Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Quino e Mafalda viverão sempre na luta contra o autoritarismo

Ícones sul-americanos, Quino e Mafalda estarão sempre marcados no comportamento de qualquer um que se levantar contra o autoritarismo ou questionar o status quo

Publicado em 04/10/2020 às 05h00
O cartunista Joaquin Salvador Lavado, conhecido como Quino, contempla escultura de sua criação a Mafalda, em Oviedo (EUA)
O cartunista Joaquin Salvador Lavado, conhecido como Quino, contempla escultura de sua criação a Mafalda, em Oviedo (EUA). Crédito: Reuters/Folhapress

Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, viveu. Viveu entre 17 de julho de 1932 e 30 de setembro de 2020. Filho de espanhóis da Andaluzia, republicanos fervorosos, como ele mesmo definia, Quino era parte de uma família que sofreu com a Guerra Civil Espanhola e isso influenciou muito a sua visão de mundo.

Nascido na bela Mendoza, às margens da Cordilheira dos Andes, Quino foi uma criança tímida, que preferia as artes, principalmente o desenho e o cinema, ao convívio social e às partidas de futebol. Da vontade de desenhar veio também a vontade de contar histórias com seus desenhos; foi sua mãe que o convenceu a desenhar com falas de balões para os personagens que criava. Foi só por isso, para aprender a desenvolver tal escrita, que Quino frequentava a escola.

“Mafalda” surgiu em 1963, como um cartum publicitário para vender eletrodomésticos. Não deu certo. Um ano depois, já transformado em “Mafalda”, passou a ser publicado nas páginas da revista “Primera Plana”. Aos poucos, à medida que a fórmula foi se esgotando, segundo Quino, novos personagens foram introduzidos.

Nas palavras de Quino, “Mafalda surge de um conflito, de uma contradição. A criança aprende uma porção de ‘coisas que não se devem fazer’ porque ‘são más’ e ‘são prejudiciais’. Acontece que, quando abre os jornais, ela descobre que os adultos perpetram todas essas coisas proibidas através de massacres, guerras, etc. Então se produz o conflito. Por que os adultos não fazem o que ensinam?”

Última tira da personagem Mafalda, criada em 1973 pelo argentino Joaquín Lavado, o Quino
Última tira da personagem Mafalda, criada em 1973 pelo argentino Joaquín Lavado, o Quino. Crédito: Divulgação

Na cabeça de seu criador, Mafalda foi se tornando “artificial”. Soma-se a isso o golpe de Pinochet no Chile e o endurecimento da situação na América Latina, que ficou “muito ensanguentada”. “Se eu falasse o que estava acontecendo, eu teria que deixar a Argentina. Não me deixariam ou teriam atirado em mim”, afirmou Quino, em entrevista presente no livro “10 Anos com Mafalda” realizada em 1987.

Resumindo, “Mafalda”, a tira, deixou de ser produzida em 1973, há 47 anos. Impressiona, assim, como ela se mantém relevante. A questão é que o tal “conflito” citado por Quino é eterno e cíclico. O que Mafalda, a personagem, teria a dizer sobre a ascensão da extrema-direita mundo afora, sobre uma reafirmada paixão por governos autoritários e constantes ameaças à democracia? Em 2016, Quino foi questionado pelo jornal espanhol “El País” sobre quem seria a Mafalda da atualidade; a resposta foi forte: para ele, a “menina sábia” estaria morta porque seria um dos desaparecidos na ditadura militar da Argentina.

Aqui em casa Mafalda se encontra na estante de livros e na geladeira, mas também em nossos corações - cada pessoa que clama por mudanças ou questiona o status quo tem um pouco de Mafalda e de Quino. Não à toa, a personagem enfrentou problemas com a censura na Espanha, no Chile, na Bolívia, e, claro, no Brasil. Quino influenciou não só quadrinistas, mas pensadores e gerações inteiras. Mesmo que Mafalda seja sua criação mais famosa, seu trabalho posterior também é recheado de críticas às instituições, mas nunca panfletário; Quino nos fazia questionar nossos comportamentos, principalmente àqueles que cedíamos ao envelhecer. Ao longo de anos, o autor ilustrou jornais e revistas na Argentina e também na Itália, para onde se mudou. Boa parte desse material pode ser conferido em “Isto Não é Tudo”, coletânea lançada no Brasil em 2018.

“Mafalda” ressoa com tanta força na América Latina por trazer uma família de classe média, seus sonhos e angústias. Era a Argentina, mas poderia ser o Brasil da década de 1970 ou de hoje em dia. “Não era minha intenção que ela (Mafalda) durasse tanto. Eu esperava que o mundo melhorasse, mas a política liberal está tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres ainda mais pobres. O resultado dessa política é lastimável”, declarou Quino ao jornalista Pedro Cirne de Albuquerque em 1999.

Quino se foi após alguns anos de saúde debilitada. Se locomovia em cadeira de rodas e não tinha coordenação motora para desenhar - deixou de fazê-lo há cerca de 15 anos e se dizia cansado de “se repetir”. Há dois anos, após a morte de Alicia Colombo, sua esposa desde 1960, se mudou de volta para a Argentina, local onde sempre disse que iria morrer.

Mafalda é um dos grandes símbolos argentinos; turistas vão até o bairro de San Telmo, em Buenos Aires, apenas para tirar fotos com uma estátua da personagem, que em 2014 ganhou a companhia dos amigos Manolito e Susanita. Já Quino é uma lenda do tamanho de Jorge Luis Borges, Diego Maradona, Lionel Messi, Manu Ginóbili, Astor Piazzolla, Carlos Gardel ou Julio Cortázar. Este, inclusive, uma vez foi questionado sobre o que pensava da Mafalda. “O que eu penso de Mafalda não importa. O importante é o que Mafalda pensa de mim!”, respondeu.  Na morte de Quino, fica o questionamento ao leitor: o que será que Mafalda pensaria de você?

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