Publicado em 10 de outubro de 2023 às 11:55
Líderes evangélicos do Brasil saíram em defesa de Israel nesta semana, diante do atual conflito com o Hamas em Gaza, na Palestina. O apoio — que não se resume a uma comoção em favor das vítimas, mas defende o Estado israelense e suas políticas — não é inesperado. O uso de símbolos como a estrela de David ou a bandeira de Israel em eventos evangélicos no Brasil se tornou comum nos últimos anos, especialmente entre grupos religiosos ligados ao bolsonarismo.>
Mas o apoio a Israel e suas agendas não é restrito somente a evangélicos bolsonaristas ou igrejas neopentecostais, explica a antropóloga Jacqueline Teixeira, professora da UnB. "Você vai encontrar esse apoio também em igrejas do protestantismo histórico, que imigraram dos Estados Unidos", explica. >
O apoio tem um fundo religioso, explicam pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil. Uma das bases teológicas é uma corrente muito difundida que enxerga Israel como uma espécie de “relógio do fim do mundo”.>
Além disso, há toda uma identificação dos evangélicos com o Antigo Testamento da Bíblia, que trata basicamente da história sagrada do povo israelita. “Se confunde o povo de Deus histórico, a nação de Israel do velho testamento, com o Estado moderno de Israel, com a política sionista”, afirma o pastor e teólogo Alexandre Gonçalves. >
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Apesar do fundo religioso, afirma o teólogo Sergio Dusilek, ex-presidente da Convenção Batista Carioca, a maneira como muitos líderes têm se posicionado sobre o assunto nos últimos anos tem um forte caráter político. Eles têm usado interpretações de conceitos do antigo testamento para se inserirem no meio político. >
“Embora acredite que Bolsonaro mesmo não esteja nem aí para esse movimento de apoio ao Estado de Israel, ele fez a leitura correta (e esperta) de que muito da liturgia praticada em muitas igrejas evangélicas incorporou elementos judaicos”, explica Dusilek, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora. “O que Bolsonaro fez foi colocar um holofote institucional em uma situação que já estava posta.”>
Se o apoio à Israel e à agenda política do país já existia muito antes de Bolsonaro se tornar influente entre evangélicos, o bolsonarismo trouxe uma novidade para esse apoio, segundo Teixeira: o discurso bélico-religioso. Ou seja, a ideia de que uma disputa entre o bem o mal justificaria o uso da violência. >
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Sua pesquisa tem apontado para "uma aposta numa naturalização da violência ou da guerra.">
"Tem me chamado a atenção a tentativa de construção de uma justificação ética para os bombardeios, para as políticas de violência e de guerra que Israel tem lançado sobre o povo palestino", explica Teixeira. >
A naturalização entre religiosos de medidas como restrição de comida e água para os palestinos, seria, segundo a pesquisadora, resultado de uma "circulação mais preeminente de imagens do bolsonarismo no contexto das igrejas". >
"Isso de alguma maneira permitiu uma naturalização um pouco maior dos enquadramentos de guerra e da da desumanização", diz ela. >
A ideia de que Israel de hoje como uma espécie de “sinal divino” para o cristianismo vem de uma teologia protestante que começou a surgir no início do século 19, explica Alexandre Gonçalves, quando um período de crise econômica e escassez deu origem a correntes evangélicas voltadas para a interpretação de profecias e previsões sobre o apocalipse. >
“Havia uma interpretação de que, antes do fim do mundo, Deus faria com que o seu povo voltasse para a terra prometida, isso seria um sinal”, explica Gonçalves. >
A criação do Estado de Israel em 1948, diz ele, foi entendida por essa corrente como esse sinal de que o fim do mundo está próximo. Ou seja, o relógio do apocalipse teria sido disparado a partir da criação do Estado de Israel, explica Dusilek, e seria necessário prestar muita atenção em tudo o que acontece nesse local. >
Para essa corrente, que Dusilek define como ‘sensacionalista’, a região é entendida como uma espécie de campo de batalha do fim do mundo. “Ela localiza o fim do mundo em Jerusalém, onde haverá o grande Armagedom, a batalha final entre a luz e as trevas, entre Deus e seus anjos por um lado, e o Diabo e seus demônios por outro lado”, explica Dusilek.>
Essa corrente teológica é parte de uma teoria chamada “dispensacionalismo” e é muito popular - ela é difundida tanto entre evangélicos neopentecostais quanto entre seguidores de correntes de protestantismo histórico mais adeptos a um fundamentalismo cristão, afirma o teólogo.>
