Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Argentina, 1985" e as lições que o Brasil deveria ter seguido

Lançado pela Amazon Prime Video, "Argentina, 1985" é a história do julgamento dos militares que cometeram crimes contra a humanidade durante a ditadura argentina

Vitória
Publicado em 24/10/2022 às 20h33
Filme
"Argentina, 1985" mostra o julgamento dos militares que sequestraram, torturaram e mataram durante a ditadura militar na Argentina. Crédito: Amazon Studios/Divulgação

Ao fim da ditadura militar argentina, que se autonomeou “Processo de Reorganização Nacional”, o presidente democraticamente eleito Raul Alfonsin promulgou um decreto que levaria nove militares que lideraram o país desde o golpe a um julgamento civil sobre os crimes contra a humanidade realizados durante o período ditatorial, quando se normalizaram sequestros, torturas, mortes e desaparecimentos. Estima-se que 30 mil pessoas tenham sido mortas nos sete anos de governo militar, mas, ao contrário do que aconteceu no Brasil, com a Lei da Anistia promulgada em 1979, os militares argentinos pagaram por seus crimes.

O processo de punição dos militares do alto escalão não foi fácil e durou anos, mas começou com o Julgamento das Juntas, comandado pelo promotor Julio Strassera (1933 - 2015), em 1985. Escolha argentina para o Oscar 2023 e lançado globalmente pela Amazon Prime Video, “Argentina, 1985” acompanha Strassera (Ricardo Darín) no processo de preparação que deságua no julgamento, o clímax do filme.

“Argentina, 1985” é um filme lento, mas nunca chato. Dirigido e coescrito por Santiago Mitre, o filme constrói uma clássica jornada do herói com Strassera, um sujeito correto, disposto a fazer justiça, mas que teme o poder dos militares. O Julgamento das Juntas cai em seu colo no momento em que é tirado de um tribunal militar e levado para um tribunal civil; como promotor, Strassera não teria como recusar.

O protagonista é relutante, teme por sua família, teme que o namorado de sua filha seja um espião dos militares e passa a lidar com ameaças constantes. Seus antigos colegas de Direito abraçaram o fascismo durante a ditadura e deixam o promotor sem opção a não ser recrutar uma equipe de jovens juristas sem histórico de lutas, pessoas que fossem aceitas pela sociedade argentina como isentas e a serviço das leis.

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"Argentina, 1985" mostra o julgamento dos militares que sequestraram, torturaram e mataram durante a ditadura militar na Argentina. Crédito: Amazon Studios/Divulgação

Ricardo Darín é um ator carismático e, apesar de quase sempre estar associado a papéis mais sérios e até sisudos, tem um tempo de humor impecável. Assim, o filme oferece algumas risadas de forma natural, sem nunca forçar a risada, até porque o riso passa longe de ser a motivação do filme. O roteiro é preciso, sem ser didático além do necessário; por exemplo, ele não necessita dizer que os militares ainda são perigosos se os protagonistas morrem de medo deles. A ambientação também é ótima, passeando pela Buenos Aires dos anos 1980 e por prédios históricos que ainda hoje mantêm sua arquitetura.

“Argentina, 1985” é um filme forte e que se deixa ser conduzido por depoimentos reais de vítimas da ditadura, com Strassera e o promotor adjunto, Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), funcionando como maestros, dando os rumos a seus comandados e indicado ao espectador para onde olhar. Apesar de ser um drama jurídico, com boa parte de suas quase duas horas e meia dentro de um tribunal, o filme de Santiago Mitre nunca descamba para o ‘juridiquês’ ou para detalhes desinteressantes - o cineasta tem plena ciência da força do material que tem em mãos e sabe que precisa apenas de um pingo de empatia do público para que este seja fisgado.

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"Argentina, 1985" mostra o julgamento dos militares que sequestraram, torturaram e mataram durante a ditadura militar na Argentina. Crédito: Amazon Studios/Divulgação

Santiago Mitre mantém o filme sóbrio e muitas vezes com ar quase documental (como quando emula a estética da época durante o julgamento). Depoimentos são ouvidos na íntegra e sem o auxílio de imagens como sustentação; os relatos levam o espectador a construir em suas cabeças as cenas de tortura e o escárnio dos militares que se divertiam com tudo aquilo. A conexão com os depoimentos é imediata.

É curioso perceber que, tal lá como cá, a justificativa é sempre a mesma: a violência foi necessária para salvar o país da ameaça comunista, de grupos subversivos, de guerrilheiros… No papel de contador da história, “Argentina, 1985” não entra na questão da existência ou não da tal ameaça comunista que serviu de justificativa para o golpe (lá, cá e em diversos outros países da América Latina).

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"Argentina, 1985" mostra o julgamento dos militares que sequestraram, torturaram e mataram durante a ditadura militar na Argentina. Crédito: Amazon Studios/Divulgação

Recontando o julgamento e se atendo aos fatos, o filme se preocupa com os excessos, com a truculência, com a crueldade, com o sadismo, e é eficiente no que faz. Até a construção de Strassera como o herói relutante e sua “fama” de não ter agido durante a ditadura é usada para alcançar esse equilíbrio. Mesmo que a punição dos militares argentinos não tenha sido totalmente cristalizada nesse julgamento, foi ele quem iniciou o processo e mostrou a vontade da população em ver seus algozes punidos ao invés de homenageados ou ocupando cargos políticos. Como a última cena de Strassera deixa claro, “ainda há muito trabalho”.

“Argentina, 1985” é um trabalho poderosíssimo, emocionante e, ainda assim, divertido. Ricardo Darín é uma força da natureza, um ator de quem a gente sabe o que esperar, mas que nunca parece o mesmo, pois seus personagens são humanos, verdadeiros e, por isso, complexo. Santiago Mitre conduz o filme com maestria, dosando revelações, sabendo exatamente onde usar o humor e onde usar o peso dos fatos. Assim, “Argentina, 1985” se torna um filme indispensável ao apresentar para um novo público uma história, um exemplo do que deveria ter sido feito (e do que ainda pode ser feito) por aqui.

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