Publicado em 8 de abril de 2022 às 09:47
O terno e a gravata dividem lugar com cocares e colores tradicionais. Em vez da sala fechada, a amplidão da aldeia e a força dos rituais sagrados. Quando chegou a hora de receber a carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o cacique Jorge Tabajara, 37, não pensou duas vezes: decidiu levar a solenidade à aldeia Imburana, comunidade de Poranga, no Ceará, onde ele cresceu e se firmou como liderança.>
"Tantas vezes eu saí da minha aldeia chorando, pensando no risco da cidade grande e da nossa situação de vulnerabilidade. Então, quis retornar e ter o meu povo como testemunha de que o sofrimento e o sacrifício valeram a pena.">
O advogado faz parte de uma geração de indígenas que encontrou no direito uma forma de defender as garantias que a Constituição prevê aos povos originários. São profissionais que muitas vezes se veem obrigados a sair de suas aldeais para conseguir estudar, mas voltam levando a carteirinha da OAB e a vontade de proteger seus territórios.>
Foi esse o caso de Jorge, que precisou morar em Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, para cursar direito na capital cearense. Embora estivesse distante de sua comunidade, continuou lutando por ela. O indígena diz que, não raro, precisou sair durante as aulas para participar de ações contra a presença de posseiros nos territórios de seu povo.>
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Quatro anos após ter conseguido a carteirinha da OAB, o cacique ajudou a fundar no ano passado o escritório Ybi - palavra que significa terra, chão que se pisa, em tupi. Considerado o primeiro escritório de direito indígena do Ceará, nasceu para prestar assistência aos povos originários do estado, que abriga pouco mais de 26 mil indígenas, divididos em 14 etnias. "Hoje, a defesa do nosso direito não é feita mais com o arco e com a flecha. Hoje, se não nos apoderarmos do ordenamento jurídico do nosso país, certamente seremos enganados. Vivemos em um Estado que veda os olhos quando a questão é direito indígena.">
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a regularização de terras indígenas está travada. Ainda durante a campanha, o mandatário disse que não haveria mais demarcação desses territórios no que dependesse dele. >
Segundo um relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) divulgado no ano passado, o presidente de fato não homologou nenhuma terra indígena desde que assumiu, fato inédito entre os presidentes pós redemocratização. A Constituição diz que é dever da União demarcar esses territórios.>
Em nota, a Funai (Fundação Nacional do Índio) diz aguardar uma definição do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o parecer nº 001/2017 e o recurso extraordinário nº 1017365 - ambos versam sobre a tese do marco temporal. "A Funai entende que tal indefinição deixa um vácuo regulamentar que resulta em insegurança jurídica, o que a impede de dar seguimento aos processos de demarcação em curso.">
Ambientalistas e lideranças indígenas temem que, se aprovado, o marco temporal imponha ainda mais entraves à demarcação. Segundo essa tese, os indígenas só teriam direito aos territórios que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição. Eles argumentam, porém, que muitos povos foram expulsos de seus territórios antes desse período e que eles ficariam sem a possibilidade de reavê-los.>
Uma das lutas de Samara Pataxó, 32, é justamente contra essa tese. Nascida na terra indígena Coroa Vermelha, na Bahia, a advogada decidiu fazer direito por enxergar na profissão uma forma de lutar pelo acesso à terra. "Embora Coroa Vermelha tenha sido demarcada no final da década de 1990, houve problemas e várias áreas indígenas estão fora dessa demarcação, ou seja, ainda estão pendentes", explica ela, cuja luta pelo território a fez chegar ao Supremo.>
Em setembro do ano passado, ela fez uma sustentação oral na corte se posicionando contra o marco temporal. "Foi um momento de muita responsabilidade, mas de muito prazer. Foi a concretização de um sonho, porque virei advogada justamente para fazer isso: defender os direitos dos povos indígenas.">
Outra conquista importante aconteceu em 2020, quando Samara conseguiu barrar a reintegração de posse contra uma comunidade próxima à sua aldeia. "Isso foi no auge da pandemia, sendo que existem decisões do STF que proíbem reintegrações durante esse período", diz ela. A advogada lembra que as ações afirmativas ajudaram a formar uma geração de indígenas com diploma universitária. Ela própria foi cotista na UFBA (Universidade Federal da Bahia), instituição em que se formou em 2016.>
Em 2011, o Brasil tinha 9.756 universitários indígenas, número que saltou para 56.257 em 2019 - um crescimento de 476,6% em oito anos. "Jovens indígenas entrarem nas universidades foi um desejo das lideranças mais velhas para que a gente pudesse atuar na luta. Nós, advogados, somamos em uma luta que é histórica.">
De acordo com Alvaro de Azevedo Gonzaga, professor de direito da PUC-SP, a atuação de advogados indígenas é uma forma de romper com uma prática jurídica de raízes europeias e coloniais. "O indígena que busca o saber jurídico busca construir uma teoria decolonial do direito e, para além disso, busca construir essa dimensão de não subalternização, como acontecia na legislação brasileira sobre esses povos até a Constituição de 1988" diz ele, que tem ascendência guarani kaiowá e escreveu o livro "Decolonialismo Indígena".>
O acadêmico explica que, durante séculos, as leis do país foram pensadas para perseguir ou tutelar os indígenas. Na colônia, diz ele, havia decretos que autorizavam a captura desses grupos. Com a Independência, em 1822, a situação pouco muda. "A Constituição de 1824 não trazia direitos nem garantias aos povos originários. Continuava mantendo-os na condição de subalternos e isso vai avançando ao longo dos anos. Só na Constituição de 1946 que a União começa a legislar sobre a incorporação dos indígenas ao que chamavam de comunhão nacional.">
Gonzaga diz que essa visão integracionista buscava eliminar características culturais desse grupo, algo praticado também na ditadura militar. "É em 1988, com a Constituição, que se tem a cidadania aos povos indígenas.">
O advogado Eliesio Marubo, 42, lembra que lideranças indígenas desempenharam papel importante na Constituinte, garantindo mais participação política e social aos povos originários. "A nossa geração tem utilizado o caminho sedimentado por essas lideranças do passado. Isso tem feito com que a gente seja uma voz firme contra um sistema contrário à nossa forma tradicional de viver.">
Eliesio decidiu ainda jovem cursar direito. Ele conta que, aos 16 anos, foi enviado a Cruzeiro do Sul, no Acre, com a missão de estudar e retornar com conhecimentos que auxiliassem sua comunidade, a aldeia Maronal, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, região que abriga o maior número de povos isolados do mundo.>
Nas últimas décadas, essas populações se tornaram alvo da atuação de missionários, que entram nas comunidades para tentar convertê-las. Representando a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), Eliesio conseguiu em 2020 que a Justiça determinasse a expulsão dessas pessoas e proibisse que elas tivessem contato com os isolados.>
"As nossas espadas têm sido a Constituição, o domínio da língua e do pensamento de vocês para fazer a defesa dos nossos interesses. Interesses esses que estão estabelecidos no texto constitucional. De fato, o direito tem sido a última trincheira de defesa para a existência dos povos indígenas", diz ele.>
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