Publicado em 30 de julho de 2020 às 08:44
O Tribunal Penal Internacional (TPI), ao qual têm sido pedidas investigações sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro na pandemia de coronavírus, recebe de 500 a 900 requisições semelhantes por ano, das quais mais de 90% são descartadas. >
Poucas dezenas são submetidas a um exame preliminar que pode levar anos, antes ainda de ser aberta a investigação. Por ano, cerca de dez são efetivamente apuradas, das quais só parte vira denúncia, é aceita pelo tribunal e se transforma em julgamento.>
Esse funil tem o bico tão estreito porque a corte, criada em 2002, só aceita casos que atendam a pelo menos quatro condições: 1) tratem de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou de agressão na forma como estão definidos pelo Tratado de Roma (que criou o TPI) cometidos a partir de julho de 2002; 2) não haja possibilidade ou vontade do Estado que tem competência de investigar os crimes; 3) tenha gravidade que justifique uma investigação; 4) atenda aos interesses da Justiça (quando a investigação do caso não viola interesses da Justiça).>
No ano passado, 754 (95%) das 795 queixas nem entraram nesse exame preliminar das quatro condições, e é provável que este seja o destino das representações contra Bolsonaro pelas mortes de Covid-19, segundo Sylvia Steiner, única brasileira a integrar até hoje o TPI, de 2003 a 2016.>
>
Embora descreva como desastrosa a condução da política de saúde pública no Brasil, ela aponta que a gravidade apenas não basta; a situação precisa atender à descrição legal. Pelo Tratado de Roma, crime contra a humanidade é um "ataque generalizado ou sistemático contra a população civil".>
"Não precisa necessariamente ser um ataque armado, mas em regra é traduzido por uma situação de violência ou de coação contra a população civil", diz Steiner. "[No caso da epidemia] Não há, a meu ver, uma política ou um plano de ataque generalizado ou sistemático contra a população civil e, portanto, não há crime contra a humanidade", afirma a juíza.>
Menos ainda de genocídio, segundo ela: "Esse crime exige que se comprove a intenção específica do autor de exterminar um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Não se pode imaginar no atual governo uma intenção de exterminar toda a população brasileira".>
Steiner diz que há outra representação contra Bolsonaro com mais elementos para avançar ao exame preliminar: a que acusa o presidente de incitar crimes contra a humanidade e genocídio de povos indígenas e comunidades tradicionais brasileiras.>
Apresentada em novembro de 2019 pela Comissão Arns e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadhu), ela argumenta que o presidente enfraqueceu a fiscalização e foi omisso em relação a crimes ambientais na Amazônia.>
A juíza Sylvia Steiner diz que "a destruição do meio ambiente, o desmonte dos órgãos de proteção das comunidades indígenas, a falta de punição aos atos de invasão e terras indígenas e ao assassinato de indígenas, e a ausência de políticas adequadas à proteção das comunidades indígenas em relação à pandemia, podem, em tese, justificar uma investigação".>
Segundo a advogada Juliana Viera dos Santos, uma das autoras dessa representação, novas evidências serão acrescentadas neste ano ao pedido de investigação, como a instrução normativa nº 9 da Funai (que, segundo ativistas, permite a titularidade de terras em áreas indígenas protegidas pela legislação brasileira) e o veto de Bolsonaro a medidas de socorro durante a epidemia de coronavírus.>
Ela afirma que as entidades decidiram recorrer ao Tribunal Penal Internacional - que tem sede em Haia, na Holanda - porque "Augusto Aras, procurador-geral da República indicado por Bolsonaro, teria obrigação constitucional de investigar os casos, mas não o faz".>
A análise dos 28 casos que já chegaram à fase de julgamento nos 18 anos de existência da corte mostra, porém, que o processo pode durar mais de dez anos, da queixa à sentença final.>
Foi o que aconteceu no caso do primeiro condenado por crimes de guerra, Thomas Lubanga Dyilo, considerado culpado em 2012 por obrigar crianças a lutar como soldados na República Democrática do Congo.>
O pedido de investigação foi apresentado em março de 2004, e a sentença definitiva, de 14 anos de prisão e reparações de US$ 10 milhões, saiu em dezembro de 2014, após recurso.>
A demora pode ocorrer até mesmo no exame pré-investigação. A queixa de crimes de guerra e contra a humanidade na Colômbia por causa dos conflitos entre guerrilhas, grupos paramilitares e Forças Armadas está nessa fase preliminar desde 2004.>
Segundo Steiner, é uma exceção: "A Procuradoria está monitorando os procedimentos levados a cabo pela Colômbia através dos Juizados Especiais pela Paz [criados no acordo de paz entre o governo e as Farc]". Em geral, a análise inicial dura de um a dois anos.>
Por causa dos longos procedimentos, o Cadhu e a Comissão Arns esperam que a abertura do caso pela Procuradoria crie "uma pressão internacional, econômica e política, que evite o genocídio antes que ele ocorra", segundo Santos.>
Mesmo sem uma sentença final, o envio de investigadores externos e as diligências de apuração já ajudariam a conter danos, diz a advogada.>
Já no caso das queixas que se referem à pandemia de coronavírus, uma esfera mais adequada poderia ser a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), afirma o advogado Paulo Lugon Arantes, que atua em direito internacional e direitos humanos na ONU e em instituições da União Europeia.>
Enquanto o TPI julga indivíduos por crimes, a CIDH julga políticas governamentais que violam direitos humanos. Apura responsabilidade política ou administrativa.>
Arantes lembra também que já houve no Brasil uma condenação por genocídio, no caso do Massacre de Haximu, em que garimpeiros foram condenados pelo massacre de indígenas.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta