Publicado em 7 de julho de 2020 às 08:08
Uma eventual vitória de Joe Biden nas eleições americanas de novembro se tornou o novo foco de preocupação do Palácio do Planalto, que vê numa possível vitória do candidato democrata à Casa Branca o fim do principal alicerce da atual política externa do Brasil e uma ameaça de isolamento internacional. >
Na avaliação de auxiliares do presidente Jair Bolsonaro, que falaram à reportagem sob condição de anonimato, uma eleição de Biden submeteria o governo brasileiro a uma tensão inédita nas áreas de meio ambiente e de direitos humanos e tornaria insustentável a permanência de Ernesto Araújo no Itamaraty.>
A apreensão com o desfecho do pleito nos EUA é tão grande que assessores militares de Bolsonaro defendem que o mandatário reduza os elogios públicos ao presidente Donald Trump conselho que o brasileiro tem ignorado até o momento.>
A avaliação de que uma eventual derrota de Trump seria definidora para a política internacional de Bolsonaro é partilhada por especialistas consultados pela reportagem, que ressalvam, por outro lado, ao menos duas áreas da relação dos EUA com o Brasil em que pouco ou nada mudaria se Biden vencer a disputa: as pressões para conter a influência da China no país e a resistência à abertura do mercado americano para produtos agrícolas brasileiros.>
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As eleições americanas estão marcadas para 3 de novembro. Embora Biden apareça na liderança em pesquisas de opinião, analistas destacam que o jogo ainda está indefinido e que Trump tem tempo e condições para reverter o cenário.>
O consenso entre os interlocutores do governo ouvidos, porém, é que Ernesto comanda uma estratégia de afinidade ideológica com Trump que não contempla um plano B. Ou seja, a continuidade da linha implementada pelo chanceler desde janeiro de 2019 depende da reeleição do atual líder americano.>
"Eles não consideram nenhuma possibilidade de vitória do Biden, segundo suas próprias declarações", diz Rubens Barbosa, embaixador do Brasil nos EUA entre 1999 e 2004. "[A eventual eleição do democrata] vai acarretar um maior isolamento do Brasil, porque não haverá mais o guarda-chuva americano.">
Para Roberto Abdenur, também ex-embaixador do Brasil em Washington (2004-2007), Bolsonaro tomou, "dentro do erro estratégico de alinhamento quase automático com os EUA", uma segunda decisão que torna o panorama mais grave: uma irmanação com o republicano, chegando a dizer "Trump é meu irmão".>
"A situação das relações do Brasil com os EUA governados por Biden se complicaria ainda mais se o governo Bolsonaro continuar com uma vinculação ativa com a extrema direita americana, porque ela é inimiga do ideário dos democratas", acrescenta Abdenur.>
Barbosa prevê como primeira consequência de uma possível vitória do ex-vice-presidente durante as gestões de Barack Obama o fim do que o Planalto alega ser uma relação pessoal e de amizade com o atual líder americano, o principal esteio da política externa do Itamaraty sob Ernesto.>
No entanto, ele pontua que as burocracias tanto do Departamento de Estado quanto do Itamaraty tendem a trabalhar internamente para fazer avançar suas respectivas agendas, qualquer que seja o resultado do pleito nos EUA.>
Também destaca que Biden deve voltar a valorizar a Organização das Nações Unidas (ONU) e que, caso eleitos, os democratas sinalizam a adoção de uma linha parecida à da Europa no campo ambiental: pressão para que empresas considerem padrões de preservação ao decidir onde alocar investimentos.>
Os dois flancos têm potencial para trazer problemas para o Brasil de Bolsonaro. Ernesto é um crítico do sistema multilateral, e o país já enfrenta mesmo sem a oposição do governo Trump fortes pressões internacionais devido ao avanço dos índices de desmatamento na Amazônia.>
Abdenur avalia que o Planalto só teria condições de estabelecer um diálogo menos traumático com um governo americano controlado pelos democratas caso ocorra uma guinada na atual política externa.>
"E isso não será possível enquanto Ernesto e Ricardo Salles [no Meio Ambiente] forem ministros, porque eles se comprometeram com posturas radicais", afirma. "Mesmo assim acho que o dano é irreversível. É improvável, praticamente impossível, que Bolsonaro proceda mudanças nas políticas ambiental e exterior suficientes para viabilizar uma relação construtiva e tranquila com um governo Biden.">
O presidente tem sido pressionado por militares e integrantes da ala pragmática do governo a demitir Salles e Ernesto. O núcleo fardado gostaria de vê-los fora da Esplanada o quanto antes, mas interlocutores no Planalto ouvidos pontuam que a saída do chanceler antes das eleições americanas é algo delicado.>
A identificação com o trumpismo foi tão forte, dizem, que uma mudança por um perfil mais moderado pode ser interpretada pela Casa Branca de Trump como reavaliação da estratégia de alinhamento automático.>
Se uma gestão Biden teria condições de colocar o Brasil sob forte estresse nas áreas de meio ambiente e de direitos humanos ao ponto de alguns compararem o cenário à eleição do democrata Jimmy Carter em 1976 e a pressão exercida à época sobre o regime militar no Brasil , há campos em que analistas esperam poucas mudanças. A disputa geopolítica entre EUA e China é o principal deles.>
Hussein Kalout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos no governo Michel Temer, opina que Biden dará seguimento aos esforços para conter o aumento da influência da China.>
Trata-se de um objetivo de longo prazo do establishment americano e que não depende de colorações partidárias, afirma o ex-secretário. No Brasil, o principal objetivo americano no momento é impedir que a empresa chinesa Huawei venda equipamentos para as redes de 5G.>
Na visão de Kalout, caso Biden chegue à Casa Branca, o novo presidente terá menos paciência com as posturas radicais de Bolsonaro, o que pode deixar o Brasil em situação de desvantagem em negociações estratégicas, entre elas as que envolvem o próprio 5G.>
"O custo para não ser tratado como um pária pela maior potencial mundial vai ser considerável, porque Biden poderá exigir diversas concessões do Brasil".>
O outro ponto que teria poucas mudanças são as barreiras para a abertura do mercado agrícola americano a produtos brasileiros, algo que transcende administrações republicanas ou democratas.>
"Os americanos são muito pragmáticos. A tendência é Biden ser ainda mais protecionista", avalia a consultora Vera Galante, que trabalhou por 19 anos como assessora cultural na embaixada dos EUA em Brasília.>
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