Publicado em 14 de outubro de 2021 às 08:16
O momento é de crise no audiovisual brasileiro. Uma das razões, além da pandemia, é a escassez de fomento vindo da Ancine, a Agência Nacional do Cinema. Nesse cenário, há quem consiga se dar ao luxo de recusar se envolver com projetos feitos com recursos vindos da agência. >
"Neste momento, a O2 optou por não trabalhar com leis de incentivo. É muita insegurança jurídica. A Ancine fica cheia de prestações de contas abertas e você fica sujeito a mudanças do governo", conta Andréa Barata Ribeiro, sócia da O2 Filmes, produtora de filmes como "Cidade de Deus" e "Dois Papas".>
"A gente acabou de recusar um filme que envolvia dinheiro público'", diz Barata Ribeiro, que é membro da Academia do Oscar, sobre recursos de fomento da Ancine.>
Grandes produtoras nacionais têm conseguido se apoiar no mercado nascente do streaming. Para os produtores independentes, porém, o cenário é mais desolador.>
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São dois pontos de estrangulamento na agência do cinema hoje. O primeiro é a escassez de novos editais e fomentos para a produção de obras audiovisuais. O segundo é a insegurança jurídica causada por um passivo de prestação de contas que a agência acumulou e que podem ser reabertas quase duas décadas depois do lançamento do filme –o órgão vem desenterrando algumas e, em certos casos, reprovando projetos antigos.>
"A Ancine está paralisada e além disso você fica num imbróglio jurídico que não é seu, com prestação de contas pendurada, que eles não deram baixa. Aí os caras começam a pedir de novo prestações de contas de 15 anos atrás", diz Barata Ribeiro.>
Em maio, a Ancine sinalizou a retomada de investimentos em séries e filmes brasileiros. A agência anunciou que, após ajustes, o Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, contava com R$ 400 milhões para novos investimentos em 2021 e que 65% do passivo de projetos em análise -alguns deles em trâmite desde 2016- estão resolvidos.>
O filme "Marighella", da O2, talvez seja hoje um dos principais símbolos da relação entre produtores de audiovisual e o governo Bolsonaro. Ao menos dois pedidos de recursos para a comercialização do filme enviados à Ancine foram negados. O longa é uma cinebiografia do guerrilheiro comunista.>
Enquanto a Ancine não volta ao fluxo que costumava ter, a chegada das plataformas de streaming ao Brasil –e o interesse delas em produzir conteúdo local para o público daqui– fez com que o vácuo deixado pela crise na agência pudesse ser preenchido. A questão é que, segundo a sócia da O2, os efeitos benéficos dos streamings tendem a recair mais sobre as grandes produtoras.>
"Quem mais sofre com isso são as produtoras pequenas, que não têm tanto recurso", diz Barata Ribeiro. "Existem outras leis [de incentivo ao audiovisual], coproduções internacionais. O produtor nunca parou de buscar outras formas, mesmo quando os incentivos [da Ancine] funcionavam.">
"Os streamings hoje têm movimentado o mercado brasileiro, têm gerado empregos e oportunidades incríveis. Mas o streaming não absorve tudo e nem deve", diz, por email, Fabiano Gullane, da Gullane Filmes, produtora de longas como "Que Horas Ela Volta?", "Até Que a Sorte Nos Separe" e "Carandiru".>
Gullane, porém, afirma não ter se afastado do fomento da agência. "Trabalhamos bastante com a Ancine e temos muitos projetos ativos, projetos em diversas fases. E temos total interesse em continuar trabalhando por muitos anos com a agência", diz. "Essa é uma paralisação momentânea da Ancine, um reflexo da demora do governo federal em empossar novos diretores colegiados. A Ancine estava andando muito de lado, de forma insegura.">
Segundo Rafael Neumayr, advogado especializado em audiovisual, não é exatamente correto falar num movimento de produtoras se afastando da agência. "Há poucas produtoras apresentando projetos para a Ancine, mas é porque a Ancine não abriu as portas para essas produtoras", diz o advogado.>
"Os pequenos não estão fugindo [da Ancine], estão desesperados por novas oportunidades", afirma. "Agora, os grandes, que estão fazendo uma produção de streaming atrás da outra, começam realmente a repensar se vão ou se não vão continuar. Seria ótimo se houvesse uma chance de fuga, mas a gente nem isso tem. O problema está lá na agência e não nas produtoras. Se elas não acessam não é porque não querem, é porque não há o que acessar.">
Mauro Garcia, o presidente da Brasil Audiovisual Independente, a Bravi, diz enxergar um afastamento entre produtoras e Ancine. "Mas acho que é um afastamento temporário. E acho que o aprendizado que houve –de busca de alternativas [de financiamento]– vai ficar. Ninguém vai ficar só dependente do Fundo Setorial do Audiovisual. Todo mundo aprendeu a se mexer", diz.>
