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Polícia dos EUA não vê relação entre morte de cientista chinês e pesquisa sobre coronavírus

Polícia dos EUA não vê relação entre morte de cientista chinês e pesquisa sobre coronavírus

De acordo com autoridades americanas, a morte do homem está provavelmente relacionada a uma briga pessoal, envolvendo um caso amoroso

Publicado em 26 de maio de 2020 às 17:51

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Polícia dos EUA não vê relação entre morte de cientista chinês e pesquisa sobre mecanismo de infecção pelo novo coronavírus
Polícia dos EUA não vê relação entre morte de cientista chinês e pesquisa sobre mecanismo de infecção pelo novo coronavírus. (Projeto Comprova)

Texto do site Conexão Política, publicado no dia 18 de maio, confunde o leitor ao relacionar o assassinato de um cientista sino-americano ao seu trabalho de pesquisa com o novo coronavírus. Segundo autoridades americanas, a morte do homem está provavelmente relacionada a uma briga pessoal, envolvendo um parceiro(a) íntimo(a).

Bing Liu, de 37 anos, foi morto a tiros dentro de casa na cidade de Ross Township, no estado americano da Pensilvânia. Ele era pesquisador do Departamento de Biologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh, tinha pós-doutorado em Ciências da Computação e sua pesquisa se concentrava em sistemas computacionais aplicados à Biologia. O trabalho consistia em desenvolver modelos de simulação e análises técnicas para estudar a dinâmica de processos biológicos. De acordo com um comunicado divulgado pelo Departamento de Biologia da universidade, Liu estava concentrado em entender como o SARS-CoV-2, o novo coronavírus, age para infectar as células e as complicações que causa no organismo.

Liu foi encontrado pela esposa na tarde de 2 de maio, baleado na cabeça, pescoço e tórax. As portas da casa estavam abertas e nada foi levado. Perto dali, o corpo de um engenheiro de software de origem chinesa naturalizado americano, Hao Gu, de 46 anos, foi encontrado dentro de um carro.

As autoridades policiais de Ross Township concluíram que Gu matou Liu e se suicidou em seguida. "Nossa investigação aponta que os acontecimentos de 2 de maio envolvendo as mortes de Bing Liu e Hao Gu são resultado de uma longa disputa entre os dois homens envolvendo um parceiro (a) íntimo (a)", informa uma declaração publicada na página de Facebook do Departamento de Polícia de Ross Township no dia 6. "Encontramos 'zero' evidências de que esse evento trágico tenha alguma relação com o trabalho (de Bing Liu) na Universidade de Pittsburgh, com qualquer pesquisa sendo conduzida na Universidade de Pittsburgh e com a crise sanitária que, no momento, afeta os Estados Unidos e o mundo", completa o comunicado.

O conteúdo verificado também relembra as mortes de outros profissionais que não têm qualquer ligação com Bing Liu, como o suicídio de uma médica que trabalhava no combate à covid-19 em um hospital de Nova Iorque e acidentes envolvendo três médicos russos.

As informações foram checadas pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 24 veículos de imprensa do Brasil para combater desinformações, dessa vez, com foco no coronavírus. Participaram das etapas de checagem e de avaliação da verificação jornalistas de A Gazeta, SBT, Estadão, UOL e Jornal do Commercio. 

POR QUE INVESTIGAMOS ISSO?

O Comprova verifica conteúdos que tenham grande viralização, caso do texto em questão, que registrou dezenas de milhares de interações desde a sua publicação. Esse conteúdo se insere em uma lista com diversas teorias conspiratórias envolvendo o novo coronavírus, que têm como destaque a China, país onde as primeiras infecções ocorreram.

Desde o início da pandemia, o Comprova verificou postagens que alegavam, falsamente, que as maiores cidades da China não tiveram infecções pelo coronavírus, que o vírus causador da Covid-19 seria artificial, que a China teria contaminado máscaras e que essas seriam distribuídas em São Paulo.

