Publicado em 22 de abril de 2025 às 16:39
Quando o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, deixou sua cidade para participar do conclave do Vaticano que elegeria o sucessor de Bento 16, certamente não imaginava que seria a última vez que pisaria em solo argentino.>
Aos 76 anos — um ano a mais do que bispos costumam ter quando apresentam sua renúncia ao papa — ele estava longe de ser o favorito para preencher o cargo então vago, de acordo com analistas.>
"Quando ele deixou Buenos Aires para o Conclave, ele parecia um tanto triste; estava preparando um quarto para sua aposentadoria no Lar dos Padres, no bairro portenho de Flores", disse Guillermo Marcó, padre da Arquidiocese de Buenos Aires, ao jornal argentino Clarín.>
Entretanto, para sua surpresa — e a do mundo inteiro — o clérigo argentino de perfil conciliador prevaleceu, dando início a um papado que duraria 12 anos.>
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Gustavo Vera, um ativista contra o trabalho escravo e o tráfico de pessoas que era amigo próximo de Bergoglio, disse à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que o pontífice imaginava um papado muito mais curto.>
"Ele pensava que seriam quatro anos, por causa da idade, ou porque talvez tivesse que abdicar devido a um derrame ou algo assim", disse o líder da Fundação La Alameda, que se tornou amigo do religioso quando ele ainda era arcebispo.>
Durante o papado de Francisco, os dois trocaram centenas de cartas. >
"Ele as escreveu com a própria caligrafia, elas foram digitalizadas e enviadas para mim", revela Vera.>
Nessas cartas, o pontífice sempre demonstrou interesse pelo que acontecia em seu país de origem.>
"Às vezes ele comentava sobre futebol, às vezes sobre tango, às vezes sobre eventos culturais", diz Vera, que afirma que o Papa acompanhava as notícias argentinas "detalhadamente".>
"Francisco manteve sua conexão com a Argentina o tempo todo. Nesses 12 anos, em sua agenda sempre havia um grande número de argentinos, que compareciam a audiências, que assistiam ao Angelus [oração feita pelo papa junto aos peregrinos na Praça de São Pedro aos domingos], que tinham audiências pessoais. Seu coração sempre esteve na Argentina, de alguma forma", afirma.>
Por tudo isso, uma das coisas mais impressionantes sobre o papado de Francisco é que em 12 anos ele nunca visitou seu país de origem.>
Francisco viajou para quatro dos cinco países que fazem fronteira com a Argentina: Brasil — sua primeira viagem ao exterior, três meses após assumir o cargo, em 2013 — Bolívia e Paraguai em 2015 e Chile em 2018.>
Ele também viajou para outros países latino-americanos, incluindo Cuba, Equador, México e Peru.>
Por que, então, ele não foi para seu próprio país?>
A resposta revela a relação complicada que Francisco tinha com sua terra natal, onde muitos o amavam e hoje choram sua morte, mas outros tantos o consideravam uma figura controversa.>
Um vínculo que foi se deteriorando à medida em que passava o tempo e aumentava a decepção e até mesmo o mal estar sentidos por muitos, diante do que consideravam uma rejeição da principal figura do país no cenário internacional.>
Não podemos esquecer que o povo argentino é famoso por seu ego, algo que o próprio pontífice costumava zombar, com seu grande senso de humor.>
A verdade é que, embora a dor da partida de Francisco agora predomine, sua relação com seu povo se enfraqueceu ao longo dos anos.>
O orgulho inicial sentido pela maioria dos argentinos após o anúncio de que um compatriota argentino seria o primeiro papa latino-americano deu lugar ao desencanto ao longo dos anos.>
Foi o que revelou uma pesquisa do Pew Research Center, que mostrou que a imagem favorável do pontífice em seu próprio país recuou de 91% em 2013, para 64% em 2024, com um aumento acentuado nas opiniões negativas, que subiram de 3% para 30%.>
Dos seis países latino-americanos pesquisados, a maior queda na percepção favorável foi registrada na Argentina.>
Alguns compatriotas de Francisco ficaram decepcionados com as suas políticas, algo que também ocorreu em outras partes do mundo.>
