Publicado em 30 de abril de 2024 às 06:24
Layla Hassan tomou um susto quando percebeu que sua filha Laiza da Silva ganhou 20 quilos em apenas um ano.>
À época, a menina tinha 6 anos — e a junção do histórico familiar com as observações do dia a dia da família acionaram um sinal de alerta na mãe.>
"Entre meus parentes, todo mundo tem problema de sobrepeso, diabetes, colesterol… Isso é algo que sempre me preocupou", relata Layla, que mora na cidade de Matinhos, no litoral paranaense.>
"Também passei a observar que a Laiza não conseguia acompanhar os amiguinhos na escola. Ela corria um pouco e já ficava cansada. Ela sempre precisava deixar os exercícios e as brincadeiras, não tinha a mesma rapidez dos colegas... Em casa, preferia ficar no tablet, deitada", relata a mãe.>
>
"E ganhar 20 quilos em apenas um ano é muita coisa para uma criança pequena", constata ela.>
Hoje, Laiza está prestes a completar nove anos, e a vida da família passou por uma grande transformação. Alguns hábitos antigos saíram de cena e foram substituídos por outros.>
"Não fizemos nada radical. Percebemos que não adiantava proibir algumas coisas, porque isso gerava uma vontade ainda maior nela", diz Layla.>
Um exemplo disso foi o refrigerante: a família passou a restringir o consumo e comprar versões zero açúcar. "Hoje em dia, ela criou um hábito novo e até estranha quando vai na casa de alguém que oferece uma bebida açucarada.">
Laiza também começou a praticar mais atividade física e realiza aulas de treinamento funcional duas vezes por semana.>
O resultado da transformação apareceu rapidamente na balança. Desde que a família mudou o estilo de vida, a menina perdeu seis quilos e agora está conseguindo manter o peso — algo considerado positivo, uma vez que ela está em fase de crescimento.>
"Fico feliz por vê-la correr e estar mais ativa", comemora a mãe.>
"Claro que, como pais, nós temos muito a melhorar ainda e nos cobramos bastante sobre isso. Muitas vezes, chegamos do trabalho cansados e, pela facilidade, compramos um lanche ou uma pizza", admite a mãe.>
"Os pais devem observar os filhos e não esperar que eles engordem muito para só aí procurar ajuda médica", sugere ela.>
A história de Laiza está longe de ser única no Brasil e no mundo. As taxas de excesso de peso e obesidade entre os menores de idade crescem numa velocidade que impressiona os especialistas.>
E um estudo publicado em abril no The Lancet Regional Health - Americas conseguiu capturar como esse fenômeno ganha terreno em nosso país.>
Nele, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e da Universidade College London, no Reino Unido, avaliaram uma enorme quantidade de dados provenientes de três registros públicos: o Cadastro Único do Governo Federal, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos e o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional.>
A partir desses registros, eles conseguiram compilar informações de 5,7 milhões de crianças brasileiras de 3 a 10 anos, que nasceram entre 2001 e 2014.>
"Esse é um número sem precedentes", destaca o pesquisador Gustavo Velásquez Meléndez, professor titular da Escola de Enfermagem da UFMG e um dos autores da pesquisa.>
Em resumo, o levantamento traz duas conclusões principais. A primeira é que as crianças brasileiras estão mais altas: aquelas que nasceram entre 2008 e 2014 têm 1 centímetro a mais, em média, em relação ao grupo que veio ao mundo entre 2001 e 2007.>
Mas o dado que chama a atenção vem na sequência: uma parcela cada vez maior desse público está acima do peso.>
Ao analisar o Índice de Massa Corporal (IMC), os autores descobriram que 30% dos meninos e 26,6% das meninas que nasceram entre 2008 e 2014 estão com excesso de peso ou obesidade.>
Vale lembrar aqui que o IMC é uma conta matemática que considera o peso (em quilos) dividido pela altura (em metros) elevada ao quadrado. O resultado dessa equação indica se o indivíduo está abaixo, dentro ou acima do peso.>