O Comprova também verificou uma teoria conspiratória segundo a qual a vacina para o novo coronavírus teria um microchip para rastrear a população. Todos esses conteúdos eram falsos.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado; que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

COMO VERIFICAMOS?

Buscamos informações na imprensa local e no Departamento de Polícia de Ross Township para saber se a morte de Bing Liu tinha realmente ocorrido, e em quais circunstâncias. Também entramos em contato, por e-mail, com o detetive que investiga o caso, o Sargento Brian Kohlhepp.

Em seguida, procuramos informações no site da Universidade de Pittsburgh sobre o currículo do cientista e seu trabalho com Ciência da Computação aplicada à Biologia. Também tentamos conversar com a supervisora de Liu na Universidade de Pittsburgh, Ivet Bahar. Até o momento da publicação, nem Bahar e nem o Sargento Kolhepp tinham respondido.

Por último, fomos atrás de detalhes sobre as outras mortes citadas no texto. Encontramos relatos publicados na imprensa americana e entrevista com a família de uma das vítimas, a médica Lorna Breen.

VERIFICAÇÃO

O texto publicado pelo site Conexão Política reúne informações coletadas em veículos de imprensa americanos, como a emissora de televisão WTAE, afiliada da ABC para a região de Pittsburgh. Mas traz alguns erros de informação, como a profissão da vítima: ele era formado e tinha doutorado em Ciências da Computação, não em Biologia. O conteúdo ainda confunde o nome da rua em que Liu morava, Elm Court, com a cidade, Ross Township, município residencial perto de Pittsburgh, Pensilvânia. Por fim, o carro com o corpo de Hao Gu não foi encontrado em frente à casa de Liu.

O trecho sobre a pesquisa de Liu veio do comunicado oficial da universidade, mas exagera ao dizer que ele “estava prestes a fazer descobertas” sobre o novo coronavírus.

QUEM É BING LIU?

Pesquisador e professor-assistente do Departamento de Biologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh, Bing Liu era natural da China. Formado em Ciências da Computação e com doutorado (PhD) pela Universidade Nacional de Singapura, fez pós-doutorado no Departamento de Ciência da Computação da Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Desde 2016, trabalhava na Universidade de Pittsburgh, sob a supervisão de Ivet Bahar.

Liu foi co-autor de mais de 30 artigos, quatro deles só em 2020. Sua pesquisa se concentrava em sistemas computacionais aplicados à Biologia. O trabalho consistia em desenvolver modelos de simulação e análises técnicas para estudar a dinâmica de processos biológicos.

De acordo com Bahar, Liu estava começando a trabalhar em um modelo de computador para entender o comportamento do SARS-CoV-2 no organismo. “Ele começava a ter resultados interessantes, tentando entender o mecanismo da infecção. Vamos continuar o que estava fazendo”, disse em entrevista ao jornal Pittsburgh Post-Gazette.

O QUE DIZ A POLÍCIA?

A polícia foi chamada pela mulher de Bing Liu, que encontrou o corpo do marido ao voltar para casa na tarde do sábado, 2 de maio. Ele estava sozinho na residência do casal. Fazia um dia ameno de primavera e, por isso, as portas da casa estavam abertas, o que facilitou o acesso do assassino. Não havia sinal de luta e nenhum objeto foi roubado. A autópsia concluiu que Liu havia sido baleado na cabeça, no pescoço e no tórax.

Já o corpo de Hao Gu estava dentro do carro dele, a cerca de 900 metros da casa de Liu. A perícia determinou que Gu havia cometido suicídio. Autoridades policiais concluíram que os dois homens se conheciam e apontam como causa do crime uma disputa amorosa. As autoridades locais informaram o FBI e o consulado chinês sobre o caso por envolver um cidadão estrangeiro.

polícia de Ross Township é categórica ao afirmar que a morte não tem relação com o trabalho de pesquisa de Bing Liu com o novo coronavírus, tanto na declaração oficial quanto em entrevistas à imprensa local do policial responsável pelo caso, o sargento Brian Kohlhepp. Esta posição aparece, inclusive, na reportagem para a WTAE-ABC citada pelo Conexão Política, mas o texto não informa isso ao leitor em nenhum momento.

