Publicado em 25 de agosto de 2025 às 15:25
Ela prometeu à filha uma viagem à Disney, na Flórida. O que seria um período de férias virou uma rota de fuga do "terror".>
Gabriela, nome fictício, é de Guayaquil, no Equador. Diz que levava o que chama de uma "vida normal de classe média": trabalhou por 15 anos em um canal de televisão, tinha um imóvel financiado e a filha estudava em uma escola particular.>
Quando leu as manchetes sobre a escalada da violência no país — gangues em disputa por rotas do tráfico de cocaína, homicídios em alta e extorsões em expansão —, pensou que os alvos fossem apenas "milionários".>
Mas logo veio a primeira ameaça. Ela recebeu um telefonema avisando que deveria pagar a uma quadrilha ou seria morta. O autor da ligação conhecia seu local de trabalho e a placa de seu carro.>
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Na época em que planejavam as férias na Disney, o avô de sua filha foi sequestrado.>
Extorquida a pagar dezenas de milhares de dólares, a família dela recebeu vídeos em que o avô de sua filha tinha os dedos cortados. Ele acabou assassinado, e um dos dedos foi deixado dentro de uma garrafa como recado.>
Temendo pela segurança de Gabriela, o parceiro dela a orientou que levasse a filha na viagem e não voltasse ao país.>
Hoje, Gabriela é uma entre milhões de pessoas nos EUA com pedidos de asilo pendentes. >
Embora os números exatos não estejam disponíveis, muitos requerentes da América Latina relatam ter fugido da violência dos cartéis, que cresceu em vários países, inclusive o Equador.>
Mas, para especialistas em legislação migratória, está cada vez mais difícil que esses casos sejam bem-sucedidos nos EUA.>
A lei de asilo americana reconhece cinco fundamentos para esse tipo de proteção, definidos na Convenção sobre Refugiados elaborada após a Segunda Guerra Mundial (1939-45): perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a grupo social.>
O atual Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA diz que o asilo pode ser concedido "somente" para aqueles que fogem de perseguição com base em um desses cinco motivos, mas a violência dos cartéis não se encaixa exatamente em nenhuma dessas categorias.>
Essa lei é objeto de "muita, muita interpretação", segundo Kathleen Bush-Joseph, do Migration Policy Institute (Instituto de Políticas Migratórias, em tradução livre).>
No primeiro mandato do presidente americano Donald Trump, o governo dificultou a concessão de asilo a vítimas de violência de gangues ou de violência doméstica — duas categorias que, à primeira vista, parecem crimes individuais, mas que em muitos países estão ligadas a problemas sistêmicos de justiça e corrupção.>
O então procurador-geral de Trump elevou as exigências para essas solicitações ao emitir uma diretriz determinando que "o solicitante deve demonstrar que o governo tolerou as ações [de intimidação ou violência] ou mostrou incapacidade de proteger as vítimas".>
Na prática, isso pode tornar os pedidos inviáveis. Gabriela diz que denunciar ameaças em um país como o Equador pode ser arriscado. "Se você tiver sorte e prenderem o criminoso, é provável que ele saia no dia seguinte e tente te matar por vingança.">
Embora o governo de Joe Biden nos EUA tenha revogado essa interpretação da lei, as coisas permanecem iguais, e quem foge dos cartéis se vê em limbo jurídico.>
Trump também fez dos cartéis alvo de sua política migratória ao definir alguns deles como organizações terroristas. Pessoas foram deportadas sob acusação de serem ligadas a cartéis (em alguns casos, não foram apresentadas provas dessas ligações).>
Bush-Joseph, do Migration Policy Institute, afirma que ainda é cedo para saber como o tema será tratado nos tribunais americanos, mas os casos podem ir "em ambas as direções" para quem foge da violência dos cartéis.>
Isso pode levar alguns a serem classificados como vítimas de "terroristas". Há, porém, receio de que quem foi extorquido também possa ser acusado de ter dado "apoio material" a esses grupos — mesmo que tenha feito isso de modo forçado.>
Gabriela concorda com Trump que membros de cartéis são "terroristas" e acredita que, por isso, o governo americano deveria reconhecê-la como vítima, assim como outras pessoas em situação semelhante. >
"Gostaria que o presidente concedesse asilo a quem foge da violência desses terroristas.">
Mario Russell, diretor do Center for Migration Studies (Centro de Estudos Migratórios, em tradução livre), nos EUA, defende que as definições legais de quem pode pedir asilo sejam atualizadas.>
Segundo Russell, por enquanto a maioria das vítimas solicita asilo por razões políticas, ao argumentar que os cartéis têm tanto poder social e político que atuam "como se fossem a entidade governante".>
"O problema é que essas pessoas sofrem violência e perseguição — e por perseguição entendemos horror. Há medo pela vida deles.">
Gabriela afirma que, em sua entrevista de asilo — ainda sem data marcada —, pretende pedir refúgio político. Argumenta que, devido à corrupção de policiais e juízes no Equador e à ligação de parte deles com gangues, não se sentia protegida contra as ameaças.>