Anteriormente, entre aqueles que são de 2001 a 2007, essas taxas de sobrepeso estavam em 26,8% e 23,9%, respectivamente.>
Em outras palavras, os índices recém-publicados revelam que um em cada três meninos e uma em cada quatro meninas estão longe dos parâmetros considerados saudáveis para as idades deles.>
Inquéritos realizados no final dos anos 1980 e 1990 sugeriam que o sobrepeso infantil afetava ao redor de 5% das crianças brasileiras da época.>
"A grandeza desses números chama a atenção, ainda mais por estarmos falando de uma população de baixa renda", analisa Meléndez.>
Os bancos de dados usados na investigação têm um enfoque maior nos mais pobres, que são candidatos a programas como o Bolsa Família.>
"A obesidade pode se tornar um problema ainda maior num contexto de desigualdade social, em que os mais afetados não terão acesso aos recursos necessários para lidar com a condição, como uma dieta saudável ou tratamentos adequados", complementa ele.>
"Esse artigo publicado no The Lancet representa a junção de dados que já foram observados em outros trabalhos feitos no Brasil e no mundo nos últimos 30 anos, e reforçam a tendência de aumento da obesidade", comenta o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, coordenador do coordenador do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi, em São Paulo.>
"Esse aumento do excesso de peso ocorre numa idade cada vez mais precoce, de forma intensa e prolongada", diz o especialista, que não esteve envolvido no estudo citado acima.>
Mas o que explica essa explosão dos quilos extras entre os mais jovens?>
>
Por muitos anos, a obesidade foi erroneamente vista como algo simplesmente comportamental, como se o indivíduo engordasse por culpa própria, apenas por comer demais ou fazer pouco exercício. Felizmente, essa noção caiu por terra.>
"De forma pragmática, o excesso de peso está ligado a um descompasso na equação entre consumo calórico e gasto energético", raciocina Meléndez.>
"Mas hoje sabemos que essa equação simples está inserida num contexto muito complexo, que envolve o indivíduo, a família, o ambiente, a economia e a política", lembra o especialista.>
Ou seja: a pessoa (ou a criança, no caso) não ganha peso porque quer ou por ser "descuidada". Em primeiro lugar, há fatores genéticos, endocrinológicos e neuronais que contribuem para isso. Segundo, toda a forma como a sociedade está organizada nos dias atuais facilita o acúmulo de gordura no corpo.>
"O crescimento do sobrepeso e da obesidade tem muito a ver com os hábitos de vida. Nas últimas décadas, nós tivemos um acesso facilitado a alimentos que são, ao mesmo tempo, muito baratos e muito calóricos. Eles não possuem um controle de qualidade ou informações claras no rótulo", analisa a endocrinologista pediátrica Julienne Angela Ramires de Carvalho, do Hospital Pequeno Príncipe, no Paraná.>
"Falamos aqui dos alimentos ultraprocessados, ricos em gordura, açúcar e sal. Para piorar, eles são muito palatáveis, então é fácil que as crianças gostem e se habituem a comê-los.">
A médica, que também é professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Paraná, ainda destaca que esses produtos são fáceis de preparar — o que facilita a vida de pais e mães que trabalham o dia inteiro e não têm muito tempo para planejar uma refeição.>
“A praticidade é um fator determinante para as escolhas alimentares”, constata ela.>
Em paralelo às mudanças na alimentação, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também destacam o avanço do sedentarismo, a partir da substituição paulatina de brincadeiras ativas — como o futebol ou o pega-pega na rua, por exemplo — por atividades passivas — caso dos jogos de videogame e dos vídeos postados na internet.>
Os pesquisadores apontam que essa "troca" também está relacionada à insegurança, pois pais e responsáveis têm medo de deixar os filhos brincando fora de casa, e mais recentemente à pandemia de covid-19, que demandou um isolamento social para todas as faixas etárias por um tempo prolongado.>
