Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"O Famoso Alfaiate": Série turca da Netflix é constrangedora

Série "O Famoso Alfaiate", da Netflix, abusa de machismo e capacitismo em uma trama novelesca cheia de reviravoltas, segredos e traições

Vitória
Publicado em 02/05/2023 às 19h05
Série turca
Série "O Famoso Alfaiate", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Uma em cada quatro mulheres na Turquia já foi vítima de violência física ou sexual por parte de seus parceiros. Em março de 2021, o conservador presidente turco Recep Tayyip Erdogan anunciou que o país estava se retirando da Convenção do Conselho da Europa sobre Prevenção e Combate à Violência Doméstica e contra Mulheres, uma convenção que havia sido aceita por unanimidade no Parlamento.

Para as lideranças turcas, a igualdade de gêneros ameaçaria a “os valores da tradicional família turca”. É esse conservadorismo, uma sociedade machista e patriarcal que justificam a existência de obras como “O Famoso Alfaiate”, série turca lançada pela Netflix com ideias e conceitos hoje só aceitos em sociedades retrógradas.

Vendida como "história real", mas nunca deixando claro que história é essa,  “O Famoso Alfaiate” tem um início até ousado, quando, em um desfile, o famoso alfaiate Peyami (Çağatay Ulusoy) lança uma nova coleção. O clima é de festa, com drogas, sexo e até alguma (pouca) nudez, algo raro em produções turcas. É lá também que conhecemos Dimitri (Salih Bademci), melhor amigo de Peyami, um hedonista sempre pronto para curtir a vida e um sujeito de caráter bem duvidoso. Descobrimos que Dimitri está prestes a se casar, mas mantém a noiva, Esvet (Şifanur Gül), em cativeiro; responsável pelo vestido da noiva, Peyami nem sequer pode vê-la, tendo que tirar suas medidas de olhos vendados…

Construído inicialmente como um bom moço, Peyami esconde de todos alguns segredos, entre eles o pai, Mustafá (Olgun Şimşek), um homem aparentemente no espectro do autismo e que, por isso, é motivo de vergonha para o filho famoso. Tratado como uma ameaça à reputação da tradicional e rica família, o “Seu Doidinho” (como é 'carinhosamente' chamado) precisa de uma cuidadora. Quando Esvet consegue fugir do cárcere, se esconde na casa de Peyami e passa a ocupar o cargo após uma confusão com a agência de cuidadoras. Sim, a moça, em fuga, se esconde na casa do melhor amigo de quem a persegue.

Série turca
Série "O Famoso Alfaiate", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Mesmo curta, com sete episódios não muito longos, “O Famoso Alfaiate” tem forte influência das novelas. Muita coisa acontece, os personagens são superficiais, caricatos, e as relações, sempre exageradas. A série usa alguns flashbacks para desenvolver a relação entre Dimitri e Peyami e também abusa do recurso de pessoas ouvindo conversas escondidas, mesmo que não faça muito sentido elas estarem ali naquele momento ou até mesmo a maneira como ouvem - o que importa é movimentar o roteiro. As reviravoltas são artificiais e tratadas como grandes revelações de novelas, principalmente com algumas atuações como a de Sülün Hatun, que vive a matriarca da família de Peyami.

Além do arco principal, já possível de ser descoberto desde o início, há outro que envolve Esvet e é utilizado como motivo pela perseguição a ela - quando ela foge, ninguém quer ouvi-la ou entender seus motivos, querem é levá-la de volta e obrigá-la a se casar com um abusador. Mesmo quando Peyami descobre a verdade, ele reluta, afinal, trata-se de seu “melhor amigo”. O texto tenta tornar o protagonista mais bondoso, inserindo uma virada no sexto episódio que o torna mais “humano”, e não apenas um metódico e milionário alfaiate com vergonha do pai autista.

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Série "O Famoso Alfaiate", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Mustafá é um personagem infantilizado, construído na caricatura exagerada do adulto autista, e interpretado de maneira irritante por Olgun Şimşek; o ator talvez seja o menos responsável por isso, mas sua atuação beira o ridículo e o desrespeito - não muito diferente do protagonista vivido por Aras Bulut Iynemli em "O Milagre na Cela 7".

Apesar de ter o alfaiate no título, a série não tem nada sobre costura ou mundo da moda, apenas um chamariz para o melodramático jogo de traições, reviravoltas e segredos. O machismo da série, inclusive, vem desde o título, pois é Esvet a verdadeira protagonista da história e a única personagem com que o público deveria se identificar. 

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Série "O Famoso Alfaiate", da Netflix. Crédito: Netflix/Divulgação

Machista e capacitista muito além do bom senso, o texto espera seu terceiro ato para colocar outras tramas em movimento. A busca de Peyami pela mãe, a verdadeira origem de Esvet, os escusos interesses da família de Dimitri, todas as revelações são guardadas para a já o fim da temporada, deixando ganchos para a inevitável segunda parte. A boa notícia é que a segunda temporada, assim como a terceira, já foram filmadas e confirmadas, ou seja, ninguém ficará sem a conclusão da série; a notícia ruim é que teremos mais de “O Famoso Alfaiate” e seus conceitos muito problemáticos.

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