Publicado em 29 de agosto de 2018 às 15:38
A história do músico capixaba Elias Belmiro, 50 anos, sensibilizou os moradores do Espírito Santo. Violonista talentoso, perdeu tudo para o álcool e acabou morando nas ruas. Infelizmente, ele não é o único que vive nesta situação. Mas quando um caso desses aparece, todos se perguntam o que houve para se chegar a esse ponto. Para entender como funciona o processo cruel da doença, o Gazeta Online convidou o médico João Chequer, PHD em dependência química, que tem mais de 25 anos de experiência na área.>
O médico, que também é nefrologista, conta que a família é a primeira vítima do alcoolismo, explica as diferenças no organismo de homens e mulheres em relação ao álcool e diz quem é capaz de alertar o dependente. Chequer também cita uma pesquisa recente que concluiu que "definitivamente não há nível para consumo seguro de álcool".>
Doutor, A GAZETA contou a história do músico Elias Belmiro. Como é esse processo para chegar ao ponto da pessoa perder tudo e morar na rua?>
Isso deve ter começado quando ele era adolescente. O indivíduo nasce, às vezes, com alguma carga genética. Se você ver a história familiar dele, é possível, mas não necessariamente obrigatório, que ele tenha tido antecedentes familiares de alcoolismo. A chamada parte biológica da doença, a parte genética. Outro aspecto que não é genético, mas é adquirido no útero, congênito, quando a mãe está grávida e bebe. Enquanto a mãe está bebendo, o bebê também está bebendo. Então adquire esse conhecimento, vamos dizer assim, do álcool, dentro do útero.>
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Isso mesmo com pequenas doses?>
Na gravidez ou em qualquer fase da vida?>
Em qualquer época da vida. E não é só a questão da dependência química, é câncer, uma série de enfermidades ligadas ao álcool. Para você ter uma ideia, se você chegar hoje em qualquer hospital e fizer uma avaliação, pelo menos 20% das pessoas estão internadas direta ou indiretamente por causa do consumo de álcool. Por exemplo: a pessoa bebe e bate com o carro, a pessoa bebe e tem cirrose hepática, a pessoa bebe e fuma e tem câncer de pulmão, fígado, pâncreas e esôfago. Sem falar de outras doenças. O indivíduo começa a beber, perde a noção do comportamento, começa a ter relações sexuais sem prevenção e daqui a pouco está com Aids, com uma série de doenças sexualmente transmissíveis.>
O médico continua a falar das causas da dependência.>
Como você vai dizer adquirida? Porque existe no Sistema Nervoso Central um negócio muito importante chamado circuito cerebral de recompensa ou de gratificação. Esse circuito é acionado quando a gente sente prazer. Por exemplo: o indivíduo trabalha, chega no final do mês e recebe o salário, que é a gratificação e ele se sente bem com isso. Já por outro lado, o indivíduo vai no bingo, ganha um dinheiro e se sente gratificado. Tudo que gratifica vai gerando uma tendência à repetição. Aí vem jogo, sexo, roubo, uma série de coisas. O indivíduo começa a beber e sente uma satisfação, ele então sente gratificação e o sistema cerebral de recompensa é acionado. E fica aquela memória lá, toda vez que você encontrar aquele agente, você vai sentir um prazer. E a repetição desse comportamento que gera esse prazer vai levar o indivíduo à repetição até compulsiva e obsessiva da substância. Esse que bebeu no útero ou na infância, quando tiver lá os seus 18 anos e provar o álcool pela suposta primeira vez, não será a primeira vez. O organismo vai reagir: 'Opa, eu sei o que é isso'. Esse é um aspecto biológico. >
Aspecto social.>
Tem o aspecto social, que é aquele frase: 'Diga com quem tu andas que te direi quem és'. A pessoa faz parte de tribos. Todos nós temos a nossa tribo. Quase sempre a gente se comporta conforme o comportamento das pessoas que a gente costuma frequentar. Cada tribo tem os seus sinais, seus aspectos. Se o indivíduo frequenta um grupo que tem no comportamento típico beber, é muito difícil que o indivíduo consiga sobreviver nesse grupo sem fazer a mesma coisa. É o aspecto social, se você vive em determinado lugar, convive com determinadas pessoas, o indivíduo vai fazer igual até por uma questão de participar. E tem o aspecto psicológico. A pessoa vai para uma festa, ela é tímida, toma um bebida alcoólica e a timidez reduz. O indivíduo se sente bem, vai namorar, dançar. Então nós fechamos o ciclo biopsicossocial.>
A dependência pode atingir pessoas que não têm uma relação biológica ou social, por exemplo?>
Claro. A repetição do comportamento gera o aprendizado. Toda vez que você vai em um lugar, bebe e se sente bem e repete, você vai ter a tendência natural de repetir. A repetição frequente leva o indivíduo a usar essa substância.>
Para dormir a pessoa bebe, quando está triste bebe...>
Exatamente. O indivíduo começa a usar a bebida como medicação, para dormir, tranquilizar... Isso é uma coisa que se chama sensibilização. O indivíduo fica sensibilizado pela bebida e aprende que usando álcool vai ter uma recompensa, um bem-estar.>
E a tolerância?>
O indivíduo começa tomando um copo de cerveja ou uma dose de destilado e aquilo satisfaz. Só que o organismo vai se acostumando com essa quantidade. De repente, aquela quantidade já não dá ao indivíduo a mesma sensação de gratificação. O que ele aprende a fazer? A aumentar a dose ou diminuir o intervalo. A cachacinha do hora do jantar, daqui a pouco ele vai tomar duas, depois três. A pessoa que só toma uma cerveja no final de semana vai tolerando mais e vai começando a tomar mais frequentemente ou em quantidade maior.>
