Publicado em 14 de abril de 2025 às 06:39
O tauros, uma versão do extinto gado auroque, está sendo introduzido no Vale do Côa, em Portugal.>
Em uma manhã fria e enevoada, uma manada de cavalos Sorraia, uma raça local ameaçada de extinção, come capim e pequenos arbustos, com seus corpos curtos e robustos envoltos na névoa do rio Côa, nas montanhas do nordeste de Portugal. >
À medida que o sol nasce e a névoa começa a se dissipar, ela revela os profundos desfiladeiros do Vale do Côa, onde abutres e águias nidificam nas falésias.>
Mais ao sul, uma manada de grandes bovinos pretos e castanhos, com chifres longos, corre com agilidade. Conhecidos como tauros, esses bovinos são uma versão criada do extinto auroque, o ancestral selvagem da vaca moderna.>
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Os cavalos e tauros foram soltos pela Rewilding Portugal, uma organização sem fins lucrativos cuja missão é criar um corredor de vida selvagem de 1.200 km² ao longo do rio Côa, melhorando a conectividade de habitats entre o rio Douro, a norte, e a serra da Malcata, a sul.>
"Promovemos o retorno de espécies selvagens e substituímos as extintas, como o auroque e o cavalo-bravo", afirma Pedro Prata, responsável pela Rewilding Portugal. >
Desde a sua criação em 2019, a organização já libertou duas manadas de 20 cavalos Sorraia e 15 tauros numa área de cerca de 20 km² para restaurar os processos naturais com pastoreio natural.>
Há milhares de anos, os ancestrais selvagens do gado bovino e do cavalo vagavam livremente pela região do Côa, migrando em grandes rebanhos e desempenhando um papel fundamental na manutenção dos ecossistemas de pastagens. >
Os animais eram tão importantes que nossos ancestrais decidiram pintar e gravar suas imagens em cavernas e pedras.>
Ao longo do Vale do Côa, representações de auroques, cavalos selvagens e outras criaturas que datam de 24 mil anos foram esculpidas nos afloramentos de xisto. >
A área abriga uma das maiores concentrações de arte rupestre paleolítica a céu aberto e é reconhecida como Patrimônio Mundial da Unesco.>
Com seus chifres longos e corpo maciço, o auroque aparece com destaque nas gravuras. Outrora o maior mamífero terrestre da Europa, o auroque foi extinto no século 17 devido à caça excessiva e à perda de habitat. >
O último exemplar da espécie morreu na Polônia em 1627; um dos primeiros casos de extinção registrados.>
Mas esforços recentes estão tentando trazer de volta esses poderosos herbívoros. A Rewilding Portugal firmou uma parceria com a Fundação Taurus, uma organização holandesa dedicada à criação de bovinos que possam prosperar nas paisagens selvagens da Europa.>
"Queríamos desenvolver um substituto para o que os auroques costumavam ser", diz o ecologista Ronald Goderie, diretor da Fundação Taurus, que iniciou um programa de reprodução em 2008. Embora os auroques estejam extintos, seus genes sobrevivem no gado doméstico.>
A fundação tem usado um método conhecido como cruzamento cruzado para combinar raças de gado no sul da Europa que ainda mantêm algumas das características de seus ancestrais auroques: grande estatura, pernas longas, constituição esbelta e grandes chifres curvados para a frente. >
"Combinamos raças primitivas para tentar chegar o mais próximo possível geneticamente do que o auroque já foi", diz Goderie. O objetivo é criar um bovino selvagem que possa novamente vagar livremente e que esteja preparado para lidar com predadores.>
Por milênios, o pastoreio de auroques criou espaços abertos para outras espécies prosperarem. Como o mais próximo do auroque extinto retratado nas gravuras pré-históricas, Goderie afirma que os tauros podem desempenhar uma função ecológica semelhante, vital para a biodiversidade. >
"O pastoreio natural levará a mais processos naturais que estão ausentes nos ecossistemas locais, mais habitats e mais biodiversidade", diz ele.>
