Publicado em 23 de abril de 2024 às 05:45
A história começa em uma sala subterrânea mal iluminada, com nuvens rodopiantes de ar gelado e fileiras de potes de vidro que se estendem até onde a vista alcança.>
Dentro desses 700 contêineres há algo inesperado: cada um abriga um cérebro humano perfeitamente preservado.>
Era 1991 quando um jovem e inexperiente neurocientista chamado David Snowdon conheceu a Irmã Mary, uma freira muito incomum.>
Como muitas outras, ela estava vestida da cabeça aos pés com um tradicional hábito preto e branco. Ela era eternamente otimista, raramente ociosa.>
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Mas o que surpreendeu Snowdon foi que a Irmã Mary, aos 101 anos, tinha uma boa memória.>
O cientista ainda não sabia que havia algo de extraordinário nela, algo que a distinguia das outras freiras.>
Desde 1986, Snowdon estava imerso em um dos projetos mais singulares e ambiciosos já realizados, que começou na Universidade de Minnesota e foi transferido para a Universidade de Kentucky em 1990.>
Com sua equipe, ele viajou pelos Estados Unidos, visitando conventos da congregação das Irmãs Escolares de Nossa Senhora, convencendo 678 freiras a participar do experimento.>
“Normalmente não se juntaria um convento e ciência, mas isso vale ouro”, disse a neurocientista Julia Ravey à BBC.>
“O que realmente existe [num convento] é uma população de controle [com condições menos variáveis], que é o objetivo da ciência. Queremos controlar tudo, queremos controlar o incontrolável.”>
Para o agora famoso “Estudo das Freiras”, cada irmã concordou em realizar uma série de testes que repetiriam ano após ano até morrerem, na esperança de que revelassem segredos da longevidade.>
Quando é que os seus cérebros começariam a falhar e com que rapidez poderiam declinar?>
“As irmãs receberam algo que chamamos de 'miniexame do estado mental'”, explica Ravey.>
Depois de concluído, cada freira recebeu uma pontuação: quanto maior a pontuação, mais saudável sua mente.>
A maioria das pessoas obteria 30 em 30 se tivessem uma cognição completamente sólida.>
A ideia era ver como essa pontuação mudava ao longo do tempo.>
Depois de monitorar centenas de mulheres ao longo de muitos anos, Snowdon tinha um magnífico conjunto de dados.>
Mas a joia desta coroa era um gráfico notável indicando a idade, na parte inferior, e a capacidade cognitiva medida de 0 a 30 pontos na lateral.>
A equipe de Snowdon compilou todas as pontuações em uma página com resultados surpreendentes.>
"Depois de traçar todos esses pontos em um gráfico, você terá linhas e mais linhas de pontos e poderá ver muitos aglomerados no canto superior esquerdo do gráfico.">
Correspondiam às que tiveram melhor desempenho, centenas de freiras na faixa dos 70 e 80 anos que obtiveram entre 25 e 30 pontos nas suas provas. Um forte sinal de que seus cérebros estavam funcionando bem.>
Como confete na página, um grupo de pontos se posicionava abaixo.>
Eram as pessoas que não conseguiam se lembrar de acontecimentos muito recentes.>
"Eles podem ter se lembrado de coisas do passado, mas seu senso de tempo e lugar era ruim; eles não conseguiam responder a perguntas muito simples que você esperaria que as pessoas soubessem.">
Algumas dessas mulheres tinham entre 80 e 90 anos, então talvez o declínio cognitivo seja esperado, mas algumas tiveram uma pontuação de 0.>
Snowdon conhecia a teoria do “use, senão você perde” e havia evidências de que a função cerebral, uma vez não trabalhada, era irrecuperável.>
Mas o gráfico mostrou outra coisa. Algo incomum.>
Um único ponto se destacou naquele gráfico, muito acima dos demais.>
