Publicado em 1 de setembro de 2021 às 16:10
Dezoito dias após tomar o poder e duas noites após o fim da retirada americana do Afeganistão, o Talibã recebeu nesta quarta (1º) a primeira ajuda internacional. >
Um avião do Qatar chegou a Cabul, o primeiro pouso desde que um cargueiro C-17 decolou às 23h59 de segunda (30) com os derradeiros americanos a bordo. Ele trouxe técnicos que vão trabalhar para reabrir o aeroporto da cidade. >
Palco das cenas mais dramáticas da evacuação americana, como afegãos caindo de um C-17 em voo e o mais mortífero atentado na capital durante os 20 anos de ocupação ocidental, o Aeroporto Internacional Hamid Karzai pode voltar a operar voos comerciais até o fim da semana. >
Essa é a expectativa de grupos de ativistas de direitos humanos, ansiosos para ajudar as milhares de pessoas que ficaram a para trás na retirada, notadamente afegãos --dos 122 mil que conseguiram fugir, cerca de 100 mil eram cidadãos do país que trabalharam para forças ocidentais e temiam represálias. >
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"Como mediadores neutros e justos, conquistamos confiança", afirmou o chanceler qatari, Mohammed bin Aderraham al Thani, à mídia estatal do emirado. Durante anos, Doha sediou os contatos diplomáticos entre talibãs e americanos, culminando no acordo de paz de 2020 com o governo Donald Trump. >
Os termos do acerto foram rasgados pelos fundamentalistas, que não negociaram com o governo de Ashraf Ghani, e sim o derrubaram. >
Na terça (31), o presidente Joe Biden defendeu a manutenção da retirada, sem admitir seu caráter caótico e com mais de 200 mortes, alegando que a opção seria "mais uma década no Afeganistão". >
Os qataris são os primeiros a chegar. A China, por sua vez, já deu sinais claros de que poderá reconhecer o governo do Talibã, assim como a Rússia. Com interesses de estabilidade regional e, no caso de Pequim, algum foco econômico, ambas as potências querem ocupar o vácuo dos rivais americanos. >
O Talibã já pediu apoio formal aos chineses. Embora países ocidentais como Alemanha digam que será necessário dialogar com os fundamentalistas, o tom geral é de hostilidade. O líder talibã Anas Haqqani, figura de proa hoje, tripudiou da derrota americana em postagens no Twitter. >
Resta saber qual governo será formado e, principalmente, como ele funcionará. O Talibã disse repetidas vezes que não emularia seu brutal simulacro de califado medieval vigente de 1996 a 2001, quando foi derrubado pelos EUA por ter apoiado os terroristas que praticaram os atentados do 11 de Setembro. >
Naquela encarnação, apenas os aliados Arábia Saudita, Paquistão e Emirados Árabes Unidos reconheciam o Talibã como governo. >
Assim, há a expectativa de que figuras opositoras do Talibã ao longo dos anos e que vêm conversando com o grupo, como o ex-presidente Hamid Karzai e o ex-chanceler Abdullah Abdullah, integrem o governo ou algum tipo de conselho. >
A liderança espiritual do país, que voltou a se chamar Emirado Islâmico do Afeganistão, será do recluso comandante do Talibã, Haibatullah Akhundzada. Ele está em Kandahar, mas não é visto em público há anos. >
Já as funções executivas deverão ter a presença do mulá Abdul Ghani Baradar, que foi o negociador principal do acordo de paz, e figuras polêmicas como o Mohammad Yaqoob e o já citado Anas Haqqani --respectivamente, o filho do fundador do Talibã, mulá Mohammed Omar, e um dos líderes da rede terrorista homônima. >
A formação da nova administração deverá evitar o erro central do governo passado, que foi ignorar quem cuidava da burocracia. Por isso o Talibã tem insistido em que concederá anistia a qualquer opositor que resolva colaborar. >
Isso também tenta vender ao mundo uma imagem mais moderada, que exclua a violência contra mulheres e adversários, embasada numa leitura radical da sharia, a lei islâmica. O país, afinal de contas, precisa de dinheiro e apenas fundos decorrentes do tráfico de ópio ou a ajuda clandestina do aliado Paquistão não são suficientes. >
Ao mesmo tempo, poucos acreditam no total comprometimento dos talibãs, como o relatos de perseguições e a volta de restrições a mulheres indicam. Em Cabul, médicas, enfermeiras e professoras já foram autorizadas a voltar ao trabalho, mas de forma totalmente separada dos homens. >
Perto do regime aberrante vigente nos anos 1990, é quase a Escandinávia. Mas nem por isso há tranquilidade: a agência Reuters recolheu diversos depoimentos de mulheres que querem sair do país por não se sentirem seguras no trabalho. >
Há também o caos cotidiano a ser administrado, algo usualmente não associado a pessoas que só fizeram guerra em suas carreiras. Em Cabul, desde a reabertura dos bancos na segunda (30), há filas de pessoas tentando retirar dinheiro --apesar da limitação vigente. >
Desde que tomaram a capital, no dia 15, os talibãs também veem um surto inflacionário na já bastante informal economia local. Há relatos semelhantes em outras cidades grandes do país, como Jalalabad. >
Na segurança da capital, que é exercida pela rede Haqqani, a situação parece ainda sob controle, apesar do grande atentado cometido semana passada pela sucursal afegã do Estado Islâmico. O temor maior, relatado à Folha nos últimos dias por pessoas escondidas, é mais de represálias por parte do novo governo. >
O Talibã só não controla hoje a região do vale do Panjshir, no nordeste do país. Nesta quarta, o comandante militar Amir Khan Motaqi pediu para que os rebeldes lá entocados se rendam sem luta. "O Emirado Islâmico é o lar de todos os afegãos", disse, em tom conciliatório que obviamente levanta suspeitas. >
O Panjshir nunca se entregou ao Talibã, e a antiga Aliança do Norte lá baseada foi a força terrestre que tomou Cabul em 1996, com o apoio de bombardeiros e depois tropas ocidentais.>
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