Publicado em 18 de julho de 2021 às 20:46
Há uma nova aspirante a cloroquina no radar de Jair Bolsonaro (sem partido). A queridinha da vez é a proxalutamida, um fármaco fabricado na China inicialmente testado para cânceres como mama e próstata, e agora para a Covid-19. >
O presidente citou o medicamento ao sair de um hospital em São Paulo, após receber alta neste domingo (18). Ele estava internado havia cinco dias e se recupera de uma obstrução intestinal. >
"A gente vê o mundo aí, alguns países investindo em remédios para curar a Covid, e aqui se você fala em cura de Covid passa a ser criminoso, Valdemiro. Passa a ser criminoso. Você não pode falar em cloroquina, ivermectina", disse ao lado do apóstolo Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, que o visitou. >
Eis a deixa para introduzir sua nova aposta no combate ao coronavírus. "Tem uma coisa que eu acompanho há algum tempo, e nós temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns três meses que isso aí... Não tá no mercado, é uma droga ainda em estudo, sendo estudada.">
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Está certo num ponto: de fato, ela vem sendo avaliada como possível droga contra a Covid-19. O próprio presidente, porém, reconhece que "isso existe no Brasil de forma não ainda comprovada cientificamente". >
Sua aplicação contra a Covid-19 carece de aval de agências regulatórias como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a FDA (o equivalente nos EUA). >
Segundo Bolsonaro, o remédio tem "curado gente". Grupos bolsonaristas passaram, nos últimos meses, a vê-lo como milagroso. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, já havia demonstrado entusiasmo com a nova droga e propagado seus resultados pelas redes sociais. >
A comunidade científica pede calma. >
Ao contrário de outros medicamentos que Bolsonaro prescreve sem qualquer base científica para lidar com a doença, como a cloroquina e a ivermectina, a proxalutamida ainda não foi descartada como ineficaz nesta pandemia. >
Seu uso, contudo, não teve nenhum estudo publicado em uma revista científica de prestígio. A praxe estabeleceu que todo resultado de pesquisa apresentado por cientistas seja revisado por outros especialistas. A rechecagem dos dados feita por pares dá mais solidez ao trabalho. >
Durante a pandemia, Bolsonaro tem mostrado mais entusiasmo com medicamentos contra a Covid do que com vacinas. O presidente ainda não se vacinou (diz que só o fará depois de todos os brasileiros), mas não perde a chance de defender remédios que possam debelar a doença, a maioria deles já comprovadamente inútil para esse coronavírus em particular. >
Em fevereiro, por exemplo, o ocupante do Palácio do Planalto anunciou que o Brasil testaria um spray nasal desenvolvido em Israel. Até agora, esses ensaios clínicos não prosperaram. >
"Vamos ver se a gente faz um estudo sobre isso aí [a proxalutamida] pra gente apresentar uma possível alternativa", disse o presidente a jornalistas na porta do hospital Vila Nova Star, em São Paulo. "Nós temos que tentar. Como sempre disse, na Guerra do Pacífico não tinha sangue pros feridos. E resolveram botar água de coco e deu certo.">
A água de coco intravenosa era um recurso hidratante usado de forma pontual diante da escassez de recursos clínicos, mas não há um estudo sério que ratifique sua efetividade. >
O que importa, segundo Bolsonaro é "buscar alternativa". "Com todo respeito. Eu não errei nenhuma ainda. Até lá atrás, quando eu zerei os impostos da vitamina D. Nós não erramos absolutamente nada no tocante a isso aí. Não é chute, é estudo. Agora, não consigo entender por que criminalizar qualquer possibilidade de se descobrir uma alternativa ao remédio. Será o peso da indústria farmacêutica?">
No Brasil, um grupo de médicos e pesquisadores ligados à rede de hospitais e serviços de saúde Samel, de Manaus, lidera os testes da proxalutamida contra a Covid-19. Trata-se de um bloqueador de hormônios masculinos (antiandrógeno) ainda em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintor. >
Para o infectologista Alexandre Naime Barbosa, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, nada garante que a proxalutamida reduza os números de hospitalizações e óbitos causados pelo vírus. >
"Essa droga não é utilizada em nenhum protocolo mundial, a não ser por grupos que têm motivação política ou econômica. Tem uma questão muito séria de financiamento por conta de algumas empresas que querem achar uma bala de prata, e depois da cloroquina e ivermectina é essa", diz. "O Paraguai adotou isso ao arrepio da ciência, e outros países com política de saúde bastante duvidosa também.">
Segundo o especialista, o assunto está na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) dentro de um grupo que analisa as estratégias de saúde e as ferramentas que podem funcionar na Covid. >
"Isso é mais um factoide que o governo federal coloca para tirar a luz do que realmente importa, que é a tragédia nacional que vivemos. Não há a menor comprovação de eficácia da medicação neste momento.">
O uso do medicamento é tema de um estudo polêmico que está sob investigação da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) por não ter tido todos os preceitos éticos seguidos. >
"Há uma questão séria envolvendo o pesquisador Flávio Cadegiani aqui no Brasil. Foi utilizado um grupo controle 'escolhido a dedo', que foram os pacientes hospitalizados em Manaus na época em que houve a principal onda de Covid, em dezembro e janeiro, ou seja, um estudo sobre o qual pairam muitas dúvidas", afirma Barbosa. >
A Folha não conseguiu contato com Cadegiani, autor de um outro estudo que serviu de base para o TrateCov. O aplicativo desenvolvido pelo Ministério de Saúde sugeria a prescrição de hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina a partir de uma pontuação definida pelos sintomas do paciente após o diagnóstico de Covid-19. >
O médico Carlos G. Wambier, professor assistente e educador clínico do Departamento de Dermatologia da Alpert Medical School da Universidade Brown (EUA), que colaborou com o estudo de Manaus, defende que outros países ou hospitais façam experimentos ou estudos com a proxalutamida ou moléculas similares para obter mais evidências sobre seu uso e efeitos colaterais. >
"O que não concordo é com médicos que jamais prescreveram antiandrógenos fazendo comentários contra o que desconhecem. Há um preconceito travestido de ceticismo que é muito ruim para a ciência. A mente tem que estar aberta para novas informações e tratamentos", afirma Wambier. >
"A proxalutamida é apenas uma molécula antiandrógena. Há muitas outras disponíveis no mercado, mas a maioria nunca foi estudada para Covid-19. Apesar de termos entrado em contato com fabricantes, não houve interesse ainda. Eu acredito que a apalutamida, uma molécula da Janssen (Johnson e Johnson), possa ter o mesmo potencial em atingir melhora clínica observada com a proxalutamida", diz. >
Wambier também cita a enzalutamida (Astellas), a darolutamida (Bayer), bicalutamida e flutamida, entre outras moléculas da mesma família. Também não há resultados publicados com essas outras moléculas que comprovem eficácia contra a Covid. >
"Sabemos que a bicalutamida está sendo estudada nos Estados Unidos, e a enzalutamida está em investigação na Suécia. Porém agora no verão houve a calmaria sazonal. Quem sabe no inverno os estudos sejam retomados no hemisfério norte", completa.>
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