Os mais conservadores o acusaram de minar tradições históricas que consideravam sagradas, enquanto os reformistas esperavam mudanças mais profundas.>
Mas a desilusão de muitos argentinos com o papa transcendeu questões religiosas ou ideológicas.>
Inclusive, não tinha relação com um tema que gerou polêmica quando ele assumiu: as críticas sobre sua atuação durante o último regime militar argentino (1976–1983), quando era superior da congregação jesuíta naquele país.>
Uma reportagem no jornal Página 12 afirmou que, em 1976, Bergoglio retirou a proteção de dois padres de sua ordem que realizavam trabalho social em bairros de baixa renda.>
Os religiosos foram sequestrados pelos militares, que os mantiveram clandestinamente por cinco meses antes de libertá-los.>
"Fiz o que pude com a idade que tinha e as poucas relações com as quais contava, para defender as pessoas sequestradas", disse Bergoglio sobre a controvérsia em sua biografia O Jesuíta, de 2010.>
O debate sobre seu papel durante esse período sombrio foi amplamente resolvido com o surgimento de depoimentos de indivíduos perseguidos politicamente que ele ajudou a fugir do país, alguns dos quais foram reunidos no livro Salvos por Francisco, de 2019.>
O motivo central da decepção com Francisco parecia estar em outro lugar.>
E, ao contrário de outras figuras internacionais famosas que o país produziu, como Maradona, Messi ou a rainha da Holanda (Máxima Zorreguieta Cerruti, esposa do rei Guilherme Alexandre), Bergoglio deixou a Argentina para nunca mais voltar.>
Toda vez que lhe perguntavam sobre uma possível viagem, Francisco dava respostas vagas.>
"Eu gostaria de ir. É a minha casa, mas ainda não está decidido. Há várias coisas para resolver primeiro", disse ele na última vez em que foi questionado publicamente sobre o assunto, em setembro de 2024, ao retornar de sua viagem pela Ásia e Oceania.>
Uma hesitação que muitos de seus fiéis locais acharam difícil de entender.>
"A primeira coisa que qualquer atleta faz depois de ganhar um prêmio de nível mundial é voltar ao seu país para compartilhá-lo com seus compatriotas. Bergoglio não conseguiu voltar ao seu país nenhuma vez. Isso diz tudo", disse um usuário no X (antigo Twitter).>
"Ele nunca quis voltar ao seu país, é como se Jesus nunca tivesse pregado em Jerusalém", opinou outro.>
A ausência do pontífice foi sentida de forma mais aguda nos últimos anos, já que a Argentina enfrentou uma de suas piores crises econômicas, com inflação anual chegando a quase 300% e um aumento acentuado da pobreza, especialmente entre as crianças.>
"[Francisco] falou com as pessoas de uma forma que todos amaram e entenderam, mas sinto que ele se esqueceu um pouco do nosso país", disse Francisca Campos, de 68 anos, à agência de notícias AP.>
Ela foi uma das pessoas que se reuniram na catedral de Buenos Aires para rezar pela saúde do papa em fevereiro, durante sua última internação hospitalar.>
Segundo Vera, o verdadeiro motivo da ausência de Francisco foi que ele queria evitar que sua presença fosse usada para fins políticos.>
"Eu sempre disse que iria à Argentina quando sentisse que era um instrumento para contribuir para a unidade nacional, para ajudar a superar o racha, para tentar unir os argentinos novamente", afirmou.>
O "racha" a que ele se referia é a divisão que existe há décadas na Argentina entre peronistas e antiperonistas (ou, nos anos mais recentes, entre kirchneristas e antikirchneristas).>
Há uma crença generalizada no país de que Francisco estava entre os primeiros, algo que ele mesmo negou no livro O Pastor, publicado por ocasião de seu 10º aniversário como papa, em 2023.>
"Nunca fui filiado ao partido peronista, nem sequer fui militante ou simpatizante peronista. Dizer isso é mentira", disse Bergoglio sobre o assunto.>
No entanto, ele acrescentou: "Na hipótese de tivesse uma concepção peronista de política, o que haveria de errado nisso?">
A explicação não convenceu os argentinos de centro-direita, incluindo os apoiadores dos dois últimos presidentes não peronistas do país, Mauricio Macri e Javier Milei.>