Engana-se quem pensa que as consequências dos quilos extras, como o desenvolvimento de doenças crônicas, infarto, AVC e câncer, só apareçam após a quinta ou sexta década de vida. Alguns efeitos já podem ser observados na própria infância, apontam os médicos.>
"Em crianças com excesso de peso, há uma alta frequência de pressão alta, resistência à insulina e gordura no fígado", lista a endocrinologista pediátrica Cristiane Kochi, da Sociedade Brasileira de Pediatria.>
Um levantamento com 104 jovens realizado pelo Instituto do Coração (InCor), na capital paulista, revelou que 57% tinham valores indesejáveis de colesterol total e 55,4% estavam com o triglicérides acima dos limites.>
"Esses desvios [nos valores de colesterol e triglicérides] estiveram relacionados à presença de obesidade e sobrepeso", pontuam os autores do estudo.>
Já um outro trabalho feito na Universidade Federal de São Paulo avaliou 220 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos e detectou resistência à insulina em 33,2% deles. Um dos fatores que favoreciam o desenvolvimento dessa condição, que pode evoluir para diabetes, era o aumento da circunferência abdominal.>
A Federação Mundial de Obesidade estima que, em 2020, 1,2 milhão de crianças brasileiras tinham pressão alta e 535 mil apresentavam altas taxas de açúcar no sangue por causa do excesso de peso.>
O acúmulo de gordura também pode representar uma sobrecarga para os ossos e as articulações — e não raro os mais jovens apresentam dores nessas partes do corpo.>
"Também chama atenção questões relacionadas à autoestima e ao risco de desenvolver quadros psicossociais. Vemos que esses indivíduos com sobrepeso nessa faixa etária sofrem mais com ansiedade e depressão", acrescenta Kochi, que publicou pesquisas sobre esses temas pela Santa Casa de São Paulo.>
Para completar, os médicos destacam que crianças com sobrepeso tendem a manter medidas acima do considerado saudável na adolescência e na vida adulta — o que abre alas para as mais diversas consequências à saúde, como doenças cardíacas e câncer.>
"Essas crianças ficam expostas a uma incidência precoce de doenças crônicas e mortalidade", resume o pesquisador Wolney Lisboa Conde, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).>
"Com isso, quero dizer que as doenças que apareceriam aos 65 ou 70 anos já acometem esses indivíduos quando eles estão com 45 ou 50 anos", detalha ele.>
Mas, diante de um cenário tão grave, será que existem maneiras de lidar com o excesso de peso logo na infância?>
Os médicos e pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil são unânimes em afirmar que é necessário pensar em estratégias preventivas e educativas capazes de conter o avanço da obesidade entre os jovens.>
"E isso precisa envolver necessariamente toda a família. Não é a criança que faz as compras do mês ou que prepara as refeições. Os pais precisam ser educados por meio de campanhas de conscientização", sugere Carvalho.>
Kochi lembra que o Brasil possui diretrizes de dieta e atividade física que são referências no mundo inteiro, como o Guia Alimentar para a População Brasileira e o Guia de Atividade Física para População Brasileira, produzidos a pedido do Ministério da Saúde.>
Na visão dela, esses documentos podem ser utilizados na prática e chegar às pessoas de uma maneira simples e didática.>
Por meio dessas e de outras publicações, os pais podem aprender como preparar refeições fáceis e práticas para os filhos com ingredientes que sejam saudáveis e nutritivos, como legumes e verduras.>
E toda a família pode mudar hábitos e adotar um estilo de vida mais ativo — priorizando as atividades que mexem o corpo em vez daquelas que envolvem ficar deitado ou sentado por longas horas.>
"Precisamos explicar o que é o comer saudável e a importância de desenvolvermos cidades mais sustentáveis e seguras, com equipamentos públicos que estimulem o exercício", pondera Kochi.>
