação tem sido em começar a bloquear a transmissão na chegada do paciente ao consultório. Na porta já tem um espaço com hipoclorito para limpar a sola do sapato. E ali mesmo o cliente recebe um propé (meinha para calçar sobre o sapato) e é orientado a ir ao banheiro lavar as mãos.

"Todos os profissionais usam jaleco, capote descartável, luva, óculos de proteção, gorro e máscara com tela. Todas as superfícies - bancadas, cadeiras - são limpas com álcool 70. Além disso, estamos fazendo um revezamento de consultórios a cada atendimento de paciente, porque a caneta de alta rotação espalha gotículas de saliva no ar. É preciso esperar que elas se depositem para fazer a limpeza do consultório, com janelas abertas. Os horários dos pacientes também foram espaçados, e não podem levar acompanhantes, para evitar aglomeração. Na ida para casa meus cuidados também foram redobrados. A roupa de trabalho fica no consultório. Em casa, tudo é limpo com álcool: celular, cinto, carteira. Dali vou para o banho. Cuidados que mudaram a minha rotina. Antes andava com o sapato que vinha da rua dentro de casa. Hoje vejo o absurdo, só a assimilação do quanto é fácil ser contaminado e de que isso pode ir para dentro de sua casa. É um momento de reflexão, de ficar dentro de casa. Tenho certeza que quanto menos contato, melhor. O vírus não tem perna, as pessoas é que podem transmiti-lo, por isso é fundamental ficar em casa.”

Carolina Nascimento Antoniazzi , enfermeira da Unidade de Saúde de fundão
Carolina Nascimento Antoniazzi , enfermeira da Unidade de Saúde de fundão. (Arquivo pessoal)

"MINHA ROTINA FOI ALTERADA RADICALMENTE"

Enfermeira há cinco anos, Carolina Nascimento Antoniazzi viu, pela primeira vez, sua rotina se alterar radicalmente por conta de uma doença, a Covid-19.

"Nunca vivi nada assim, nem meus pais. Hoje não saio do plantão sem tomar um banho e amarrar a roupa que usei em um saco plástico, para transportá-la para casa. O sapato que uso no trabalho, lá fica. Não dá para negar que temos medo. É uma doença nova e ninguém estava preparado e, ao mesmo tempo, precisamos estar preparados. Sempre falo com a equipe para tomarmos precaução com todos os pacientes, porque não dá para saber quem está com Covid-19. Pode ser uma pessoa assintomática. É preciso ter precauções com todos.”

Lucas Padilha, médico de família e comunidade, atende na Unidade de Saúde de Jardim Camburi
Lucas Padilha, médico de família e comunidade, atende na Unidade de Saúde de Jardim Camburi. (Acervo pessoal)

"A SENSAÇÃO É DE UTILIDADE POR PODER POR EM PRÁTICA O MEU JURAMENTO"

Lucas Padilha é médico de família e comunidade na Unidade de Saúde de Jardim Camburi, onde também resido. É o bairro com mais casos de Covid-19, o que, segundo ele, é esperado, já que é o bairro mais populoso de Vitória. Como pode ser um vetor da doença, ele decidiu viver em outra casa, longe de sua mãe. Também está sem contato com amigos e com a minha namorada há umas três semanas. Mas relata que a sensação neste momento é de utilidade, por poder colocar em prática o seu juramento.

"Estamos tendo que nos readaptar, fazer a medicina de um jeito diferente. É difícil, mas você não pode, por exemplo, cumprimentar ou abraçar o seu paciente. Há muita aflição na consulta porque ainda não temos todas as respostas. Existem muitas perguntas e ainda não temos todas as respostas. E como é uma doença que ainda está escrevendo a sua história, os protocolos mudam todos os dias, o que faz com que a nossa rotina não acabe no trabalho. À noite, tenho que ver tudo o que foi publicado, me informar sobre as novidades, ver o que precisa ser mudado para utilizar no dia seguinte. É importante que a atenção primária resolva o maior número de casos possível, para o impacto ser menor nos hospitais. E estamos vivendo as semanas piores, com o aumento do número de casos. O que gera a sensação de que ficar em casa não está adiantando nada. Mas sem o isolamento, os números seriam trágicos, com ataque a organização do sistema de saúde. O paradoxo do isolamento é que quanto mais ele funcionar, mais vai parecer que não se precisava dele. Mas não é exagero, porque a curva de crescimento de casos só é achatada por causa do isolamento.”

Layssa Batista Degli Esposti, ortodontista, 37 anos
Layssa Batista Degli Esposti, ortodontista, 37 anos. (arquivo pessoal)

"É UM MOMENTO DE DESCOBRIR NOVOS INTERESSES"

Além de trabalhar, a ortodontista Layssa Batista Degli Esposti está aproveitando o tempo do isolamento social para expandir seus conhecimentos. Foi assim que descobriu o prazer de cozinhar.

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“Temos sido cuidadosos para evitar a contaminação em nossos consultórios, com atendimento de pacientes com horários espaçados, com horário marcado, usando toda a proteção necessária para o paciente e também para quem o atende. Temos feito até revezamento de salas, o que foi possível porque meu pai, após 43 anos de consultório, teve que se afastar. Muitos pacientes ainda o procuram, mas ele está no grupo de risco por ter mais de 70 anos e está morando com minha mãe em Guarapari. Esta tem sido outra grande dificuldade desta pandemia, ficar longe deles, dos parentes, dos amigos. Eu os visitava com muita frequência, agora permaneço em casa, exceto as idas ao consultório. Mas há também lições nesta pandemia. Como moro sozinha, é um momento que tenho tirado para aprender mais, estudar, fazer exercícios, descobrir interesses que antes não tinha, como cozinhar. Temos que buscar alternativas para enfrentar o isolamento, tão necessário neste momento, para não ficar triste e angustiada.”

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