Publicado em 26 de março de 2024 às 20:15
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) endureceu o tom com governo venezuelano de Nicolás Maduro, tradicional aliado das gestões petistas.>
Uma nota divulgada nesta terça-feira (26) pelo Itamaraty manifestou preocupação com o andamento das eleições marcadas para julho no país vizinho, diante do impedimento do registro da candidatura de Corina Yoris, pela Plataforma Democrática Unitária (PUD), grupo mais forte da oposição venezuelana.>
A coalizão denunciou que não conseguiu registrar a candidatura da historiadora para as eleições de 28 de julho porque "nunca foi permitido o acesso ao sistema de inscrição".>
O comunicado do Itamaraty foi visto como uma mudança importante de tom, segundo especialistas em política externa ouvidos pela BBC News Brasil, já que o governo Lula vinha evitando declarações públicas de críticas a Maduro, mantendo pressões por eleições livres apenas nos bastidores.>
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Para Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a nota "nuançou o apoio, que parecia incondicional, à forma como a Venezuela conduz os preparativos para as eleições à presidência do país" e indica que "uma ruptura se desenha no horizonte", caso o pleito eleitoral não ocorra de forma livre.>
Já Feliciano de Sá Guimarães, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), classificou a manifestação do Itamaraty como "uma mudança de posição lenta, tardia, porém importante".>
Ele nota que a manifestação do Itamaraty tem reflexos também na política doméstica, já que o governo de Maduro tem forte rejeição no Brasil.>
"Eu trabalho com opinião pública e política externa. O único país do mundo que os brasileiros realmente têm uma visão muito negativa é a Venezuela. Mesmo entre a esquerda, o nível de apoio ao regime venezuelano no Brasil é baixíssimo", afirma.>
"Para o governo Lula, ser visto como um apoiador do governo Maduro é, domesticamente, muito ruim. Tem peso na imagem do presidente e, portanto, peso eleitoral", acrescentou.>
A manifestação do Itamaraty diz que "o governo brasileiro acompanha com expectativa e preocupação o desenrolar do processo eleitoral naquele país".>
Sem citar diretamente Corina Yoris, a nota enfatiza que uma candidata de oposição não conseguiu se registrar para disputar o pleito presidencial, em desacordo com os acordos de Barbados, em que o governo venezuelano garantiu, em outubro passado, um calendário para as eleições de 2024, inclusive com participação e observação de órgãos internacionais.>
O acordo foi mediado com a oposição venezuelana pelo Brasil e outros países.>
Corina Yoris foi indicada como substituta de María Corina Machado, líder da oposição impedida de concorrer devido a uma medida de inabilitação para o exercício de cargos públicos que lhe foi imposta pela Controladoria-Geral da República, em decisão alvo de controvérsias.>
As pesquisas publicadas até então mostravam que, num contexto eleitoral aberto, Machado poderia derrotar Maduro.>
"A realidade é que aquilo que alertamos durante muitos meses acabou acontecendo. O regime escolheu os seus candidatos", disse Corina Machado, após a impossibilidade de registrar a candidatura de Yoris.>
Acadêmica de 80 anos, Corina Yoris foi escolhida para substituir Machado sem nunca ter participado de política e não possui nenhuma desqualificação legal. >
O fato de ser uma recém-chegada à política foi visto como uma vantagem pela coligação, que argumentou que isso tornava mais difícil para os seus oponentes desacreditá-la.>
"Com base nas informações disponíveis, (o governo brasileiro) observa que a candidata indicada pela Plataforma Unitária, força política de oposição, e sobre a qual não pairavam decisões judiciais, foi impedida de registrar-se, o que não é compatível com os acordos de Barbados. O impedimento não foi, até o momento, objeto de qualquer explicação oficial", diz trecho da nota do Itamaraty.>
A nota destaca ainda que outros onze candidatos ligados à oposição conseguiram concorrer, inclusive o atual governador de Zulia, Manuel Rosales, cujo partido também integra a Plataforma Unitaria.>
Esses outros candidatos, porém, são de partidos com pouco peso eleitoral.>
"O Brasil está pronto para, em conjunto com outros membros da comunidade internacional, cooperar para que o pleito anunciado para 28 de julho constitua um passo firme para que a vida política se normalize e a democracia se fortaleça na Venezuela, país vizinho e amigo do Brasil", continuou a nota do Itamaraty.>
"O Brasil reitera seu repúdio a quaisquer tipos de sanção que, além de ilegais, apenas contribuem para isolar a Venezuela e aumentar o sofrimento do seu povo", diz ainda o documento, finalizando, assim, com uma manifestação que agrada ao governo Maduro.>
Para Dawisson Belém Lopes, da UFMG, é "a primeira vez que o Brasil ensaia uma crítica ao processo eleitoral venezuelano".>
"(A nota) Está insinuado que, se não houver uma boa explicação oficial sobre o porquê de a candidata indicada pela Plataforma Unitária não ter tido o seu registro homologado, haverá consequências. Os acordos de Barbados estarão sendo desrespeitados, no entendimento do Brasil. Isso está dito com clareza na nota", ressaltou.>
