Publicado em 20 de fevereiro de 2024 às 08:09
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi considerado "persona non grata"pelo governo de Israel desde que fez um paralelo entre o Holocausto e a guerra em Gaza durante uma entrevista no final de semana. >
Lula esteve em Adis Abeba, na Etiópia, para a reunião da cúpula da União Africana. Durante o encontro, o presidente instou os países ricos a fornecerem mais ajuda a Gaza, expressando preocupação com a crise humanitária na região. >
A guerra teve início em outubro, quando o Hamas, que governa Gaza, lançou um ataque em Israel que resultou em mais de 1.200 mortes e cerca de 240 reféns, segundo as autoridades israelenses. >
Desde então, a retaliação deixou mais de 28 mil palestinos mortos, incluindo civis, mulheres e crianças, e mais de um milhão de pessoas precisaram deixar suas casas, segundo as autoridades de Gaza.>
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Em suas declarações, Lula afirmou que o Brasil condena o Hamas, mas não pode deixar de condenar as ações de Israel em Gaza, classificando o que ocorre como "genocídio".>
A repercussão da entrevista tomou outro rumo quando Lula comparou a situação em Gaza ao Holocausto, quando milhões de judeus foram mortos e perseguidos pelos nazistas. >
"O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus", afirmou o presidente brasileiro em conversa com jornalistas no domingo (18/2).>
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Em resposta, o governo de Benjamin Netanyahu declarou Lula como "persona non grata". Na diplomacia, a expressão se aplica a um representante estrangeiro que não é mais bem-vindo em missões oficiais em determinado país.>
Em discurso, Netanyahuu afirmou que Lula agiu como "antissemita". "Ao comparar a guerra de Israel em Gaza contra o Hamas, uma organização terrorista genocida, ao Holocausto, o Presidente Da Silva desrespeitou a memória de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas, e demonizou o Estado Judeu como o mais virulento antissemita. Ele deveria ter vergonha.">
A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês) define antissemitismo como "uma determinada perceção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientados contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas".>
Na segunda-feira, Lula chamou de volta o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer, ao país para consultas. Essa decisão é geralmente adotada quando um país deseja expressar desaprovação em relação às ações de outro. >
O ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira, que está no Rio de Janeiro para a reunião do G20, também convocou o embaixador israelense Daniel Zonshine para que comparecesse ao Palácio Itamaraty, no Rio.>
Críticas à declaração de Lula também foram emitidas pelo Museu do Holocausto dos EUA, que repudiou suas declarações como "falsas" e "antissemitas".>
"Utilizar o Holocausto como uma arma discursiva é sempre errado, especialmente quando se trata de um chefe de Estado. Foi exatamente isso que o presidente brasileiro Lula fez ao promover uma afirmação falsa e antissemita. Isso é ultrajante e deve ser condenado", diz o comunicado.>
No X (antigo Twitter), o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo brasileiro, Paulo Pimenta, fez uma defesa do presidente Lula.>
"O Brasil sempre, desde 7 de outubro, condenou os ataques terrorista do Hamas em todos os fóruns. Nossa solidariedade é com a população civil de Gaza, que está sofrendo por atos que não cometeram", afirmou.>
"As palavras do presidente @LulaOficial sempre foram pela paz e para fortalecer o sentimento de solidariedade entre os povos", acrescentou.>
Na avaliação de Michel Gherman, professor do programa de pós-graduação de história social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a fala foi descuidada e pode, sim, ser considerada antissemita, mas isso não transforma necessariamente o presidente Lula em antissemita.>
"Lula já foi muito próximo de posições que a comunidade judaica poderia ver de forma positiva.">
"Acho importante dizer que as críticas de Lula ao governo de Israel, suas objeções aos atos terroristas do Hamas, seu apelo pela libertação dos reféns e sua busca por uma solução política de dois estados para a criação do Estado Palestino são muito mais importantes do que a comparação inadequada, como a que ele fez.">
A pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais Monique Sochaczewski considera que a frase foi antissemita pois "vai além da crítica válida ao conflito e compara-o ao Holocausto, quando 6 milhões de judeus foram mortos em escala industrial e planejada pelo regime nazista. Trata-se de uma provocação clara ao escolher não qualquer genocídio, mas a Shoah, em que as vítimas foram os judeus".>
A BBC News Brasil procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e o Ministério das Relações Exteriores brasileiro para um posicionamento sobre as declarações do chanceler israelense, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.>
Para Michel Gherman, as declarações de Lula têm diferentes elementos problemáticos, mas o principal é que o paralelo com o Holocausto é um equívoco. >
"Lula incorpora a ideia de que Hitler teria sido o último dos elementos possíveis de comparação com o que acontece hoje em Gaza. Como se a segunda metade do século 20 não tivesse promovido episódios importantes de genocídio. E aqui eu posso citar alguns, o genocídio da Iugoslávia, de Ruanda.">
O professor explica que é importante que ele seja comparado com outros episódios históricos de violência - até para diferenciá-lo desses outros momentos, já que o Holocausto "é algo único na história". >
"Não há o processo complexo e gradual de construção da identidade palestina em Gaza como alvos de extermínio por anos como aconteceu com o povo judaico durante o Holocausto.">
Para Sochaczewski, a proximidade do ex-presidente Jair Bolsonaro com alguns integrantes do governo de Israel pode ter impactado na decisão de Lula de se posicionar de forma tão enfática sobre Gaza.>
Bolsonaro era próximo do primeiro-ministro Netanyahu e, no fim do ano passado, quando já não tinha cargo oficial, se encontrou com o embaixador de Israel no Brasil.>
"Atualmente, enxergamos esse conflito no Brasil de forma simplificada, como se Bolsonaro estivesse alinhado com Israel e Lula com a Palestina, mas essa percepção é rasa", opina.>
Gherman avalia que a denúncia que Lula fazia sobre a falta de apoio à Gaza, que ele considera importante, acabou sendo esquecida.>
A declaração de Lula inicialmente respondia a uma pergunta feita por um jornalista sobre o desejo do líder brasileiro de aumentar o financiamento para a UNRWA , a Organização de Apoio aos Refugiados Palestinos, depois que o grupo foi acusado de ter tido funcionários que colaboraram com atos do Hamas.>
Mais de 10 países, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Itália, Suíça, Irlanda e Austrália, chegaram a interromper os repasses de recursos para a UNRWA.>
Na ocasião, o presidente respondeu criticando os países que retiraram o apoio.>
Outra consequência, na visão do professor, é o possível uso das declarações de Lula pelo governo de Netanyahu para aumentar a sua própria popularidade entre os israelenses.>
"Quando uma declaração como a feita por Lula é proferida, o governo a utiliza para se fortalecer, especialmente internamente. Externamente, acredito que o governo de Israel está bastante debilitado. Uma frase mal colocada de Lula pode não lhe garantir muito apoio.">
A pesquisadora Monique Sochaczewski afirma que, ao tocar em um ponto muito sensível não apenas para Israel, mas para os judeus de todo o mundo, o Brasil pode perder a chance de assumir um papel importante como mediador do conflito entre Israel e os palestinos. >
"Inicialmente existia a percepção de que a tradição brasileira de política externa para o Oriente Médio era de equidistância, buscando mediar e dialogar com ambos os Estados.">
"Em relação a uma retratação, eu acho que está tendo um movimento, tanto de políticos quanto de diplomatas, de pessoas que entenderam que foi um tom muito acima do necessário", opina a pesquisadora.>
O mais importante, na visão do professor Michel Gherman, não é que Lula se retrate com o governo israelense, mas sim com seus eleitores judeus. >
"A fala de Lula não teve qualquer preocupação com o respeito. Há grupos de judeus brasileiros que apoiaram e apoiam o Lula firmemente contra Bolsonaro, e é fundamental que Lula dialogue com eles.">
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