Publicado em 13 de abril de 2020 às 15:25
Durante a pandemia do novo coronavírus, o Ministério da Saúde tem pago variações de até 185% no preço de produtos necessários para abastecer redes públicas federal, estadual e municipal.>
Análise de 34 contratos emergenciais assinados pela pasta desde o início da crise mostra que o órgão desembolsa a empresas distintas valores díspares para materiais com a mesma descrição técnica.>
A maior diferença encontrada foi nas sapatilhas próprias para hospitais. O calçado feito de TNT é usado até o tornozelo para evitar que médicos, enfermeiros e pacientes carreguem microrganismos grudados nas solas para dentro das alas de tratamento.>
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O órgão pagou R$ 0,07 por cada par numa compra de 100 mil itens feita em 2 de março, antes da declaração de pandemia, com um fornecedor. Menos de um mês depois, no dia 26, assinou contrato com outra empresa, pagando R$ 0,20.>
O cobiçado álcool em gel --que teve altas de até 300% no varejo de alguns estados, segundo os Procons-- também está saindo mais caro para o governo. No início da crise, o frasco de 500 ml foi vendido à pasta por R$ 3,91; no início de abril, o valor pulou para R$ 6,68, aumento de 70%.>
No ano passado, ainda em período de normalidade, o recipiente com o dobro do volume (um litro) chegou a ser vendido por R$ 5,48 às redes públicas. A referência consta do banco de preços em saúde, mantido pelo ministério.>
Procurado pela Folha, o Ministério da Saúde atribuiu as variações à flutuação cambial e à questão mercadológica, de oferta e demanda. Afirmou que a compra de insumos, equipamentos e afins é um dos maiores desafios agora.>
Aventais, luvas, toucas e máscaras, exemplificou, são os produtos mais difíceis de encontrar. O ministério admitiu que parte das aquisições que planeja não tem se concretizado por falta de propostas financeiras ou de logística (prazo e entrega) viáveis.>
Segundo o ministério, ao fazer chamamento público para adquirir material ou serviço, não há a determinação de preço máximo, mas elaboram-se valores de referência.>
As variações se repetem em outros itens comprados para abastecer hospitais, como kits para leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), luvas, máscaras, toucas e reagentes.>
Em alguns casos, a pasta não tem conseguido ganhos de escala. Em um contrato, comprou 500 mil máscaras cirúrgicas a R$ 0,96. Em outro, pactuou a aquisição de 20 milhões a R$ 2,08 cada --116% a mais. Segundo o banco de preços, era possível comprar o produto em 2019 a R$ 0,10.>
Para a entrega do lote de máscaras, o ministério firmou contrato de R$ 41,6 milhões com a Aura Pharma Importação e Exportação de Medicamentos. Dono da empresa, Fernando Lacerda André diz que não é mais possível encontrar a mercadoria em fabricantes nacionais e que está negociando o fornecimento na China, o que classifica como "trabalho de Hércules".>
No ano passado, afirma, comprava-se cada item a cerca a de R$ 0,07 de um fornecedor brasileiro. Com a pandemia, preços se inflacionaram, puxados pela valorização do dólar, e a logística para trazer o material está mais difícil.>
Quando fechou o contrato com o governo, a moeda americana estava cotada a R$ 4,63, mas subiu para R$ 5,22, o que encareceu o valor. Além disso, há menos aviões disponíveis.>
"Essa carga corresponde a um Boeing 747 cheio. Antes, o frete estava a US$ 600 mil. Agora, passou para US$ 1,9 milhão. Os Estados Unidos fretaram a maioria dos aviões", diz.>
O uso de navios, opção mais barata, está descartado, ante a necessidade de que as mercadorias cheguem aos hospitais com rapidez.>
Uma vez embarcado, o carregamento tem de cumprir rotas específicas entre China e Brasil para não correr o risco de ser confiscado por outros países no reabastecimento.>
Lacerda afirma que há uma fila imensa de compradores aguardando produtos nas fábricas da China. Apenas para entrar na espera foi necessário pagar quase 50% do valor da encomenda. O restante só pode ser despachado com o pagamento total, mas ele está tentando, sem sucesso, levantar empréstimo em bancos.>
"Com a altíssima demanda global, os equipamentos de proteção individual [EPIs] viraram uma espécie de commodity, fazendo com que ocorra 'leilão' dos produtos. Há risco de perder a mercadoria para os EUA, que chegam à China com cargueiros e pagamento à vista.">
Lacerda calcula que a fatura da fábrica chinesa, convertida para a moeda brasileira, sairá a R$ 36 milhões. Para que os custos não superem o valor acertado com o ministério, está tentando encontrar alternativas para o frete.>
Ele diz que não está diante de uma mera operação comercial, mas de uma missão. "Queremos trazer as máscaras. Precisa ficar claro que não é o empresário que está se aproveitando da situação para fazer dinheiro. A gente corre o risco de tomar prejuízo.">
Nas aquisições do álcool em gel, também não houve ganho de escala. O preço mais baixo (R$ 3,91) foi pago no menor lote, de 100 mil frascos. O mais alto (R$ 6,68) foi praticado num contrato muito maior.>
As variações no valor desse e de outros componentes já são investigadas pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).>
O órgão mapeou os principais participantes dos mercados de saúde em todo o país e solicitou o envio de notas fiscais relacionadas à comercialização de materiais e serviços de uso no combate à Covid-19.>
O Cade quer comparar os preços praticados de novembro de 2019 até agora, com o objetivo de verificar eventuais aumentos abruptos e margens de lucro que possam caracterizar ilícitos concorrenciais.>
Desde o fim de março, o Ministério da Saúde tem alertado para desabastecimento de bens para proteger médicos e outras categorias.>
O aumento acelerado no número de doentes e mortos pela Covid-19 tem pressionado sistemas de saúde ao redor do mundo e impulsionado a aquisição de EPIs, bem como respiradores e leitos de UTI.>
No último dia 1º de abril, o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) afirmou que a maior preocupação da pasta é conseguir comprá-los.>
Na terça (7), ele se reuniu com o embaixador chinês, Yang Wanming, para pedir ajuda ao Brasil. Mandetta disse que a China domina 90% de todo o mercado mundial desses itens e que ficou fechada para a exportação desde o início do ano por conta dos efeitos da pandemia na região.>
O Congresso tem ao menos dois projetos de lei que tratam do congelamento de preços de medicamentos e de um teto de valor a ser cobrado por itens essenciais ao combate do coronavírus.>
O Departamento de Estudos Econômicos do Cade elaborou no início de abril notas técnicas apontando, no entanto, preocupações concorrenciais relacionadas às propostas estudadas no Legislativo.>
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