HOUVE OUTRAS MORTES?

Outras mortes de profissionais da saúde também são citadas no artigo como sendo "misteriosas".

Uma delas é a da doutora Lorna Breen, 49 anos, médica chefe do pronto-socorro do NewYork-Presbyterian Allen Hospital, em Manhattan, e que tratava de pacientes com o novo coronavírus.

Ela foi encontrada morta na casa onde estava com a família após ter contraído e se recuperado da Covid-19. Apesar de trágica, a morte da médica não é misteriosa. Tanto o pai dela quanto a polícia afirmam que ela se suicidou. A família enfatiza, contudo, que foi o estresse relacionado ao trabalho da médica durante a pandemia que a levou a se matar.

Já na Rússia, há dúvida sobre a morte de três profissionais da saúde que "caíram" de janelas desde o início da pandemia. Dois deles morreram e um foi internado em estado grave.

Não há muitas informações sobre a circunstância de cada queda por conta da pouca transparência do governo russo. Por isso, há especulações de que essas pessoas podem ter sido assassinadas por criticar ou discordar da maneira como o governo tem lidado com o novo coronavírus.

Especialistas ouvidos pela CNN e pela Vox ressaltaram que aquelas pessoas estavam sob grande pressão por conta do trabalho durante a pandemia. Todas elas haviam sido diagnosticadas com Covid-19 na ocasião do incidente. Por isso, há também a possibilidade de terem se suicidado.

CONTEXTO

O assassinato do pesquisador ocorre em um momento de significativa tensão nas relações entre os Estados Unidos e a China a respeito de responsabilidades sobre a pandemia do novo coronavírus.

A animosidade teve um desdobramento importante na terça-feira, 19 de maio, quando o governo de Donald Trump ameaçou cortar o financiamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) em virtude da acusação de que a entidade teria favorecido a China e ignorado alertas a respeito do início da pandemia do novo coronavírus.

Páginas e contas em redes sociais que apoiam Trump têm divulgado teorias conspiratórias sobre o novo coronavírus, o que, como destacado acima, tem fomentado uma série de boatos a respeito da pandemia.

Mesmo com as declarações das autoridades policiais norte-americanas, grande parte dos mais de 113 comentários feitos no post publicado na página do Departamento de Polícia de Ross desconfia da morte de um pesquisador envolvido com estudos sobre o novo coronavírus.

As dúvidas se repetem nos comentários de publicações aqui no Brasil, no momento em que a pandemia alimenta um debate político sobre a necessidades de políticas de distanciamento social e o uso de medicamentos, como a cloroquina.

Soma-se à discussão o racismo que envolve muito do que é dito a respeito do novo coronavírus. O Comprova já desmentiu boatos de que o vírus teria sido fabricado por laboratórios na China em mais de uma ocasião. Como no caso de Liu vítima e assassino são de origem chinesa, as especulações sobre a "morte misteriosa" aumentam. Ao se referir ao SARS-CoV-2 como "coronavírus chinês", o texto publicado pelo site Conexão Política reforça esse viés preconceituoso.

ALCANCE

O texto foi publicado pelo Conexão Política e divulgado pelas redes sociais do site de direita. Até o dia 20 de maio, data de publicação desta verificação, o conteúdo teve 2,7 mil interações. No Twitter, foram 6,1 mil curtidas. Um dos editores da página, Davy Albuquerque, também divulgou o link para o texto em seu perfil pessoal no Twitter, com 5,6 mil curtidas.

O maior engajamento aconteceu no Instagram, com mais de 21,3 mil curtidas. O perfil Direita Oficial também compartilhou uma imagem com o título do texto no Instagram e teve 1,7 mil curtidas.

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