Publicado em 7 de maio de 2024 às 07:30
Em um relatório publicado em 2023, os especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apontaram pela primeira vez uma relação entre as fortes precipitações observadas na região que engloba o Rio Grande do Sul desde a década de 1950 e as alterações climáticas provocadas pela ação humana. >
Segundo a pesquisadora Thelma Krug, vice-presidente do órgão entre 2015 e julho de 2023, a constatação é apenas reforçada pelas fortes chuvas e a subsequente tragédia que afeta o Estado desde a semana passada.>
Os últimos eventos "de certa forma confirmam algo que estamos dizendo há tempos: que, para além das variabilidades naturais que levam aos eventos extremos, existe uma contribuição ou influência humana", afirma a matemática, que hoje atua como presidente do Comitê de Direção do Sistema Global de Observação do Clima, à BBC News Brasil. >
Ainda segundo Krug, apesar da chamada ciência da atribuição climática - que estuda o impacto da atividade humana na probabilidade de ocorrência de fenômenos específicos - ser ainda muito nova, as relações respaldadas pelo IPCC indicam que fortes precipitações como as observadas atualmente podem se tornar mais recorrentes.>
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"Infelizmente, acredito que há uma probabilidade muito grande de que esses eventos voltem a ocorrer de uma forma mais frequente e intensa", diz. >
O IPCC é um grupo de cientistas definido pelas Nações Unidas que monitora e avalia a ciência relacionada às mudanças climáticas.>
Em seu relatório, o IPCC aponta a contribuição humana para o aumento das chuvas na região chamada de Sudeste da América do Sul (SES), que engloba não apenas o Rio Grande do Sul, mas também outros Estado da região sul do Brasil e algumas áreas de nações como Argentina e Uruguai.>
A SES é a única que engloba o Brasil onde o IPCC detectou evidências de fortes precipitações relacionadas à ação humana.>
O painel classifica sua conclusão como de "baixa confiança", mas segundo Krug esse é o maior nível de evidência disponível atualmente para a região devido à dificuldade dos cálculos envolvidos. >
Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora de alguns dos relatórios do IPCC, também vê fortes indícios da influência das mudanças climáticas provocadas pelas atividades antrópicas nas chuvas que provocaram 83 mortes e afetaram 345 dos 497 municípios gaúchos.>
Segundo a ecologista membra da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o Rio Grande do Sul sempre foi o ponto de encontro de sistemas tropicais e sistemas polares, o que cria um padrão que inclui períodos de chuvas intensas e outros de seca.>
E a tendência é que essa alternância continue se repetindo, mas com cada vez mais intensidade.>
"Essa é uma região onde vamos viver muito mais extremos, segundo os modelos climáticos", diz a especialista. >
As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul atualmente podem ser explicadas por uma conjunção de fatores de risco, entre eles uma massa de ar quente sobre a área central do país, que bloqueia a frente fria que está na região Sul e faz com que a instabilidade fique sobre o Estado, causando chuvas intensas e contínuas.>
Aliado a isso, o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda tem influência do fenômeno El Niño, responsável por aquecer as águas do Oceano Pacífico, contribuindo também para que áreas de instabilidade fiquem sobre o Estado. >
Essa combinação de diversos fatores de uma única vez é considerada rara pelos especialistas.>
No entanto, segundo Mercedes Bustamante, a maior frequência desses "riscos compostos" é apontada na compilação de dados sobre mudança climática do IPCC.>
"Há uma convergência de variáveis diferentes que atuam em sinergia e ampliam esse fator de risco", diz. "Muitas das discussões sobre preparação se referiam a riscos de forma isolada, mas precisamos olhar para os efeitos em cascata e os riscos de forma integrada." >
Bustamante explica que o desmatamento em larga escala do Cerrado nas últimas décadas aumentou a temperatura superficial e reduziu a quantidade de evapotranspiração, ou a devolução da água à atmosfera, na região central do país. >
Com menos retorno de umidade, a atmosfera fica mais quente e seca. Em convergência com o El Niño, é essa massa de ar quente que está bloqueando e mantendo a área de instabilidade sobre o Rio Grande do Sul.>
"Há um fenômeno regional, que é o El Niño, mas também uma questão associada à transformação dos nossos biomas", diz.>
Ao mesmo tempo, essa mesma massa de ar quente bloqueia os chamados 'rios voadores' da Amazônia, uma espécie de curso d’água invisível que circula pela atmosfera. Trata-se da umidade gerada pela Amazônia e que se dispersa por todo o continente sul-americano. >
Se esse curso d’água encontrasse um ambiente menos seco na região central do Brasil, parte dele precipitaria ali. Mas nas circunstâncias atuais a umidade é obrigada a desviar pelas bordas da massa quente e úmida, de forma que esbarra nos Andes e é canalizada para o sul do país.>
"Tivemos frentes frias que não conseguem 'subir' e massas de ar úmido que não conseguem se distribuir para o Brasil central e 'vazam' pelos lados", resume. >
Segundo a pesquisadora, esse contexto tornou as chuvas registradas na última semana mais extremas e disseminadas do que as que abateram o Rio Grande do Sul em setembro de 2023.>
Ao mesmo tempo, segundo Thelma Krug, há cada vez mais evidências na ciência que relacionam a mudança climática a períodos mais duradouros e intensos de El Niño. >
"Já vimos o El Niño se estendendo por um período mais longo de tempo no ano passado", diz. >
"E agora temos uma composição de dias muito quentes com implicação na temperatura superficial do oceano, cenário que tem uma influência em toda essa modificação com relação às chuvas.">
Segundo a matemática, é bastante complexo fazer associações entre ações humanas e fortes precipitações - diferente das ondas de calor, que são mais facilmente ligadas às mudanças climáticas provocadas pelas atividades antrópicas.>
"Mas o que sabemos de inequívoco é que a influência humana aqueceu todo o sistema climático: aqueceu o oceano, aqueceu a atmosfera, a criosfera. Ou seja, todos os elementos da biosfera terrestre", diz.>
"E é impossível não imaginar que esse aquecimento que atingiu o sistema climático na totalidade não vai ter consequências em várias áreas.">
Krug e Bustamante são categóricas ao afirmar a necessidade de ações de adaptação adequadas aos novos modelos climáticos para evitar novas tragédias em casos de futuros eventos extremos.>
"O Brasil tem uma necessidade de ampliar sua rede de monitoramento de dados ambientais", destaca a professora da Universidade de Brasília. >
Segundo Mercedes Bustamante, o mapeamento de risco elaborado pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e criado após a tragédia climática que deixou mais de 900 mortos na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011, precisa ser revisitado. >
Para Thelma Krug, o planejamento deve ser feito a níveis federais, estaduais e municipais e com o apoio de parcerias público-privadas.>
"A periodicidade desses eventos no Rio Grande do Sul e a intensidade do que está acontecendo atualmente - que possivelmente pode até ser um dos maiores do país - é preocupante e requer que tomemos ações não só para retomar a vida, mas para voltar a viver de maneira diferente", diz.>
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