Publicado em 14 de novembro de 2020 às 11:18
Em meio à pandemia de Covid-19, hospitais estão restringindo visitas de mães e pais de bebês prematuros internados em UTIs neonatais para evitar o risco de contágio do coronavírus. Na falta de um protocolo único a ser seguido, cada instituição adota suas próprias regras. Há casos de hospitais que chegaram a separar totalmente mães de seus filhos durante quatro meses. O bebê precisa desse vínculo para um desenvolvimento saudável.>
Nas maternidades privadas, também foram adotadas restrições, como proibição de visitas de irmãos, avós e outros familiares, mas, no geral, há permissão para que mães e pais se revezem com o bebê.>
Há uma campanha em curso em países como Alemanha, Reino Unido, Austrália, Israel, México e Estados Unidos em defesa da separação zero entre pais e bebês prematuros durante a pandemia. A iniciativa envolve mais de 140 organizações e, no Brasil, foi encampada pela Associação Brasileira de Pais, Familiares, Amigos e Cuidadores de Bebês Prematuros, conhecida como Prematuridade.com.>
"Mesmo com o distanciamento social, é importante garantir o vínculo. Os prematuros precisam da presença dos pais. São mais vulneráveis e podem ficar com sequelas físicas, motoras e cognitivas. Fechar as portas da UTI para mães e pais é uma situação totalmente absurda", diz Denise Suguitani, diretora-executiva da entidade, que tem 4 mil famílias cadastradas.>
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Segundo ela, as separações têm ocorrido mais em maternidades públicas, mas há relatos também de restrições em instituições privadas, especialmente nos períodos de alta de casos de coronavírus.>
Durante os quatro meses em que o filho Nicolas Levi ficou na UTI neonatal de um hospital público de Fortaleza, Luana Oliveira, 22, de Itapajé (CE), só conseguiu visitá-lo uma única vez.>
Nicolas nasceu em 10 de abril, na 30ª semana de gestação, pesando apenas 615 gramas - peso considerado baixo mesmo para a idade gestacional. Foi direto para a UTI neonatal. "Eu só vi ele do lado de fora da janela. Foi desesperador voltar para casa sem ao menos ter tocado no meu filho, eu só chorava".>
Luana conta que a maternidade ofereceu suporte psicológico e que todos os dias funcionários ligavam para dar notícias do bebê. Duas vezes por semana, enviavam fotos. A mãe só foi autorizada a visitar Nicolas 110 dias após o nascimento. Nessa altura, ele pesava 1,5 kg.>
"Tive medo que ele não me reconhecesse. Mas quando Nicolas me viu, a nossa conexão foi tão forte que eu percebi que ele nunca tinha me esquecido. Ele sorriu, tentou pegar no meu rosto. Foi o dia mais feliz da minha vida.">
O bebê teve alta no dia 20 de agosto, pesando 2,2 kg. Só nessa data é que veio a conhecer o pai, José de Lima, 28.>
O caso de Nara, de Pinheiro (MA), é mais dramático. Ela só conseguiu ver a filha Cecília Vitória 52 dias após o nascimento, quando já havia sido declarada a morte cerebral da menina, em 10 de julho. O bebê nasceu pesando 1,22 kg, de parto normal, e foi levado para uma maternidade com UTI neonatal da capital maranhense, São Luís, por causa da prematuridade.>
"O único momento em que a vi foi quando estava sendo transferida de ambulância, dentro de uma incubadora fechada. Quando chegamos ao hospital, fui informada que não poderia acompanhá-la devido à Covid, era regra do hospital. Não cheguei nem a pegá-la no colo", conta a mãe.>
O médico de plantão telefonava para Nara às segundas, quartas e sextas com notícias. No período, Cecília teve anemia, fez transfusão de sangue, sofreu enterocolite (inflamação do trato digestivo), foi intubada, depois extubada.>
"Um dia fui chorando até a sala da assistência social e pedi para que pudesse ver a minha filha, ao menos levar um lacinho dentre os inúmeros que eu havia comprado. Mas não tive êxito, alegaram que era para o bem dela.">
Nara conta que dois dias depois de a filha sair da UTI e ainda sem conseguir visitá-la, foi informada que Cecília havia regurgitado, se "afogado" e sofrido uma parada cardiorrespiratória de 15 minutos. "Foram longos e eternos 16 dias em coma. Um dia recebi a ligação para comparecer ao hospital. Fui avisada que ela estava sem atividade cerebral. Só então pude vê-la bem de pertinho, pegá-la no colo, beijá-la, acariciá-la, fazer o método canguru.">
O método canguru consiste colocar o bebê prematuro em contato pele a pele com a mãe ou com o pai. Há uma série de benefícios associados a ele, como melhor desenvolvimento neurocomportamental e psicoafetivo do bebê, redução do estresse e da dor.>
Segundo Jefferson Piva, professor titular de pediatria da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e chefe da UTI pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a ausência de contato com a mãe é extremamente prejudicial ao bebê prematuro. "O desenvolvimento dos prematuros não depende só de tecnologia. Não adianta só ligar o respirador, os monitores, as bombas de infusão. Eles precisam da interação com a mãe".>
Para o pediatra, é compreensível que, em um primeiro momento, hospitais tivessem tido que tomar medidas restritivas adequadas às condições estruturais de cada um.>
Mas dez meses depois do início da pandemia, avalia, não há justificativa para que bebês prematuros estejam afastados dos pais. "Não é possível que nessa altura não encontraram uma solução melhor do que proibir a visita", diz ele, também é especialista em medicina intensiva.>
O médico se preocupa ainda com instituições que permitem a entrada das mães na UTI, mas proíbem que elas saiam do hospital e retornem ou até mesmo que se revezem com o pai ou alguém da família.>
A chef Beatriz Karan, 24, de São José do Rio Preto (SP), enfrentou essa situação. O bebê nasceu em 6 de maio, com 620 gramas, na 26ª semana de gestação, e permaneceu pouco mais de cem dias na UTI. No início, a maternidade privada permitia uma visita por dia de meia hora, da mãe ou do pai. Com o agravamento da pandemia em julho, a instituição passou a autorizar a visita apenas da mãe.>
O bebê morreu em 17 de agosto. "Nas últimas três semanas de vida dele, meu marido não pode vê-lo. Nem fazendo o exame da Covid, eles não deixaram. Mesmo com o meu filho já bem ruim, eu tinha que receber as notícias e entrar na UTI sozinha", conta.>
Segundo a psicóloga Heloisa Salgado, especialista em psicologia da infância, a separação de bebês prematuros das mães, em menor grau, já acontecia antes da Covid em muitas instituições, com impacto emocional grande para ambos.>
Com a pandemia, a situação foi agravada. "Todos os protocolos da Covid se pautam apenas na perspectiva da segurança física, evitar a contaminação. Claro que isso é fundamental. Mas as pessoas não podem se esquecer do risco emocional. Essa conta cedo ou tarde vai chegar.">
A psicóloga diz que no caso das mães e pais que perderam bebês nesse período de afastamento, o luto será ainda mais devastador. "Não ter podido conhecer, conviver, criar memórias físicas, sensoriais, emocionais, é um buraco que pode levar a lutos bem complicados. Precisamos evitar isso".>
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