Publicado em 14 de dezembro de 2023 às 13:54
Todos os meses, durante quatro ou cinco dias, um grupo de cientistas brasileiros vive a vida de um passarinho.>
Eles acordam cedo, antes de o sol raiar, e se embrenham por horas em pântanos lotados de capins altos e muitos insetos. >
O objetivo da missão é um só: observar o bicudinho-do-brejo (Formicivora acutirostris), uma ave rara encontrada apenas em regiões específicas da Baía de Guaratuba, quase na divisa entre o Paraná e Santa Catarina.>
Entre os mais de 60 indivíduos da espécie que são acompanhados de perto, um se tornou o queridinho da equipe de biólogos: Rosaldo, um macho de 16 anos, que é acompanhado pelos pesquisadores antes mesmo de nascer, quando ainda estava se desenvolvendo no ovo.>
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Essa década e meia de observação de um mesmo passarinho permitiu aos especialistas reunir uma série de dados sobre a história de vida dele. >
Essas informações podem ajudar a entender as estratégias que a espécie adota para se adaptar e responder às mudanças climáticas — como o aumento do nível do mar ou a maior frequência de eventos extremos.>
Chegou a hora, então, de conhecer a vida romântica e obstinada de Rosaldo.>
O bicudinho-do-brejo era um completo desconhecido da ciência até o início da década de 1990.>
"Em 1995, Bianca e eu fazíamos uma pesquisa de campo no brejo quando vi uma fêmea de uma espécie nova, que não conhecíamos. A Bianca não quis acreditar nessa possibilidade, pois era algo além da nossa realidade", relata o ornitólogo Marcos R. Bornschein, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).>
A Bianca citada pelo cientista é a bióloga, jornalista e conservacionista brasileira Bianca Luiza Reinert, que dedicou a carreira a conhecer o bicudinho-do-brejo. Ela morreu em 2018.>
"Pouco depois, naquele mesmo dia de 1995, vimos outros dois indivíduos da nova espécie. A partir daí, começamos as pesquisas emergenciais para confirmar o achado e descrever as características principais dessa ave", complementa Bornschein.>
Em pouco mais de dez anos de trabalho, os especialistas puderam confirmar que o bicudinho-do-brejo habita uma região bem restrita — o sul do Paraná e o nordeste de Santa Catarina. >
O habitat dele se resume às áreas pantanosas, com capins altos, que ficam próximas da costa litorânea.>
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"O bicudinho tem o peso de um bombom", detalha a bióloga Giovana Sandretti-Silva, que coordena um projeto de conservação da espécie e faz parte do grupo de pesquisa de Bornschein.>
"O macho é um pouco mais escuro e tem a barriga marrom. Já a fêmea possui uma barriga carijó, com penas brancas e pretas", diz ela.>
A primeira década de pesquisa com o bicudinho-do-brejo também permitiu descobrir que esses pássaros são territorialistas e mantêm relacionamentos por longos períodos.>
"O casal vive no mesmo lugar por vários anos, se alimenta de pequenos insetos ou caranguejos e usa os capins do brejo para fazer os ninhos", acrescenta Sandretti-Silva.>
Segundo a bióloga, os bicudinhos geram dois ovos por ciclo reprodutivo — e, se bem-sucedidos, eles terão dois filhotinhos para cuidar por algumas semanas.>
"Uma coisa interessante é que macho e fêmea dividem todas as tarefas. Juntos, eles constroem os ninhos, chocam os ovos, cuidam dos filhotes…", exemplifica ela.>
Quando o filho cresce e consegue se virar sozinho, ele é expulso pelos próprios pais e precisa buscar um território próprio.>
"Eles não têm muita autonomia de voo, então pulam de um capim para outro e vagam até achar um novo lugar", aponta Sandretti-Silva.>
O Rosaldo entra nessa história em 2007, quando os pesquisadores encontraram o ovo em que ele se desenvolvia dentro de um ninho no brejo.>
Após nascer, crescer e ser expulso pelos pais, o passarinho encontrou seu território na mesma Ilha do Jundiaquara onde veio ao mundo — segundo os pesquisadores, ele nasceu numa ponta da ilha e se estabeleceu no extremo oposto.>
Questionado sobre a origem do nome Rosaldo, Bornschein diz que o grupo coloca anilhas de diferentes cores nas patas dos passarinhos observados. >
A combinação de cores e posições desses pequenos aros permite que os cientistas identifiquem cada animal, para que todas as aves possam ser acompanhadas individualmente ao longo de vários anos.>
Assim que saiu do ovo, Rosaldo recebeu anilhas cor-de-rosa — daí veio a ideia do nome que ele carrega desde então.>
"O Rosaldo sempre foi muito precoce. Ele estabeleceu o próprio território com sete meses de idade e logo conheceu uma bicudinha mais velha, com quem começou a se reproduzir já no ano seguinte, em 2008", conta Sandretti-Silva.>
Desse primeiro casamento, que durou quatro anos, foram gerados três filhotes de bicudinho-do-brejo.>
A fêmea desapareceu — provavelmente morreu — no início de 2012. Pouco tempo depois, Rosaldo tinha arrumado uma nova parceira.>
"A segunda esposa foi o grande amor da vida do Rosaldo. Eles ficaram nove anos juntos, sempre no mesmo lugar, sempre fiéis um ao outro, e tiveram oito filhotes", contabiliza a bióloga.>
"Isso dá quase um filhote por ano, o que representa um sucesso reprodutivo muito alto para os territórios que a gente monitora.">
Com a morte da segunda esposa, Rosaldo está agora no terceiro "casamento", que se iniciou em 2021.>
"Eles formam um casal bem animado, que faz muitos ninhos. Mas, infelizmente, apesar das várias tentativas, não conseguiram gerar filhotes até o momento", observa Sandretti-Silva.>
Os especialistas dizem que Rosaldo está acostumado com a presença de seres humanos — embora eles tentem interferir o mínimo possível enquanto fazem as pesquisas de campo. O passarinho é classificado como fotogênico, pois posa com naturalidade para as câmeras.>
Com as principais dúvidas sobre a biologia do bicudinho-do-brejo respondidas, os cientistas brasileiros agora querem entender como a espécie é afetada pelas mudanças climáticas — e Rosaldo pode desempenhar um papel-chave nesses esforços.>
Bornschein observa que a área em que esses passarinhos vivem parece estar diminuindo. Atualmente, eles monitoram cerca de 32 territórios e 64 indivíduos diferentes.>
“Antigamente, era comum acompanharmos até 40 territórios. A vida não está muito fácil para os bicudinhos”, constata ele.>
Os pesquisadores querem entender como esses passarinhos estão se adaptando a novas realidades, como o aumento da temperatura, a elevação do nível do mar, a ocorrência de eventos extremos (como ciclones) e a introdução de espécies invasoras, como capins africanos.>
Um exemplo prático: se o brejo estiver com mais água, isso exigirá que os bicudinhos façam seus ninhos em capins mais altos. Isso pode salvar os filhotes das inundações, mas deixa a família mais exposta aos predadores.>
Bornschein pontua que, para entender essas novas realidades, será necessário fazer um acompanhamento de longo prazo, que supere 20 anos de dados acumulados.>
Isso ajudaria a ponderar ajustes cíclicos da natureza — o ornitólogo lembra que as marés, por exemplo, têm momentos de cheias e baixas, que se revezam em períodos de cerca de 16 anos.>
É justamente aí que entra Rosaldo: o fato de ele ser acompanhado há tanto tempo permite entender melhor como esses pássaros reagem às mudanças do ambiente.>
“Queremos comparar as estratégias que o bicudinho possui no início da vida e como ele muda conforme fica mais experiente”, projeta Sandretti-Silva.>
“O Rosaldo está contribuindo muito para isso, pois temos dados de toda a vida dele que nos ajudarão a entender essa adaptação às mudanças.”>
Para entender em detalhes essas questões, os pesquisadores firmaram recentemente uma parceria com o Zoológico de São Paulo. A ideia é pesquisar e conhecer os melhores meios de conservar a espécie — afinal, o bicudinho está ameaçado de extinção.>
Os especialistas pretendem aumentar as regiões próprias para a habitação e reprodução da ave, para que mais filhotes nasçam e sobrevivam.>
“Nosso sonho é poder contribuir de alguma forma para preservar a espécie e ao menos diminuir o risco de extinção dos bicudinhos”, diz a bióloga Marina Somenzari, do Zoo de SP.>
Para Bornschein, as quase três décadas de contato com o bicudinho-do-brejo podem ser resumidas em uma palavra: persistência.>
“Como pesquisador, é complicado humanizar o comportamento de outros seres. Mas vou me dar o direito de fazer isso com o bicudinho: ele é uma das espécies mais persistentes que já vi.”>
“Nossa equipe foi positivamente contaminada pela persistência do bicudinho, que lida com uma série de adversidades e não desiste facilmente”, observa o especialista.>
“E esse símbolo nos inspira a continuar nosso trabalho todos os dias”, conclui ele.>
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