"Também precisamos cobrar por melhorias nos rótulos dos alimentos, para que todos possam entender o que há naquele produto, e fazer a regulação de propagandas voltadas para o público infantil de alimentos de baixíssima qualidade, ricos em açúcar e gordura", defende Carvalho.>
Os especialistas acrescentam que a prevenção da obesidade infantil começa antes mesmo do nascimento: as mulheres precisam ser acompanhadas e orientadas a manter um peso adequado durante a gestação, pois isso vai impactar na saúde do filho nos primeiros anos (e até pelo resto da vida dele).>
"Depois, o aleitamento materno é outro ponto de atenção. Crianças que não foram amamentadas têm um risco maior de desenvolver excesso de peso", destaca Kocchi.>
"Portanto, o aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida da criança é considerado um fator protetor contra a obesidade", complementa ela.>
Em meio a essa discussão, não podemos ignorar o fato de que um terço dos meninos e um quarto das meninas do Brasil já pesam mais do que deviam — e, portanto, precisam receber algum tipo de cuidado.>
Para elas, as mudanças de hábito citadas nos parágrafos anteriores — adotar uma alimentação equilibrada, reforçar a prática de exercícios físicos, etc. — são o primeiro passo fundamental.>
Mas algumas vezes, essas estratégias sozinhas já não são mais suficientes.>
"Os profissionais de saúde precisam ficar mais atentos para fazer o diagnóstico precoce e alertar as famílias", sugere Meléndez.>
"Mas não existe uma fórmula de tratamento única, que podemos indicar para todas as crianças", constata Fisberg.>
"Nós sabemos que, em muitos desses casos, fazer apenas a orientação de mudança de estilo de vida não é algo que vai resolver. Nas situações mais graves, pode ser necessário fazer tratamentos mais intensos, com medicações ou cirurgias", resume o médico.>
Geralmente, para crianças com sobrepeso que já apresentam doenças crônicas, os profissionais de saúde prescrevem remédios que controlam alguns desses indicadores, como a pressão arterial e o colesterol.>
Já as medicações específicas contra a obesidade (como liraglutida e semaglutida, por exemplo) estão liberadas com prescrição de um especialista a partir dos 12 anos de idade. As cirurgias bariátricas, quando indicadas, também podem acontecer já na adolescência se necessário.>
E aqui é importante que o planejamento alimentar seja feito com cuidado, com o auxílio de profissionais especializados no assunto. Isso porque estamos falando de indivíduos em fase de crescimento — e é preciso pensar no aporte adequado de calorias, vitaminas, minerais e outros elementos essenciais nessa fase da vida.>
Ou seja, a estratégia nutricional precisa ter um balanço fino em prol do comer saudável, capaz de promover o desenvolvimento do corpo, sem exageros que gerem o acúmulo de gordura.>
Lisboa Conde destaca a necessidade de reorganizar todo o sistema de saúde brasileiro, de modo que ele seja capaz de lidar com essa demanda crescente de casos de obesidade infantil — ainda mais diante da constatação de que o problema ganha relevância entre as camadas mais pobres da população, como visto no estudo publicado no The Lancet.>
"E isso é um desafio para qualquer país. Mas o Brasil tem condições de criar esse programa, porque tem um serviço público de saúde bem estruturado e uma tradição em estratégias de acompanhamento e educação da população", pontua o especialista.>
"Precisamos ter protocolos claros sobre como fazer o manejo do ganho de peso nas crianças", acredita ele.>
Afinal, um problema tão complexo e multifacetado quanto esse não terá uma única solução. É preciso agir em várias frentes de saúde individuais e coletivas para prevenir o sobrepeso sempre que possível — e oferecer tratamento àqueles que precisam.>
Isso é algo que, de um jeito ou de outro, precisará ser encarado de frente: o Atlas da Federação Mundial de Obesidade lançado neste ano aponta que, se nada for feito, 20 milhões de crianças brasileiras terão sobrepeso em 2035. Isso representará 50% da população infantil do país num futuro nem tão distante assim.>
>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta