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Lei que instituiu pau de arara como manifestação cultural não permite retorno do uso dos veículos

Lei que instituiu pau de arara como manifestação cultural não permite retorno do uso dos veículos

Embora tradicional em cidades do interior do Nordeste, a utilização é proibida desde 2014 por resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A lei sancionada não faz qualquer mudança quanto a isso.

Publicado em 27 de outubro de 2023 às 17:40

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Lei que instituiu pau de arara como manifestação cultural não permite retorno do uso dos veículos
Lei que instituiu pau de arara como manifestação cultural não permite retorno do uso dos veículos. (Projeto Comprova)

Conteúdo investigado: Vídeo mostra trechos de uma solenidade do governo federal com a presença do presidente Lula e outras autoridades. O narrador do conteúdo diz que o povo nordestino “pode comemorar”, pois o “governo petista oficializou o pau de arara patrimônio cultural brasileiro”. O autor ainda cita supostos financiamentos para meios de transporte como ônibus e metrôs destinados a países como Cuba e Argentina, dando a entender que o governo estaria, ao mesmo tempo que financia obras no exterior, incentivando o transporte precário no Brasil. Na sequência, aparecem trechos de declarações de Lula, do deputado José Guimarães (PT) e do padre Cícero José da Silva, da Diocese do Crato, no Ceará, durante a cerimônia.

Onde foi publicado: Kwai e Telegram.

Contextualizando: Em 1º de agosto de 2023, o presidente Lula (PT) sancionou uma lei que torna a tradição do uso do pau de arara em romarias religiosas como manifestação cultural e imaterial do Brasil. No dia, foi realizada uma cerimônia em Brasília junto a lideranças políticas e religiosas do Ceará. Dentre os que aparecem nos registros fotográficos, estão os deputados federais José Guimarães (PT) e Yury do Paredão (sem partido), o atual prefeito de Juazeiro do Norte, Gledson Bezerra (Podemos) e o ex-gestor do município, Arnon Bezerra (PDT). O padre Cícero José da Silva, reitor da Basílica Santuário Nossa Senhora das Dores, da Diocese do Crato, também compareceu.

No encontro, Guimarães, que é o autor da proposta, ressaltou que o transporte hoje mudou, mas ficaram “o legado e a cultura”. “Um projeto reconhecendo o transporte pau de arara como patrimônio cultural e imaterial do Brasil, essa é a natureza do projeto”, disse.

Em nota enviada ao Comprova, o deputado reiterou o posicionamento. Ele ressaltou que a lei não significa o retorno do veículo ou “qualquer tipo de regularização junto ao Código Brasileiro de Trânsito”, como enganam posts virais nas redes sociais. “Trata-se claramente de uma homenagem aos romeiros e romeiras que, por décadas, utilizaram esse transporte para o turismo religioso, criando assim uma tradição histórica que ultrapassa gerações”, afirmou. “Tentar distorcer esse fato configura, no mínimo, uma atitude de má fé e merece ser repudiada inclusive com medidas judiciais”, disse.

A Lei Nº 14.641 declara como “manifestação da cultura nacional a tradição do uso, em romarias religiosas, do transporte conhecido como “pau de arara”, como está disponibilizado no Diário Oficial de 2 de agosto deste ano. Não há qualquer menção a uma mudança no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ou invalidação de resoluções do Conselho Nacional de Trânsito.

Desde 2014, é proibido o transporte de pessoas em pau de arara, que é uma adaptação de carrocerias de caminhões usadas para comportar passageiros durante o deslocamento. Na resolução Nº 508 de novembro de 2014, o conselho instituiu os requisitos de segurança para a circulação, a título precário, de veículo de carga ou misto transportando passageiros no compartimento de cargas.

A resolução revogou uma determinação anterior, emitida em 1998, que permitia o uso dos veículos em algumas situações. Por meio de nota, o Ministério dos Transportes, pasta à qual o conselho é vinculado, destacou a obrigatoriedade dos bancos revestidos com espuma, presença de encosto de cabeça e cintos de segurança para todos os ocupantes, devidamente fixados na estrutura da carroceria, além de boa qualidade da carroceria, presença de barras de apoio, proteção lateral, entre outros.

“Deste modo, esta resolução é explícita quanto aos requisitos necessários para a possibilidade de utilização destes veículos, como é o caso do projeto sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva”, apontou a pasta.

Ficou proibida, com a resolução, a utilização de veículos de carga tipo basculante e boiadeiro.

O descumprimento da medida, ou seja, o transporte de pessoas nesse tipo de veículo, acarreta ao proprietário ou condutor do veículo penalidades e medidas administrativas. Reportagem do UOL, publicada em 2022 mostrou que, apesar de proibido, o transporte ainda é usado em alguns locais.

Pau de arara faz parte da cultura de romeiros

Os veículos do tipo pau de arara eram tradicionalmente usados em diversas regiões do Nordeste e estão ligados especialmente ao êxodo rural e às romarias. Atualmente, mais de quatro milhões de pessoas utilizam todos os anos o transporte em romarias, como a de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, e de São Francisco das Chagas, em Canindé, ambas no Ceará, e a de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Diante da proibição, grupos de romeiros pedem ao Contran medidas mais simplificadas que garantam a segurança, sem descaracterizar este meio de transporte.