Antes de assumir o cargo, o atual presidente chegou a chamá-lo de "a representação do mal na Terra", uma observação pela qual ele mais tarde se desculpou em privado.>
Alguns de seus compatriotas apelidaram o pontífice de "Francisco K" nas redes sociais, devido à sua suposta proximidade com a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner.>
"Não perdoo o papa por ter se encontrado e tirado fotos com políticos condenados pela Justiça", diz Hugo, de 72 anos, um argentino católico fervoroso e fervorosamente antikirchnerista, referindo-se às duas sentenças de corrupção contra Kirchner e outras autoridades de seu entorno que também foram recebidos pelo pontífice.>
Segundo Vera, o papa se encontrou com pessoas "de todo o espectro político e social da Argentina", incluindo Macri e Milei.>
Para o ativista, é preciso levar em conta que a doutrina peronista está enraizada na doutrina social da Igreja, por exemplo, em conceitos como justiça social, que é fundamental tanto para os peronistas quanto para os jesuítas, ordem religiosa à qual Francisco pertencia.>
Nesse sentido, Vera acredita que "há um setor da sociedade argentina que não era tão resistente ao papa quanto era à própria doutrina social da Igreja".>
Um de seus detratores, o congressista libertário José Luis Espert, acusou Francisco de ser "um grande defensor da pobreza que se sente muito confortável com uma Argentina miserável".>
Mas muitos outros, ao contrário, celebraram o fato de que o papa queria "uma Igreja pobre para os pobres" e que ele pregava pelo exemplo, mantendo uma vida simples e sem luxo.>
"O papa Francisco tem sido um exemplo de humildade, comprometimento e justiça social, trazendo uma mensagem de paz em tempos de confronto, lembrando a todos da importância da solidariedade e do respeito (...). O mundo precisa de mais vozes como a dele", declarou o líder social Toty Flores nas redes sociais.>
Flavio Buccino, diretor da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa da Cidade de Buenos Aires, destacou em sua conta no X que, dos últimos papas, Francisco foi "o único que não retornou à sua terra de origem".>
"Na política, alguns comemoram. Outros, nem tanto. Todos ficarão aliviados: de certa forma, Francisco [era] um 'problema' para todos. Isso diz mais sobre nós do que sobre ele", opinou.>
Da mesma forma, Vera ressalta que "em vez de culpar Francisco [por não vir], nós, argentinos, deveríamos nos perguntar o que estávamos fazendo que não merecíamos a visita do papa".>
O amigo de Francisco também destaca que, embora houvesse alguma resistência à figura de Bergoglio na imprensa e nos grandes centros urbanos, ele era adorado na periferia do país.>
"Eu percorro todo o país e o interior profundo tinha um enorme amor por ele. A grande maioria dos pobres, trabalhadores, assalariados, admirava o papa e não o recriminava por não vir à Argentina", conta.>
Embora não tenham discutido o assunto especificamente, Vera acredita que Francisco estava planejando uma visita ao seu país como um ato final de seu papado.>
"Ele não me contou, mas acho que estava reservando a reta final de seu magistério para a Argentina, como se o país fosse a estação terminal de sua longa jornada.">
No entanto, ele garante que o próprio Bergoglio não sofreu pelo fato de nunca poder retornar à sua terra natal.>
"Ele estava muito feliz por ser papa, porque sentia que podia ajudar. Ele ajudou a impedir muitas guerras, a mitigar enfrentamentos e a prevenir conflitos em muitas partes do mundo. Ele estava cumprindo a missão da sua vida", diz ele.>
Embora "tivesse mantido sua conexão com a Argentina o tempo todo", ele diz, Francisco não sentia mais que pertencia a apenas um país.>
"Os argentinos acreditam que ele era argentino, mas na realidade ele já fazia parte do mundo.">
Nisso ele concorda com o atual arcebispo de Buenos Aires, Jorge Ignacio García Cuerva — nomeado pelo papa em 2023 — que deu a mesma ênfase ao fato de que seu antecessor, desde o momento de sua eleição, não pertencia mais apenas à sua terra, algo que nem sempre foi fácil para seus compatriotas entenderem:>
"Nós, argentinos, muitas vezes não deixamos Bergoglio ser Francisco.">
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