“Irmã Mary está bem no canto superior direito do gráfico. E é aqui que eu realmente fico animado, porque ela é uma exceção à tendência geral de que quanto mais velho você fica, menor sua pontuação”, observa Ravey.>
Ela sempre estaria no lado direito do gráfico por causa de sua idade: ela era uma das únicas duas participantes de todo o estudo com mais de 100 anos de idade.>
Mas a Irmã Mary está num quadrante só para si, flutuando sozinha muito acima de muitos outros pontos.>
O gráfico dizia a Snowdon que aos 101 anos ele tinha a função cerebral de alguém 20 anos mais novo.>
"O que estava acontecendo em seu cérebro?">
Voltemos àquelas fileiras de potes de vidro no freezer subterrâneo, porque todos esses cérebros fazem parte da pesquisa de Snowdon.>
Para realmente entender como um cérebro é diferente do outro, você precisa segurá-lo nas mãos.>
“Para algumas pessoas, a ideia de doar um cérebro pode ser um pouco desconfortável, embora seja tecnicamente apenas mais um órgão", explica a neurocientista Ravey.>
Isso ficou evidente quando Snowdon fez o pedido diante de uma grande congregação de freiras. Houve um grande silêncio até que uma voz soou alta e clara.>
“Claro, vou te dar meu cérebro.”>
E assim, quando a Irmã Mary morreu às 18h45 do dia 13 de junho de 1994, Snowdon e sua equipe reservaram um momento para prestar suas condolências e lamentar a perda da mulher cuja mente permaneceu praticamente intacta até o dia de sua morte, antes de iniciar o trabalho de entender o que a tornava tão especial.>
“Imediatamente, os pesquisadores notaram algo muito diferente no cérebro da Irmã Mary.>
“Pesava 870 gramas, um dos cérebros mais leves: apenas cinco dos 117 que tinham naquela época pesavam menos.>
“O que um baixo peso cerebral nos diz”, explica Ravey, “é que houve muita morte de células cerebrais e foram encontradas placas e também emaranhados [indicadores de doenças neurodegenerativas]”.>
Snowdon e a equipe ficaram surpresos ao ver que o cérebro estava profundamente danificado, e as placas retorcidas e os emaranhados de tecido proteico indicavam que a Irmã Mary tinha demência avançada.>
Mas como isso poderia ser possível?>
Como alguém poderia não mostrar sinais de declínio cognitivo em idade avançada, apesar de ter um cérebro fisicamente devastado pela doença?>
Uma teoria para explicar todo esse caso é a chamada reserva cognitiva.>
Os cérebros estão ligados por um conjunto de neurônios protetores que, se exercitados através da aprendizagem ao longo da vida, poderão compensar os danos causados pela doença de Alzheimer.>
Esses neurônios, de certa forma, funcionam como manchas ao redor de placas prejudiciais e emaranhados de doenças.>
Mas tudo isto levanta outra questão: se alguns cérebros estão fisicamente preparados para proteger contra sinais de declínio cognitivo e outros não, será possível determinar quem irá desenvolver demência muito antes do aparecimento dos sintomas?>
Suzanne Tyas é agora professora associada na Universidade de Waterloo, mas era estudante de pós-graduação quando se juntou à equipe de Snowdon para trabalhar em algo novo e empolgantes, algo que havia sido descoberto no porão de um convento, em duas arquivos enferrujados de cor verde oliva.>
Do lado de fora, pareciam modestos, mas por dentro continham uma mina de ouro para pesquisa.>
“Isso incluía coisas como boletins escolares, o número de línguas que falavam. Mas principalmente alguns ensaios autobiográficos que essas jovens escreveram antes de fazerem seus votos finais para entrar no convento”.>
Escondidas entre as redações havia pistas sobre as freiras, seu nível de educação, vocabulário e conhecimentos gerais.>
É claro que não havia medidas diretas que pudessem ser traçadas, mas a equipe decidiu avaliá-las pelo que chamaram de densidade de ideias: o número de ideias distintas por 10 palavras escritas.>
Aqui está um exemplo em que duas freiras descrevem suas circunstâncias.>
Uma escreveu, descrevendo sua família: “Há 10 crianças na minha família, 6 são meninos, duas são meninas. Dois dos meninos estão mortos”.>
A sintaxe é simples. Vai direto ao ponto, não é muito expressiva e é compacta.>
Compare-a com esta outao, que transmite o mesmo tipo de informação, mas de uma forma dramaticamente diferente.>
Começa dizendo: "O dia mais feliz da minha vida até agora foi a minha primeira comunhão". E termina com a frase: "Agora estou vagando por Dove's Lane esperando apenas mais três semanas para seguir os passos do meu esposo, ligada a ele pelos votos sagrados de pobreza, castidade e obediência.'">
Há uma diferença na forma como estas e outras mulheres se expressaram na juventude. Alguns descreviam vidas interiores complexas e ricas, enquanto outros eram monótonos e incolores.>
E agora vem a parte incrível.>
“Aquela primeira irmã com uma linguagem muito simples passou a desenvolver Alzheimer. Enquanto a segunda irmã isso não ocorreu.”>
Quando Snowdon e a sua equipe começaram a comparar pontuações mais elevadas nestes primeiros escritos com o desenvolvimento da doença de Alzheimer mais tarde na vida, um padrão começou a emergir.>
As irmãs que escreveram ensaios com alta densidade de ideias e complexidade gramatical pareciam evitar os sintomas mais tarde na vida.>
Suas memórias e habilidades linguísticas permaneceram intactas.>
À medida que a equipe examinava essas páginas mais de perto, o espanto só aumentava.>
Ensaios escritos por estas irmãs quando tinham cerca de 20 anos de idade poderiam ser usados para prever com 85 a 90% de precisão quais cérebros desenvolveriam Alzheimer décadas mais tarde.>
“Tenho vontade de desenterrar minhas antigas redações do ensino médio e da faculdade que estão no porão da casa dos meus pais, mas estou quase com medo de olhar”, confessa Tyas.>
Parecia que a autobiografia da juventude poderia ter um poder profético inimaginável, mas também representava o dilema do ovo e da galinha .>
A reserva cognitiva protegeu alguns cérebros dos sintomas de Alzheimer ou a redação medíocre destacou os primeiros sinais de um cérebro predisposto a declinar mais tarde?>
“Ainda não sabemos como todas essas mudanças se desenvolvem no cérebro", afirma Tyas.>
“No entanto, sabemos que níveis mais elevados de educação reduzem o risco de desenvolver a doença de Alzheimer.">
Portanto, segundo a cientista, esta peça única que analisa as habilidades da linguagem escrita e as características de expressão pode realmente ampliar a visão de saber o que aconteceu com elas mais de meio século depois.>
“O que descobrimos no estudo das freiras é que estas alterações no cérebro nem sempre levam a sintomas de Alzheimer ao longo da vida. E para mim, isso é extremamente encorajador.”>
Grandes avanços estão sendo feitos na forma como detectamos essas mudanças no cérebro.>
As ressonâncias magnéticas e até mesmo os exames de sangue estão abrindo caminho para a detecção precoce.>
A questão de como tratá-las permanece sem resposta, mas talvez não por muito tempo.>
Muitos pesquisadores acreditam que estamos a apenas alguns anos de descobrir um soro que possa remover essas placas e emaranhados do nosso cérebro à medida que se desenvolvem.>
Mas por enquanto, só temos que esperar.>
David Snowdon se aposentou e suas 678 freiras morreram. Mas aqueles potes de vidro na câmara fria ainda estão lá.>
E graças a essa doação extraordinária das freiras, o estudo continua vivo no Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas, na cidade de San Antonio.>
*Se quiser ouvir o episódio "In the Habit" da série "Uncharted", da BBC, clique aqui.>
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