Garcia conta que, junto com outras organizações, se empenhou em "contratar um mapeamento de fundos internacionais que aceitam coprodução com o Brasil". São fundos internacionais, sobretudo europeus, mas também de países como Austrália, pouco usados por produtores brasileiros. Nesse arranjo, as produtoras brasileiras podem entrar com um contribuição minoritária e ainda surfar nas redes de contatos, festivais e canais de distribuição desses possíveis parceiros internacionais. Um entrave a isso, porém, é o dólar valendo R$ 5,50.>
Nesses fundos, os brasileiros poderiam entrar com recursos obtidos, por exemplo, de mecanismos de fomento estaduais ou municipais –que nem de longe são capazes de se equiparar ao que a Ancine costumava representar para o ecossistema do audiovisual brasileiro, mas são uma boa ajuda.>
Raquel Valadares, integrante da diretoria da API, a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro, fez um levantamento com seus associados para mapear o impacto da pandemia e da crise da Ancine. "Muitas entregaram as sedes, venderam equipamentos, demitiram funcionários, pegaram empréstimos, recorreram aos recursos emergenciais para a cultura da Lei Aldir Blanc quando disponíveis, enfim, deram seu jeito. Mas, de modo geral, a tônica é que as produtoras pequenas tiveram que deixar de lado seus projetos para trabalhar para outras produtoras, às vezes maiores, com projetos em execução">
Segundo Valadares, 86% das produtoras que responderam a um questionário feito no último fim de semana declararam queda substancial de faturamento e 77% ficaram mais de seis meses sem faturamento. Houve casos em que os sócios não conseguiram manter o pró-labore ou tiveram de mudar de área para enfrentar a crise.>
Apesar disso, ela diz que há motivos para otimismo. "É de se celebrar que muitas de nós conseguiram executar seus projetos audiovisuais durante esse triênio [2019 a 2021], seja porque eram oriundos de editais regionais, seja porque a contratação de projetos antigos do FSA finalmente saiu.">
Em nota, a Ancine afirma que aprovou o lançamento de "novas linhas de investimento no valor total de R$ 473,2 milhões" e que "em breve um cronograma de lançamentos será divulgado, e a previsão é que os lançamentos se iniciem no fim deste ano". "Os recursos estão sendo liberados de acordo com o fluxo de seleções e análises, conforme as regras dos editais", diz a nota da agência. "Não houve descontinuidade ou desinvestimento na atividade audiovisual.">
"Outro ponto importante é que as condições específicas dos editais serão previamente debatidas com um grupo de produtores de notória especialização, no âmbito de uma câmara técnica de produção, a ser divulgada em breve. Na câmara técnica produtores de diferentes regiões e com diversas experiências na atividade audiovisual irão opinar no modelo mais efetivo e eficiente para os próximos editais", segue a nota.>
Além da crise no fomento e a insegurança jurídica, o fantasma da censura ameaça assombrar o setor cultural. Recentemente, um projeto de um festival de jazz antifascista recebeu sinal vermelho para captação em parecer recheado de frases religiosas, por exemplo.>
Além de "Marighella", outro projeto mais recente gerou polêmica ao ter ganhado sinal vermelho da Ancine -um projeto de filme sobre a vida e a trajetória do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi indeferido. A obra já havia sido aprovada em 2018 pela agência.>
A justificativa da reprovação foi de que o projeto "dá margem a inegável promoção da imagem pessoal do ex-presidente da República homenageado no documentário, com o notório aproveitamento político, às custas dos cofres públicos". Na opinião de Maurício Magalhães, sócio da Giros Filmes, que produz "Presidente Improvável", o documentário sobre FHC, o veto ao projeto na Ancine foi um caso claro de censura.>
Para contornar o imbróglio, os sócios da produtora, empresa de 23 anos de estrada, decidiram criar um fundo de investidores e discutir valores de licenciamento do filme com o streaming, que deve ser exibido pela Globoplay. "Esse filme está sendo feito, mesmo com esse processo todo da Ancine. Nós estamos tentando viabilizar por vários caminhos", diz Magalhães.>
Ainda assim, o produtor segue na expectativa de conseguir reverter o veto e captar via Lei do Audiovisual, uma vez que o fundo e o licenciamento com o streaming não conseguiu cobrir todos os gastos necessários para a finalização de "Presidente Improvável".>
Mesmo antes do filme sobre FHC, Magalhães afirma que a sua produtora já vinha se preparando para funcionar em meio ao governo Bolsonaro. "A gente tem que sair um pouco de ficar naquele mecanismo histórico [de fomento público ao audiovisual], que é lícito, maravilhoso para o desenvolvimento do setor e que existe no mundo inteiro. Porém, a gente já achava que esse governo teria esse tipo de reação", diz.>
Segundo Magalhães, embora o governo esteja "asfixiando o setor", o atual cenário de escassez acabou fazendo "com que a gente saísse de uma zona de conforto".>
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