Publicado em 16 de agosto de 2022 às 11:09
Conteúdo analisado: Vídeo da candidata ao Senado Damares Alves (Republicanos), ex-ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (PL), em que ela acusa a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de “motivar” adolescentes e jovens a usar drogas. No vídeo, publicado no YouTube, Damares lê conteúdo de cartilha que trata sobre o uso de entorpecentes e, ao fundo, aparecem imagens de trechos destacados da publicação. Há também uma inserção de fotos de Lula, candidato à Presidência da República, com um fundo preto e as inscrições: “Governo Lula ensinava em cartilha como os jovens deveriam usar crack.” A ex-ministra diz que essa era a política de prevenção ao uso de álcool e drogas na administração petista. >
Comprova Explica: O vídeo de Damares Alves colocou em debate a prevenção ao uso de álcool e outras drogas durante as administrações do PT. No vídeo, a ex-ministra afirma que, no governo Lula, adolescentes e jovens eram ensinados a utilizar entorpecentes. O discurso saiu do YouTube e ganhou as redes sociais, com discussões sobre a política adotada na gestão petista.>
A cartilha apresentada pela ex-ministra de fato foi produzida pelo Ministério da Saúde, à época sob o comando do ministro José Gomes Temporão, no governo Lula, mas tinha como foco serviços de saúde que acolhem usuários de drogas e dependentes químicos. Seu objetivo era auxiliar os profissionais dedicados a lidar com pessoas que se recusam a abandonar o uso de entorpecentes, mas que desejam evitar outros problemas correlacionados, como doenças transmissíveis, por exemplo. Ações neste sentido constituem a chamada política de redução de danos.>
Com a repercussão do caso, o Comprova decidiu explicar o que significa a política de redução de danos divulgada por Damares e que havia sido implementada nos governos do PT.>
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Os trechos da cartilha lidos por Damares Alves fazem parte do álbum seriado “Prevenção às IST, HIV/Aids e Hepatites entre pessoas que usam álcool e outras drogas”, segundo Maria Angélica de Castro Comis, psicóloga e integrante da organização Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (Reduc).>
A especialista informa ao Comprova que o material foi veiculado em 2008 e era destinado a profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que atuavam junto aos usuários e dependentes químicos.>
Conforme informou o Ministério da Saúde em Nota Técnica de janeiro de 2009, ao responder a um requerimento do então deputado federal Miguel Martini, que era do PHS naquele período, foram produzidos 10 mil álbuns seriados ao custo de R$ 32.200 (R$ 3,22 cada) e, na época, 1.356 ainda estavam em estoque. A distribuição foi feita por mala direta aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), aos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) e aos Serviços de Atenção Especializada em HIV/Aids (SAE).>
Acompanhava o material uma orientação expressa para que fossem utilizados exclusivamente por profissionais de saúde e organizações da sociedade civil para o trabalho dirigido às pessoas que usam álcool e outras drogas, em serviços específicos e em campo. O Comprova teve acesso ao documento via Lei de Acesso à Informação, fornecido pela Câmara dos Deputados.>
O álbum compunha um kit lançado em 10 de outubro de 2008 que incluía cartão para qualquer usuário de substâncias psicoativas, com espaço para anotação do endereço do serviço de referência, e cartaz com informações referentes à redução de danos.>
O objetivo do material era servir de apoio ao trabalho dos profissionais de saúde e dos agentes que atuam com redução de danos na abordagem dos usuários de álcool e outras drogas. “O conjunto de materiais foi concebido para contribuir na melhoria do acolhimento das pessoas que usam álcool e outras drogas dentro do sistema de saúde e para combater o preconceito, o estigma e a discriminação”, informa a nota técnica.>
Segundo o documento, o acolhimento de qualidade possibilita a promoção da saúde, estrutura vínculos de confiança, fortalece a auto-estima, estimula o usuário a cuidar de si. “Para quem usa álcool e outras drogas, isso pode significar redução de vulnerabilidade, prevenção de doenças, diminuição/interrupção do consumo de substâncias psicoativas”, conclui o texto.>