A pessoa não percebe que está aumentando.>
Dirigir depois de ter bebido, vai para uma roda e começa a brigar. Se você fizer um levantamento, de 60% a 70% dos homicídios que ocorrem entre o fim de expediente do trabalho da sexta-feira e as madrugadas de domingo, ocorrem por motivos banais, em periferias de bairros. Isso tem a ver com o consumo de bebida alcoólica. O indivíduo só não nota como embarca em série de comportamentos com elevadíssimo risco.>
Consequências.>
O que vai acontecendo, à medida que o indivíduo vai se tornando dependente - o que deve ter acontecido com esse músico -, ele vai perdendo tudo. Perde a profissão, o interesse pela família, os amigos. E vai fazer o quê? Vai para a rua. Deteriora completamente o seu comportamento, as suas atitudes. Isso sem falar nas outras doenças que o álcool provoca, como a degeneração do Sistema Nervoso Central, atrofia cerebral, que pode levar a um quadro de demência precoce. Se o indivíduo também fuma, pode ter tumores malignos no pulmão, na árvore respiratória de maneira geral. Para você ter uma noção, de 30% a 35% de todos os cânceres têm a ver com álcool e/ou cigarro. Câncer de rim, bexiga, pâncreas, tudo digestivo todinho.>
Doutor, quem tem um vício dificilmente admite. Como a família pode ajudar nesse processo?>
Agora, quando é a mulher que bebe, o marido larga a mulher, larga a família. O homem não aceita a mulher bebendo, de modo geral. Ele desfaz a família rapidamente. Quem o indivíduo acaba obedecendo, de certa forma, é o patrão. O último lugar que o indivíduo leva o problema da dependência química é o serviço. O colega diz para ele parar de fazer isso porque vai perder o emprego, vem o supervisor, até que chega no gerente. A lei obriga as empresas a oferecer tratamento, dependendo do tamanho da empresa. Quando trabalha em um lugar menor, é longo mandado embora e pronto. É lá no emprego que ele vai ter a maior pressão. Em casa ele ou ela já ultrapassou os limites, os amigos já estão bebendo junto, aí já não tem influência. A família procura ajuda, mas a pessoa não quer. Já o patrão pressiona um pouco até que o indivíduo joga tudo para o alto e vai para a rua.>
O que faz a pessoa querer o tratamento?>
Quando o indivíduo chega ao fundo do poço, só tem um caminho, que é para cima. Agora se ele não aceita a doença, não aceita os riscos da enfermidade, ele vai continuar nesse calvário até morrer. Se a pessoa foi socorrida em tempo e se conscientizou dos males que está causando a si própria, à família, ao trabalho, à sociedade, ela pode aceitar o tratamento. Aí entra um problema que são as internações compulsórias. A pessoa, às vezes, é internada sem querer fazer o tratamento. Fica lá meses e, o dia que abre a porta, vai voltar ao mesmo comportamento, porque não estava dentro dela o interesse em fazer o tratamento. Era apenas uma obrigação judicial. Agora se você tira a pessoa daquele consumo, leva para uma clínica, com o tratamento que envolva a parte psicológica, espiritual, comportamental. Tem um tratamento chamado cognitivo comportamental e funciona bem, se a pessoa aderir. De todos os tratamentos, no caso do bebedor, o melhor é o Alcoólicos Anônimos, que é uma psicoterapia de grupo importantíssima e gratuita. Faz bem à pessoa e existe em cada esquina do mundo inteiro. O indivíduo tem que querer. Quando o indivíduo aceita o tratamento, sentiu o fundo do poço, ver as perspectivas de que a vida vai melhorar, há um retorno familiar, a chance de recuperação é grande. Mas tem que fazer o tratamento pós-internação. Aí essa pessoa começa a falhar as reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Alguém oferece uma cerveja, ele não aceita, o outro faz uma brincadeira, começa a mexer com o orgulho próprio. Depois da primeira dose, vai embora. A situação fica complicada.>
A família deve cortar a bebida também no ambiente familiar?>
É claro. Mudar o estilo de vida implica em não frequentar lugares. Isso implica na mudança de comportamento familiar também, os filhos, a mulher, o marido. É a mudança em benefício da família.>
Doutor, com toda a sua experiência, o senhor indica ou não o consumo de bebida alcoólica?>
Não sou preconceituoso. Não sou contra nada. Costuma-se dizer que, com moderação, tudo é possível. O que acontece é que, como você não sabe quem vai desenvolver a doença de dependência química, eu não acho que as pessoas deveriam fazer uso da bebida alcoólica como se estivessem fazendo uso de um pirulito. Se fala que um pouco e vinho é bom todo dia. Está provado que uma pessoa que toma um copo de vinho tem um risco grande de desenvolver outras enfermidades. Mas a pessoa fala que é bom para o coração. Melhor para o coração é dar uma caminhada todo dia. Se quiser usar as substâncias que têm no vinho, toma o suco de uva vermelha e faz o mesmo bem.>
Relação com as mulheres.>
Ser for do sexo feminino, pior ainda. O homem tem algumas enzimas no estômago que destroem uma parcela do álcool e a mulher não tem. Chama-se ADH, a mulher não tem isso no estômago. Quando a mulher bebe, um percentual de álcool maior vai para a circulação. Aí a mulher vai desenvolver a doença mais depressa. Não só o alcoolismo, mas as consequências graves, como o câncer.>
Tem uma dose mínima aceitável.>
Não há quantidade segura. Não existe.>
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