Russell diz que cerca de 70% dos pedidos de asilo são rejeitados atualmente. O que mudou sob o governo Trump, segundo ele, foi o aumento da detenção de migrantes em situação irregular que pedem asilo.>
Dados oficiais mostram que um número recorde de 60 mil pessoas estão detidas aguardando a análise de seus casos.>
Isso "muda a equação", afirma Russell, porque eles "já não podem viver relativamente em paz" enquanto esperam a decisão sobre seus pedidos. A detenção, acrescenta, é "usada como forma de pressão" para que desistam e aceitem a deportação voluntária.>
As últimas ordens executivas do presidente Trump ampliaram as deportações e os poderes de prisão do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês), incluindo a suspensão da entrada de muitos migrantes sem documentos.>
O resultado, diz Bush-Joseph, do Migration Policy Institute, é um ambiente em que juízes enfrentam "enorme pressão" para negar casos considerados juridicamente insuficientes.>
Casos políticos simples podem ser aprovados rapidamente, mas os relacionados a cartéis são complexos e muitas vezes rejeitados já na primeira análise, afirma Bush-Joseph. Esses solicitantes precisam "lutar por proteção" enquanto enfrentam alguns dos "maiores riscos de deportação", acrescenta ela.>
Para requerentes como Gabriela, isso significa viver, na prática, em confinamento. "Estamos com medo desde que o presidente Trump assumiu o cargo", diz.>
Enquanto aguarda a decisão do pedido de asilo, ela tem permissão de trabalho e cumpre longos turnos em uma fábrica nos EUA. >
"Nossa vida se resume a trabalho, casa, trabalho, nada mais. Não quero nos expor a outro trauma.">
"É estressante não poder sair, relaxar, esquecer nossos traumas", diz Gabriela, que teme ser denunciada e presa.>
Gabriela se preocupa até em seguir o limite de velocidade no trânsito, com receio de que qualquer erro justifique sua deportação ou a rejeição do pedido. Responde a todos com educação, mesmo quando sofre racismo.>
Os medos de Gabriela são compartilhados por Maria, lésbica da cidade equatoriana de Durán, classificada como uma das mais violentas do mundo. Uma quadrilha também tentou extorqui-la por meio de mensagens de texto com ameaças.>
Ela registrou uma queixa no Ministério Público do Equador, mas uma semana depois criminosos a tiraram de cima de sua motocicleta, a advertiram a pagar e disseram: "Porque você acha que é homem, acha que nada vai lhe acontecer.">
Maria vendeu a motocicleta e fugiu para os EUA, e hoje trabalha como lavadora de pratos em Nova York.>
Ela relatou às autoridades de imigração sobre a denúncia feita no Equador, mas sua audiência de asilo só está prevista para depois de 2028. Para Maria, isso significa que ela "não pode aproveitar a vida". "É preciso se esconder, você não sabe quando pode acontecer uma batida policial.">
Há cerca de 4 milhões de pedidos de asilo aguardando análise nos EUA, e para muitos, como Maria, o processo leva anos.>
Luis, taxista que também fugiu de Durán após gangues tentarem extorquir motoristas de sua cooperativa, é outro exemplo.>
"Nunca pensei em emigrar. Mas tantos amigos meus foram mortos", diz Luis sobre aqueles que se recusaram a pagar.>
Segundo o escritório de advocacia de imigração Spar & Bernstein, a designação de alguns cartéis como grupos terroristas pelo governo dos EUA, em vez de favorecer, pode tornar inadmissíveis alguns pedidos de asilo de pessoas que fugiram da violência.>
Indivíduos que pagaram coiotes para chegar aos EUA ou que "viviam em cidades controladas por cartéis e pagaram dinheiro de proteção" podem ser vistos como ligados justamente aos grupos dos quais tentavam escapar — e ter seus pedidos rejeitados.>
Matthew J. Tragesser, porta-voz do Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA, afirma que a lei de asilo protege um "número muito limitado de estrangeiros perseguidos".>
Tragesser atribui o acúmulo de casos a pedidos "fraudulentos e frívolos" feitos durante o governo Biden. Segundo ele, uma nova legislação elevaria as taxas cobradas para solicitações de asilo com o objetivo de reduzir fraudes.>
"Um pedido de asilo pendente não torna estrangeiros imunes à aplicação da lei", acrescenta Tragesser.>
Enquanto isso, os americanos estão divididos sobre as medidas de Trump para imigração. Pesquisa do instituto Pew Research, em junho deste ano, mostrou que 60% desaprovam a suspensão da maioria dos pedidos de asilo, e 54% se opõem ao aumento de batidas policiais. O apoio, porém, varia de acordo com a filiação partidária.>
A maioria (65%) defende caminhos legais para que imigrantes sem documentos permaneçam, enquanto 23% dizem temer que eles ou alguém próximo seja deportado.>
Gabriela, Maria e Luis insistem que quem foge da violência dos cartéis é incompreendido. Eles aceitam que criminosos sejam deportados, mas defendem que imigrantes que cumprem a lei e "pagam impostos" possam ficar.>
"Queremos o que todo mundo quer: trabalhar, viver em um Estado de direito e não mais viver no terror, sem saber se você ou seu filho voltarão para casa.">
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