Doutora em Saúde Coletiva e pesquisadora do Grupo de Estudos em Álcool e Outras Drogas da Universidade Federal de Pernambuco (GEAD/UFPE), Rossana Rameh acrescenta que a cartilha visava atingir usuários de drogas pesadas, inclusive injetáveis, e o segmento específico de profissionais que lidam com esse público. “Não é uma tela para ser distribuída na escolinha ou em qualquer serviço de saúde”, afirma. “Era criado e feito para usuários de drogas, pessoas que dizem ‘eu uso e não quero parar, não tenho condições de parar, quero usar sem me ferrar tanto, o que eu faço?’”, diz.>
Rossana Rameh ressalta que a redução de danos é uma política feita diretamente com o usuário de drogas e considera que a sociedade nunca esteve e nunca estará livre das drogas. Assim, afirma, a perspectiva levada em conta é que as pessoas vão continuar usando drogas independentemente de o governo manter ou não uma política proibicionista.>
A especialista diz, ainda, que a redução de danos é um conjunto de estratégias e intervenções que visam cuidar das pessoas que usam drogas, inclusive incentivando-as a parar de usá-las, se esse for o desejo delas. Essa política, continua Rossana, não nega abstinência, mas também considera que algumas pessoas não vão desejar parar ou não poderão parar de imediato. “Isso é uma coisa mais complexa, mas que a gente precisa dizer que algumas pessoas vão usar drogas na vida”.>
Para Maria Angélica de Castro Comis, que atua na área, a redução de danos é uma política que busca melhorar a qualidade de vida das pessoas, principalmente aquelas que usam drogas, além de prevenir as infecções sexualmente transmissíveis. “A redução de danos tem como objetivo modificar o padrão de uso de drogas, reduzir os agravos de saúde e sociais das pessoas mais vulneráveis, como usuárias de drogas, profissionais do sexo, pessoas em situação de rua, entre outros”, diz.>
A psicóloga reforça que a redução de danos não tem como principal objetivo levar o usuário à abstinência, mas sim incentivar o cuidado. “A redução de danos pode ser um caminho para a abstinência, mas por ser uma política com baixa exigência muitas vezes é arbitrariamente acusada de apologia ao uso de drogas”, afirma Maria Angélica.>
Wander Wilson Júnior, doutor em Ciências Sociais e pesquisador de drogas, saúde mental e redução de danos, afirma o mesmo. Segundo ele, a redução de danos não se trata de incitar ou não o uso de entorpecentes, mas falar francamente sobre o que é o uso e lidar com uma realidade concreta que é a existência de usuários.>
“Essa erradicação e esse mundo sem drogas é uma utopia que nunca se cumpre, nunca vai se cumprir, e inclusive isso tem um papel em manter o que se chama de guerras às drogas, esse fracasso que nunca se cumpre, se mantém sempre como promessa e a resposta para essa promessa é sempre mais encarceramento, sempre menos conversa franca”, argumenta.>
O especialista explica que a redução de danos é uma política pública de saúde, bem como uma tentativa ética de cuidado com as pessoas que usam drogas. “Você vai ver o usuário como uma pessoa que usa drogas, e se ele tiver sofrimento relacionado ao uso de drogas e o uso for considerado problemático, seja ele diagnosticado como dependência ou não, você vai montar, junto com essa pessoa, possibilidades de cuidado para produzir uma vida que vale a pena ser vivida”, afirma.>
Ele destaca, porém, que este processo é feito de forma conjunta. “Você não vai impor uma forma de cuidado e uma moral de cima para baixo para essa pessoa, mas vai construir junto com ela”, diz: “Algumas pessoas não vão querer parar de usar drogas, outras vão colocar isso como uma meta e irão demorar algum tempo, terão suas dificuldades, e você não vai colocar a abstinência de drogas como uma exigência de cuidado com essa pessoa”.>
Wander Wilson Júnior resgata a história da estratégia de redução de danos retornando ao ano de 1926, quando um relatório inglês chamado Rolleston tentou formalizar a prática, a partir da experiência de soldados em guerra.>
Muitos combatentes voltaram ao seu país dependentes de opioides (morfina) e alguns deles não conseguiam parar de utilizá-los, mesmo querendo, o que atrapalhava a vida que levavam.>
“Se formalizou uma possibilidade clínico-terapêutica de se ter uma prescrição médica de opioides com doses manejáveis para que a pessoa continuasse consumindo opioides, mas mantendo a sua vida, a sua rotina corriqueira, de forma produtiva”.>