Prata atravessa em seu jipe um mosaico de florestas de carvalhos e pinheiros, charnecas rochosas e vinhas dispersas, olivais e amendoais ao longo do vale do Côa, parando ocasionalmente para pegar seus binóculos.>
"Esta terra é marginal, o solo é pobre e há falta de água. Os verões são muito rigorosos aqui e vão piorar ainda mais com as mudanças climáticas. A paisagem ficará ainda menos adequada para a agricultura", diz Prata, biólogo que cresceu em uma fazenda perto do rio Côa.>
A produção é tão baixa nas encostas rochosas que, nas últimas décadas, muitos agricultores abandonaram o vale, que se tornou um dos lugares menos habitados de Portugal. >
Prata também partiu quando jovem em busca de melhores oportunidades no exterior. Mas os motivos pelos quais as comunidades agrícolas partiram também foram o que levou Prata a retornar com uma nova visão para a região. O despovoamento e o abandono das terras tornaram-se uma oportunidade para trazer a natureza de volta.>
"Herdamos uma paisagem muito degradada. Por isso, propomos deixar essa paisagem se regenerar por meio da renaturalização", diz Prata. O objetivo não é recriar o que a paisagem já foi, mas explorar o potencial do que ela pode ser.>
Ao reservar terras e libertar espécies-chave, a organização está promovendo o regresso de grandes herbívoros, necrófagos e predadores, como águias-imperiais, abutres, lobos e íbex-ibéricos e o lince-ibérico – o felino selvagem mais ameaçado do mundo. >
A iniciativa em Portugal faz parte de esforços mais amplos liderados pela Rewilding Europe, uma organização sem fins lucrativos criada em 2011 que apoia o regresso da vida selvagem e a restauração de processos ecológicos em todo o continente. >
Ao contrário da conservação tradicional, a renaturalização não é impulsionada pela gestão humana, mas sim por processos naturais.>
"Não se trata apenas de deixar a natureza em paz", diz Prata. Em vez disso, a esperança é que a soltura de grandes herbívoros catalise alguns dos processos naturais que estão ausentes e crie as condições que permitam que outras espécies prosperem, explica ele. >
"Os grandes herbívoros são engenheiros. Eles projetam a distribuição de espécies de plantas, reciclam os nutrientes e permitem que outras espécies os utilizem.">
A Rewilding Portugal monitora de perto a fauna e a flora e já está notando os efeitos da soltura de cavalos e tauros na região. >
"Primeiro, começamos a ver muitos coelhos e perdizes nas áreas que eram pastoreadas", diz Prata, já que herbívoros menores podem encontrar proteção contra predadores em rebanhos de cavalos e tauros. >
"Depois, notamos mudanças na composição das espécies vegetais.">
À medida que pastam e pisoteiam o solo, grandes herbívoros redistribuem sementes e nutrientes, abrindo espaço para o crescimento de outras plantas. >
As áreas de pastagem têm mais espécies de flores, atraem mais polinizadores e predadores. As aves podem se alimentar dos insetos que o gado atrai e usar seus pelos para construir ninhos, como já demonstrado em outros estudos.>
Dados coletados pela Rewilding Portugal em parceria com a Universidade de Aveiro, em Portugal, revelaram um aumento nas populações de corços na região. A agente de conservação Sara Aliácar afirma que o aumento das populações de cervos e javalis significa que há mais presas selvagens para sustentar os lobos-ibéricos na região.>
Estudos demonstraram que o pastoreio natural por grandes herbívoros pode ajudar a proteger e restaurar mosaicos de vegetação com altos níveis de biodiversidade e aumentar o sequestro de carbono. >
Os herbívoros também podem ter um papel importante na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e na redução do risco de incêndios.>
Com o aumento das temperaturas, a região do Mediterrâneo está sofrendo épocas de incêndios mais longas, mais comuns e cada vez mais imprevisíveis, ultrapassando a capacidade de recuperação dos ecossistemas. >
O abandono rural, a invasão de mato e as densas plantações de pinheiros também tornaram o vale do Côa particularmente vulnerável a incêndios de grande escala. >