O professor da UFMG avalia, ainda, que a Venezuela "já não conta com a simpatia dos governos de esquerda na região, como costumava ser o caso há 10 ou 15 anos, no auge da chamada Onda Rosa (em que governos de esquerda predominavam na América do Sul)", citando desaprovações já externadas pelos presidentes do Chile e (Gabriel Boric) e da Colômbia (Gustavo Petro).>
"Lula, nesse contexto, funciona como um porto seguro para Nicolás Maduro. Contudo, essa nota do Itamaraty sinaliza nas entrelinhas que, se for necessário romper, o Brasil romperá. Não se tolerará a cassação do direito político de fazer oposição ao incumbente", reforçou. Belém.>
Apesar de considerar positiva a nota pressionando a Venezuela por eleições livres positiva, Feliciano de Sá Guimarães, da UPS, ainda considerou tímida, criticando a manifestação contrária às sanções, posição já conhecida do Brasil.>
Ele lembra que o Brasil optou por manter a cobrança sobre o governo Maduro por uma disputa eleitoral democrática e legítima nos bastidores, sem realizar pressão pública relevante.>
"O governo Lula não precisa reeditar os governos Bolsonaro e Temer, de isolamento completo da Venezuela, mas poderia ter adotado, desde o início, posições públicas mais duras, dizendo que está muito preocupado com o processo eleitoral, que está acompanhando no detalhe, e que quer fazer valer o acordo de Barbados", defende.>
O Ministério das Relações Exteriores da Venezuela respondeu à nota do Itamaraty também em um tom duro, afirmando que o texto brasileiro é fruto de "ignorância".>
"O Ministério do Poder Popular para as Relações Exteriores da República Bolivariana da Venezuela repudia o comunicado cinzento e intervencionista redigido por funcionários da chancelaria brasileira, que parece ter sido ditado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, no qual são emitidos comentários carregados de profundo desconhecimento e ignorância sobre a realidade política na Venezuela", afirmou uma nota de resposta publicada pelo chanceler venezuelano, Yvan Gil. >
Guimarães ressalta que a nota do Itamaraty vem após falas controversas de Lula sobre María Corina Machado, a candidata preferencial da coalização de oposição que ficou impedida de concorrer.>
No início do mês, em uma entrevista coletiva após encontro com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, Lula foi questionado sobre a comparação que fez pouco antes da reunião entre o pleito venezuelano e o processo eleitoral no Brasil, quando afirmou que "se o candidato da oposição tiver o mesmo comportamento do nosso aqui, nada vale".>
Lula então negou que tivesse feito uma ligação entre a situação no Brasil e na Venezuela e lembrou que foi impedido de concorrer nas eleições de 2018, quando havia sido condenado pela operação Lava Jato, processo que depois foi anulado.>
"Ao invés de ficar chorando, eu indiquei outro candidato, e ele disputou as eleições", disse ainda na ocasião.>
Corina Machado rebateu a fala de Lula na rede social X (antigo Twitter): "O senhor não me conhece. Estou lutando para fazer valer o direito de milhões de venezuelanos que votaram por mim nas primárias e os milhões que têm direito de votar em umas eleições presidenciais livres nas quais derrotarei o Maduro". A opositora disse ainda na mensagem que Lula "está validando os atropelos de um autocrata que viola a Constituição e o Acordo de Barbados, que o senhor diz apoiar".>
O Planalto negou depois que Lula estivesse se referindo a Machado.>
"O presidente não fez afirmação sobre ninguém especificamente. Ele não disse que ninguém ficou chorando. Apenas que ele não chorou, relatando a situação que ele próprio viveu", disse o governo em nota à imprensa.>
Para o professor da USP, a decisão que impediu Corina Machado de concorrer é questionável.>
"Os argumentos utilizados pelo governo Maduro para retirar a María Corina Machado são risíveis. São acusações de corrupção difíceis de averiguar. Tem uma cara obviamente muito mais política", avalia.>
Embora considere importante que o governo Lula faça uma pressão pública mais forte por eleições livres na Venezuela, Guimarães considera que o governo americano tem mais capacidade de pressionar o governo Maduro, já que o Brasil reduziu sua presença econômica no país vizinho, após os governo de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).>
"Os efeitos do Brasil sobre a Venezuela são razoáveis, mas a gente não pode exagerar. O ator que realmente tem efeito direto sobre a política doméstica na Venezuela são os Estados Unidos, na medida em que ele controla sanções e as sanções afetam toda a elite política do governo Maduro", disse.>
Por outro lado, observa, os americanos têm interesse no petróleo venezuelano, num momento especialmente difícil na relação com a Rússia, outro exportador alvo de sanções devido à invasão da Ucrânia.>
O governo Joe Biden retirou parte das sanções sobre a Venezuela após o compromisso com eleições livres firmado em Barbados.>
Agora, diz o professor da USP, a Casa Branca busca se equilibrar entre aliviar sanções, mas sem favorecer muita a economia venezuelana a ponto de melhorar a popularidade de Maduro, mas também não manter as sanções muito restritas, a ponto de fortalecer o argumento do governo venezuelano de que a culpa dos problemas do país seria dos EUA.>
"Então, essa calibragem das sanções é uma questão que os americanos estão sempre levando em consideração. Temos que esperar agora a reação dos americanos em relação a isso (o descumprimento do acordo de Barbados ao barrar a candidata de oposição)", destacou.>
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