No Brasil, aponta Wander Wilson Júnior, o ano de 1989 foi um marco importante quando a Prefeitura de Santos, no litoral de São Paulo, tentou implementar uma política de distribuição de seringas descartáveis na região portuária, considerando a alta incidência de infecção por HIV decorrente do consumo de cocaína injetável. “Mas essa política teve que retroceder baseada numa pressão moral que envolvia mídia, religião e a sociedade de modo geral”, afirma.>
Em março de 1997, São Paulo aprovou a primeira Lei Estadual de Redução de Danos (9.758/97). Sete anos depois, em outubro de 2004, a Portaria 2.197 integra a Redução de Danos ao SUS e as ações são regulamentadas pelo Ministério da Saúde pela Portaria 1028, de julho de 2005. No mesmo ano, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas a Política Nacional Sobre Drogas, com um capítulo destinado à redução de danos. Já em 2006, foi sancionada a Lei 11.343, que excluiu a pena de prisão para usuários de substâncias ilícitas.>
Após a publicação desta verificação, o Ministério da Saúde enviou resposta ao contato anterior da equipe do Comprova. Na nota, o órgão não informa se adota, atualmente, alguma política de redução de danos. Além disso, o ministério não deu um posicionamento acerca das afirmações feitas pela ex-ministra Damares. O Ministério informou apenas sobre medidas de atendimento psicossocial realizadas atualmente.>
A política de redução de danos não é uma exclusividade do Brasil. Vários países implementaram a estratégia, visando minimizar os impactos do uso de drogas. Maria Angélica afirma que a medida é amplamente adotada em países como Canadá, Alemanha, Suíça, Austrália, Estados Unidos, Holanda, Espanha, Portugal e França. Nesses locais, segundo ela, as políticas de redução de danos estão articuladas a outras políticas públicas de saúde, assistência social, habitacional, segurança pública e trabalho. “Muitos desses países têm espaços de uso seguro de drogas, que evitam mortes por overdose e são articulados com serviços para desintoxicação”, afirma.>
Para Rossana Rameh, a utilização de salas seguras, como ocorre na Suíça e Espanha, por exemplo, está longe de ocorrer no Brasil. “Aqui é algo extremamente impensável nos dias atuais, no sentido do moralismo, do medo”, diz.>
A pesquisadora observa que, no Brasil, fala-se muito em guerra às drogas, mas ela avalia que essa guerra é mais voltada aos usuários. “E tem um foco. Essa guerra tem cor e classe social. O Uruguai, com toda a sua política de regulação do uso da cannabis, traz uma regulamentação que facilita o controle dessa substância e do usuário. Há um mapeamento dessas pessoas de forma muito tranquila, sem julgamento e perseguição, mas com a possibilidade de essas pessoas não se colocarem mais em risco e em violência porque estão comprando uma substância numa boca de fumo, por exemplo.”>
Wander Wilson pontua que as abordagens nos diversos países que adotam as estratégias podem ser diferentes, pensando no território e nas especificidades de cada lugar, mas estão frequentemente articuladas com outras políticas, estabelecendo uma rede de cuidado.>
Por que explicamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia, eleições presidenciais e políticas públicas do governo federal que viralizaram nas redes sociais. A ferramenta Comprova Explica é utilizada para a divulgação de informações a partir de conteúdos que viralizam e causam confusão. A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar consequências adversas ao consumo de psicoativos – lícitos ou ilícitos — sem, necessariamente, interromper esse uso. A estratégia não deve ser confundida com apologia ao consumo.>
Alcance da publicação: Até o dia 12 de agosto, o vídeo da Damares Alves alcançou mais de 10,7 mil visualizações no YouTube.>
Outras publicações sobre o tema: O vídeo da ex-ministra repercutiu na imprensa profissional (Veja, Correio Braziliense), mas este não é o único tema relacionado a Lula recentemente. O Comprova já demonstrou em outras verificações que o ex-presidente não disse que vai implantar a ditadura no Brasil, nem há registros de declarações de Lula para eliminar o agronegócio da Terra. Há dois anos, o G1 apontou que era fake a alegação de que governos do PT haviam criado “bolsa usuário” para viciados em drogas.>
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