Padre Cícero José da Silva, reitor da Basílica Santuário Nossa Senhora das Dores, da Diocese do Crato, divulgou carta, quando houve a sanção da lei, e ressaltou o caráter cultural do transporte. “Trazemos na memória a coragem dos primeiros peregrinos que iam a Juazeiro do Norte nas carrocerias adaptadas dos caminhões e, através da experiência de fé, contribuíram para a construção da identidade religiosa e cultural da cidade, além do desenvolvimento econômico.”

A Diocese do Crato, inclusive, mantém, em seu site, registros de festas antigas que tinham o uso do transporte. “Como de costume os romeiros enfeitam os carros, ônibus, caminhões pau de arara. Colocam a imagem do padre Cícero, da Mãe das Dores, usam bandeirolas nas mais diversas cores para demonstrarem a alegria por estarem no Juazeiro do ‘Padim Ciço’. Os juazeirenses, por sua vez, ficam nas calçadas das ruas aguardando os bombons, pirulitos e pipocas jogados pelos romeiros que estão nos transportes”, escreve uma publicação de setembro de 2016.

Empréstimos e falta de água já foram esclarecidos pelo Comprova

O autor da publicação também faz alegações relacionadas a supostos financiamentos para meios de transporte como ônibus e metrôs destinados a países como Cuba e Argentina. Em janeiro deste, o presidente Lula afirmou que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) voltará a financiar projetos de desenvolvimento e engenharia em países vizinhos. A fala aconteceu durante pronunciamento em Buenos Aires, na Argentina, ao lado do então presidente argentino, Alberto Fernández.

No mesmo dia, Lula disse que ele e empresários brasileiros estariam interessados na conclusão da rede de tubulação para transporte de gás natural argentino. Ele afirmou que iria criar condições para “ajudar” nas obras, com o BNDES atuando como financiador do empreendimento. No entanto, não houve nenhuma formalização para a retomada de financiamentos neste sentido.

A ligação entre empréstimos e financiamentos a países vizinhos com um suposto descaso com o Brasil é uma crítica comum aos governos do PT. O tema é comum em peças de desinformação. O Comprova já investigou vídeo que citava 20 operações que supostamente teriam sido financiadas pelo BNDES entre os anos de 2009 e 2014 (durante os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff). A peça apresenta informações falsas referentes aos valores financiados, além de atribuir ao banco sete construções que não tiveram acesso a recursos de linhas de crédito do banco.

O fornecimento de água no Nordeste do país também tem sido um tema recorrente de desinformação em posts compartilhados nas redes sociais. No vídeo alvo desta checagem, o autor cita, sem dar detalhes, que “cortaram a água” do povo nordestino.

O Comprova já demonstrou, por exemplo, como é o funcionamento do processo de captação e bombeamento de água para estados do Brasil e que o governo federal não bloqueou água na região. Também mostrou que a polarização intensifica a desinformação sobre a transposição do Rio São Francisco, a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil, que atende estados nordestinos.

Os autores dos conteúdos também propagam informações fora de seu contexto original, para fazer alegações enganosas e falsas a respeito deste tema . Neste sentido, o Comprova mostrou, recentemente, que protesto na Bahia não foi motivado por falta de água, nem tem relação com Governo Lula.

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: A postagem analisada aqui, como foi veiculada sem a devida contextualização, dá a entender que o uso do veículo poderá ser retomado no Brasil. Além disso, ao mencionar investimento em outros países, o vídeo possibilita a interpretação que haveria uma ação direta do governo federal para desfavorecer a aplicação de recursos na região em comparação com países como Argentina e Cuba.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova tentou contato com o autor da publicação, mas não houve retorno até a publicação desta verificação.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 26 de outubro, a publicação no Kwai acumulava mais de 106 mil visualizações, 10,5 mil curtidas e 3,4 mil comentários. O conteúdo também vem sendo disseminado no Telegram.

Como verificamos: A verificação buscou no Google pelos termos “Lula + pau de arara”, o que resultou em links de reportagens publicadas na imprensa e que tratam da solenidade que marcou a assinatura da lei que torna a tradição do uso do pau de arara em romarias religiosas como manifestação cultural e imaterial do Brasil, entre as quais, a do Correio Braziliense, Metrópoles e da própria agência de notícias do governo federal.

Pelos mesmos termos, mas em busca no YouTube, localizamos a transmissão da solenidade.

O Comprova também buscou a assessoria de imprensa do deputado federal José Guimarães, autor da lei sancionada, e com o Ministério dos Transportes.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

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Outras checagens sobre o tema: O conteúdo contextualizado pelo Comprova também já foi checado pelo Boatos.org, que mostrou ser falsa a volta do uso do pau de arara como meio de transporte. O governo federal e suas políticas são, constantemente, alvos de desinformação. O Comprova já verificou que o governo Lula assinou acordo de cooperação técnica com Autoridade Palestina, não com o Hamas; que Alckmin não sugeriu acabar com Bolsa Família; e que o presidente não instituiu banheiro unissex nas escolas.

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