Publicado em 4 de outubro de 2023 às 11:38
BRASÍLIA - O Ministério da Fazenda estuda uma mudança contábil que pode, na prática, reduzir a base de cálculo do piso constitucional da Saúde nos próximos anos, exigindo da administração pública a aplicação de valores menores nessa área.>
A medida também tem potencial de interferir nos limites de despesa com pessoal previstos na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), e no valor obrigatório das emendas parlamentares indicadas pelo Congresso Nacional.>
A proposta consiste em mudar o critério de cálculo da RCL (receita corrente líquida), excluindo algumas fontes de arrecadação mais voláteis que hoje são contabilizadas nesse conceito.>
Como a aplicação mínima de recursos na Saúde, o patamar máximo de gastos com folha de salários e o volume de emendas parlamentares são estimados como proporção da RCL, a alteração teria como consequência uma redução desses valores de referência.>
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A mudança consta em minuta de projeto de lei complementar para instituir o novo "Regime de Reequilíbrio Fiscal dos Estados e do Distrito Federal". A íntegra do texto foi obtida pela Folha.>
Procurado, o Ministério da Fazenda confirmou o teor do documento, com a ressalva de que se trata de "uma minuta preliminar em discussão técnica". O projeto ainda precisa passar pelo crivo das "instâncias competentes" dentro da pasta, além de outras áreas do governo.>
Apesar da concordância técnica, nos bastidores há uma preocupação política, já que alterar a RCL traz uma série de repercussões, algumas delas mais sensíveis.>
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já tem sido criticado por sua própria base aliada por pedir o afastamento dos pisos de Saúde e Educação no ano de 2023. As áreas sempre foram bandeiras do PT.>
O objetivo é evitar a necessidade de remanejar até R$ 20 bilhões de outras áreas para cumprir o mínimo de recursos em ações e serviços públicos de saúde.>
De acordo com a minuta de projeto, o governo pretende excluir da RCL as receitas com concessões e permissões, dividendos e participações, royalties e participações especiais, além da arrecadação obtida com programas especiais de recuperação fiscal, transações e acordos destinados a promover a regularização de créditos. As mudanças valeriam para União, estados e municípios.>
A justificativa do governo é que a RCL é referência para o controle de despesas de caráter continuado, e computar receitas não recorrentes ou extraordinárias em sua base "pode criar distorções significativas e colocar em risco a sustentabilidade fiscal dos entes".>
Retirá-las, na visão da Fazenda, é uma "medida saudável", pois evita que receitas voláteis sirvam de lastro temporário para a criação de uma despesa que terá de ser carregada de forma permanente nos orçamentos.>
"Ao excluir do cômputo da RCL receitas extraordinárias, como as decorrentes de concessões, permissões e de acordos e transações tributárias, está se adotando maior rigor na mensuração de receita corrente líquida e evitando que indicadores de despesas de pessoal ou de endividamento sobre a RCL sejam momentaneamente distorcidos em função de receitas que não possuem caráter de recorrência", diz a Fazenda.>
O governo já havia feito uma adaptação semelhante no conceito de receita líquida ao aprovar o novo arcabouço fiscal. Como a expansão real do limite de gastos é proporcional à variação das receitas, a Fazenda propôs excluir essas mesmas fontes de arrecadação dos números que servem de base para o cálculo do arcabouço.>
O novo indicador, chamado de RLA (Receita Líquida Ajustada), inclusive começou a ser divulgado pelo Tesouro Nacional no fim do mês de setembro. A partir dele, é possível identificar que, em 2022, foram descontados R$ 193,6 bilhões em receitas ligadas às fontes que, agora, o governo também quer tirar da base da RCL.>
A constatação permite algumas simulações: se a regra constitucional que exige aplicação de 15% da RCL na Saúde já tivesse sido retomada no ano passado, a mudança contábil pretendida pela Fazenda significaria uma obrigação R$ 29 bilhões menor com as despesas da área.>
Nas emendas parlamentares, a norma prevê 2% da RCL para indicações individuais de deputados e senadores e 1% da RCL para emendas de bancadas estaduais. Pelos dados de 2022, as reduções seriam de R$ 1,9 bilhão e R$ 968 milhões, respectivamente.>
Técnicos ouvidos reservadamente pela reportagem concordam com a avaliação da Fazenda de que a mudança contábil na RCL vai na direção correta de evitar que receitas temporárias ou muito voláteis acabem gerando espaço para criação de despesas permanentes.>
Na década passada, por exemplo, o boom nos preços de petróleo turbinou a arrecadação de estados como o Rio de Janeiro, que usou o dinheiro para dar aumentos salariais generosos a seus servidores até 2014. Poucos anos depois, quando essas receitas refluíram, o estado enfrentou dificuldades severas para honrar seus compromissos.>
Para o governo federal, a alteração é conveniente porque ajuda a manter a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal no futuro.>
A retomada da vinculação dos pisos constitucionais de Saúde e Educação à dinâmica da arrecadação já vinha sendo uma fonte de preocupação da equipe econômica, uma vez que a expansão dessas despesas se dará de forma mais célere do que o ritmo de ampliação do limite de gastos que vai crescer entre 0,6% e 2,5% acima da inflação ao ano.>
O piso da Educação, porém, é calculado sobre a receita líquida de impostos, conceito até agora não alcançado pelas mudanças.>
Já o impacto negativo sobre o valor das emendas também precisará ser dialogado com cautela com o Congresso Nacional, que tem seguido uma tendência contrária, de carimbar um valor cada vez maior de recursos para sua própria indicação.>
Além disso, estados e municípios hoje dentro das regras de gasto com pessoal podem acabar estourando os limites de 60% da RCL para esse tipo de despesa, situação que travaria a concessão de novos reajustes ou a contratação de servidores.>
Como a verificação é feita de forma individual entre os Poderes, até mesmo Judiciário e Legislativo, que normalmente têm quadros menores de servidores e contam com folga em seus limites, podem enfrentar algum tipo de restrição.>
Em nota à Folha de S.Paulo, o Ministério da Fazenda afirma que, em seus estudos internos, avalia a possibilidade de estabelecer um "período de transição" para que todos os entes consigam se adequar aos limites levando em consideração o novo critério contábil da RCL.>
A pasta não respondeu se a alteração pretendida pode facilitar o cumprimento do piso da Saúde nos próximos anos.>
O que é a RCL?>
A receita corrente líquida (RCL) é um conceito contábil, definido na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que serve de referência para uma série de indicadores de finanças públicas. Ela também é a base de cálculo para gastos mínimos com Saúde no âmbito federal e despesas com emendas parlamentares.>
Como a RCL é calculada hoje?>
A receita corrente líquida é obtida a partir do somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidas:>
Qual é a proposta do governo?>
O Ministério da Fazenda defende excluir da RCL as receitas obtidas por União, estados e municípios com:>
Qual o tamanho da mudança?>
O efeito vai depender do tamanho da arrecadação com esses quatro itens em cada ano. Em 2022, segundo dados do próprio Tesouro Nacional, teriam sido abatidos R$ 193,6 bilhões.>
Que áreas seriam afetadas pela mudança?>
A RCL é referência ou base de cálculo para indicadores relevantes. Veja alguns exemplos:>
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