"Os herbívoros ajudam a remover a biomassa, que, em vez de se acumular, está sendo devolvida ao solo", afirma Miguel Bastos Araújo, pesquisador especializado no estudo dos efeitos das mudanças climáticas na biodiversidade na Universidade de Évora, Portugal, e membro da direção da Rewilding Portugal. >
Ao consumirem capim alto e arbustos, os herbívoros ajudam a transferir o carbono da vegetação acima do solo para o solo, aumentando o armazenamento de carbono e tornando os ecossistemas mais resilientes ao fogo.>
"O Côa é um corredor natural que facilita a adaptação das espécies, permite a migração das espécies e serve como uma autoestrada da biodiversidade", afirma Bastos Araújo. >
Mas o objetivo da Rewilding Portugal de estabelecer um corredor de 1.200 km² ainda está muito distante. Embora tenha sido criado um parque arqueológico no norte do Côa para proteger as gravuras paleolíticas e exista uma reserva natural no sul da serra da Malcata, a grande maioria das terras é propriedade privada.>
"O que temos neste momento é uma paisagem altamente fragmentada, com muitas cercas e propriedades privadas, o que constitui um obstáculo para os grandes herbívoros", diz Prata.>
"Trouxemos de volta os animais retratados nas gravuras, mas ainda não conseguimos trazer de volta a migração para o Côa. As grandes manadas migratórias que se deslocavam pela paisagem continuam ausentes", afirma. A organização sem fins lucrativos está comprando terrenos ao longo do Côa para criar caminhos ecológicos.>
Para reverter a degradação dos ecossistemas, a estratégia de biodiversidade da União Europeia para 2030 exige que os Estados-membros protejam legalmente pelo menos 30% das terras europeias e protejam rigorosamente pelo menos 10% do território até o final desta década. >
Alcançar essas metas será um desafio em Portugal, onde apenas 3% das terras florestais são propriedade de entidades públicas.>
"Não temos áreas de conservação rigorosa, apenas cerca de 0,02% do território [em Portugal] é de proteção rigorosa", afirma Bastos Araújo. >
A missão da Rewilding de adquirir terras para a conservação da natureza pode ajudar a aumentar a porcentagem de terras protegidas do país, mas Bastos Araújo afirma que mais precisa ser feito em nível nacional para atingir as metas de conservação da UE – como políticas estaduais para adquirir terras a serem protegidas, incentivos fiscais para a conservação e garantir que, uma vez que uma parcela de terra seja classificada como protegida, seu status não possa mudar, mesmo que seja vendida a novos proprietários.>
Até o momento, a Rewilding Portugal afirma que a organização não enfrentou oposição significativa das comunidades locais, mas a perspectiva de aumento do número de lobos é particularmente controversa. >
Para lidar com as preocupações com potenciais ataques de lobos, a organização sem fins lucrativos forneceu cães de guarda e cercas à prova de lobos aos agricultores locais para proteger o gado. O sindicato dos agricultores locais não respondeu ao pedido de comentário da BBC Future Planet.>
"Nosso foco é levar os benefícios da natureza às pessoas", diz Prata. A renaturalização, afirma ela, pode se tornar uma oportunidade para uma economia rural regenerada, baseada no turismo de natureza e em produtos locais, e é um modelo que pode ser reproduzido em outras regiões despovoadas da Europa. >
Em Portugal, uma rede de empresas baseadas na natureza foi criada no Vale do Côa para promover produtos locais e difundir a região como um destino de turismo sustentável.>
Para Prata, o processo oferece esperança para a restauração ecológica, mas exige paciência. "Buscamos a transformação da paisagem a longo prazo para um estado mais selvagem, e isso não pode ser feito em apenas alguns anos", afirma. >
"É um compromisso de proporcionar uma paisagem mais selvagem para a próxima geração.">
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