“Muitas vezes, mesmo que a pessoa não conheça essa corrente teológica ou saiba o nome, ela adere a esse pensamento, acaba assimilando essa ideia, que é bastante popular no Brasil”, afirma o pastor e teólogo Kenner Terra. Para essa corrente, explica Terra, sua posição em relação a Israel definiria se você é fiel ou não o povo de Deus. >
Para o teólogo Guilherme Carvalho, a questão de Israel e do judaísmo é importante para os cristãos mesmo entre quem não segue a teologia do dispensacionalismo, porque o judaísmo está na origem do cristianismo e existe toda uma discussão teológica sobre o papel da nação judaica "nos planos divinos". >
“Existe um hipocrisia em dizer que Israel não tem nada a ver” com discussões relevantes para o cristianismo, diz Carvalho.“É claro que o Estado de Israel não representa o Reino de Deus, não é o Israel bíblico. Mas o Estado moderno de Israel é uma reencarnação histórica das lutas do povo judeu.” >
Na sua visão, isso subsidia a ideia de que o povo judeu é importante para Deus, mas não deveria resultar em apoio sem questionamentos ao Estado de Israel.>
“A existência do povo judeu - que no mundo de hoje envolve sua existência como Estado de Israel - é uma das estruturas de plausabilidade da igreja cristã. Isso significa apoio incondicional a Israel? Não. Mas significa um compromisso especial com esse povo.”>
No Brasil, o apoio de líderes evangélicos a Israel também está ligado a uma adesão a valores e símbolos do Antigo Testamento, segundo Dusilek. >
Segundo o teólogo, além de possibilitar a justificativa da chamada Teologia da Prosperidade (onde os servos de Deus seriam recompensados com bens materiais), o Antigo Testamento também traz noções que ajudam algumas lideranças evangélicas a se inserir no espaço público e na política.>
“É no primeiro testamento que está a noção de territorialidade, de governo, de uma ação política, teocrática até. Neste sentido, tal apoio ganha um caráter mimético e balizador”, afirma Dusilek. “A questão é que essa inserção se dá com interesses governamentais.”>
É por isso, que para ele, o apoio de evangélicos a Israel na verdade tem um fundo que é até mais político do que religioso.>
“O apoio, e aí voltamos ao cerne do fundamentalismo, é de fundo político sob o verniz religioso. A ideia subjacente de certos líderes, ao que parece, é de instaurar um 'evangelistão'. O primeiro testamento, então, funciona como base desse ideário.“>
A antropóloga Jacqueline Teixeira, da UNB, afirma que é importante lembrar que a centralidade do Antigo Testamento também acompanhou movimentos missionários nos séculos 18 e 19.>
"Surge uma inspiração protestante muito significativa de constituir uma relação com trechos específicos do Antigo Testamento. As promessas, as batalhas enfrentadas pelo povo de Israel, o período de escravização do povo de Israel", explica. Desses momentos vem a ideia de que a libertação do povo resultaria na criação de um estado, um país. >
"Uma nação eleita e consequentemente, a constituição dessa nação seria fruto do cumprimento de uma promessa divina", explica. >
Para Teixeira, se trata de um caso em que religião e política andam cruzados. >
"Existe um repertório teológico em que se espera a instauração de um reino divino e consequentemente o cumprimento de algumas promessas divinas", explica ela. "E parte do comprimento dessas promessas está totalmente relacionado à construção de uma gramática política, que garante uma centralidade para a ideia de Israel como uma nação escolhida por Deus", diz ela. >
Alexandre Gonçalves afirma que a noção de que Israel hoje representa os valores de uma “sociedade ocidental judaico-cristã” também foi muito difundida entre conservadores evangélicos a partir da ideia de uma guerra cultural entre esquerda e direita. >
“Eu vi muitos jovens da igreja ouvindo o (escritor) Olavo de Carvalho, que difundia essa ideia de guerra cultural”, conta Gonçalves. Por essa perspectiva, defender Israel seria defender esses valores. >
Para Kenner Terra, a corrente teológica do dispensacionalismo foi cooptada por tradições conservadoras evangélicas e sionistas, muitas vezes ligadas a um fundamentalismo cristão, para quem essa confusão entre a nação histórica e o Estado moderno de Israel é interessante.“É uma teologia que tem origem nos EUA, país que é aliado histórico de Israel”, afirma o teólogo. >
Terra critica esse apoio incondicional que muitos líderes evangélicos dão a Israel hoje. >
“É um apoio que ignora uma série de perspectivas históricas, como os tratados internacionais que Israel rompeu, os territórios que tomou e a forma como tratam os palestinos.”>
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