Publicado em 24 de abril de 2025 às 05:39
Em um dos vídeos emocionantes que agora estão marcados na história do seu pontificado, o papa Francisco consola um menino de 12 anos angustiado ao pensar sobre a vida pós-morte de seu pai, um homem ateu. >
"Deus tem o coração de um pai. E diante de um pai, não crente, que foi capaz de batizar seus filhos e dar essa bravura aos seus filhos, vocês acham que Deus seria capaz de deixá-lo longe?", disse então Francisco, morto na segunda-feira (21/4).>
O episódio em 2018 seria apenas um dos vários em que o papa deu mostras de que encarava o ateísmo (ou a negação da existência de um Deus) com certa naturalidade — ou ao menos longe de uma visão mais condenatória da Igreja em relação aos não crentes. >
O caminho traçado por Francisco foi bem diferente daquele criado por seu antecessor, o papa Bento 16, que chegou a associar ateus aos nazistas.>
>
Numa missa na Escócia em 2010, ao relembrar a Segunda Guerra Mundial, o então papa disse que a tirania nazista foi um "extremismo ateísta do século 20", ressaltando que a falta da crença em Deus leva "em última instância a uma visão truncada do homem e da sociedade".>
Naquele mesmo ano de 2010, Francisco, ainda como Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, dizia no recém-lançado livro Sobre o Céu e a Terra que ele não perguntava se uma pessoa acreditava ou não em Deus.>
O importante, dizia, era saber se seu interlocutor "fazia algo pelos demais" — uma ideia que ganharia manchetes pelo mundo anos mais tarde quando sugeriu em declarações que era melhor uma pessoa ser ateia do que ser uma católica que ia à missa, mas nutria ódio pelos outros.>
A visão distinta de Francisco, que propôs uma Igreja mais aberta e em diálogo com vários setores da sociedade, fez o papa ser visto ao longo dos anos positivamente pelos não católicos, segundo pesquisas feita principalmente nos Estados Unidos.>
Na última pesquisa publicada pelo centro de pesquisas americano Pew Research Center, que acompanhou ao longo dos anos a popularidade de Francisco nos EUA, 56% das pessoas sem afiliação religiosa tinham uma visão favorável do papa, uma aprovação maior, inclusive, do que entre os protestantes (51%). >
Esse grupo inclui ateus, agnósticos (aqueles que acreditam não ser possível determinar a existência ou inexistência de Deus) e os que não se incluíam nesses grupos, mas se consideravam sem fé.>
Assim que o papa assumiu o Vaticano, em 2013, a visão positiva entre essa parcela era apenas de 39% — e o máximo da popularidade dele foi em 2017, quando 71% dos sem filiação religiosa responderam que tinham uma visão favorável de Francisco, segundo o Pew.>
Numa pesquisa global de 2015, da WIN/Gallup International, 51% dos ateus e agnósticos enxergavam o papa de forma positiva.>
Para o padre Luís Corrêa Lima, professor de Teologia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica), Francisco conquistou os não católicos e não crentes por ter se mostrado desde o princípio que era um tipo de papa dialogante, e não divisivo. >
"Não era do tipo que dizia só eu tenho a verdade e a salvação. Ele sabia prezar o que o outro tinha de bom", reflete o padre, presidente das Faculdades Católicas, instituição mantenedora da PUC-Rio.>
Entre essas demonstrações, segundo o padre, estão a encíclica Laudato si, publicada em 2015, em que papa Francisco chamou a Terra de "Casa Comum" (ou seja, o planeta de todos, e não apenas de poucos), além do documento em favor da paz assinado junto ao líder muçulmano dos Emirados Árabes.>
O antropólogo e historiador Diego Omar da Silveira, autor de artigos sobre ateísmo no Brasil, avalia que essa aprovação ocorre porque os ateus formam um grupo em geral progressista, que não é preso a ideias da tradição.>
"A Igreja estava num momento complicado, saindo papado de Bento 16 que retornou à tradição, à ideia de exclusivismo da igreja enquanto centro de referência moral", diz Silveira, que é coordenador do curso de Ciências da Religião na Universidade do Estado do Amazonas. >
O papa Francisco veio, segundo o pesquisador, com a missão de se "relacionar melhor com sociedade civil, se colocando no mundo com outras referências que não só a Igreja. Isso foi visto com bons olhos pelo público não religioso".>
À frente do Vaticano por 12 anos, Francisco tornou o catolicismo mais aberto, por exemplo, aos homossexuais, ao autorizar que casais do mesmo sexo recebam a benção de padres, a divorciados, e adotou posicionamentos firmes em questões globais, como o repúdio à concentração de riqueza e à exclusão de imigrantes.>
"Embora não tenha encaminhado essas mudanças de dogmas de fato, pelo menos ele pautou as discussões e as tratou com certa leveza", avalia Silveira.>
Não só como líder espiritual do mundo católico, Francisco, enquanto papa, também teve papel diplomático e de chefe de Estado do Vaticano, que tem relações plenas com 184 países e com a União Europeia. >
Além disso, foi um participante formal dos assuntos internacionais, como em questões sobre imigração e direitos humanos, num mundo que caminhou nos últimos anos em direção a políticos da direita radical, normalmente contra essas pautas.>
Recentemente, por exemplo, o papa reagiu publicamente e chamou de "desgraça" os planos de Trump de deportar imigrantes.>
A Santa Sé também tem status de Observador Permanente nas Nações Unidas (ONU), o que lhe garante assento em uma das mesas de decisão mais influentes do planeta.>
Papa Francisco foi crucial, por exemplo, na mediação do acordo que reestabeleceu relações diplomáticas entre os EUA e Cuba, em 2014 — um processo que seria desfeito por Trump. >
O então presidente cubano, Raúl Castro, ele próprio um ateu, chegou a dizer: "Se o papa continuar falando assim, mais cedo ou mais tarde, voltarei a rezar e retornarei à Igreja Católica".>
Francisco também costurou um papel importante no processo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), além de falar com frequência contra guerras como a da Ucrânia e em Gaza.>
Ateu há 10 anos, o gaúcho Léo Kaufmann, de 39 anos, diz que todas essas sinalizações o fizeram admirar o papa, mesmo sem acreditar em Deus ou concordar com ensinamentos da Igreja Católica. >
Kaufmann, um homem gay, casado, que trabalha organizando eventos corporativos de recursos humanos, fez questão de fazer um post nas suas redes sociais após a morte de Francisco, ressaltando a defesa do papa de que "caráter não tem religião".>
"O papa foi alguém disposto a acolher e não a usar as escritas como forma de separar as pessoas", diz Kaufmann, para quem o papa enfrentou os dogmas e seguiu mais estritamente os ensinamentos creditados a Jesus Cristo, como a humildade, do que seus antecessores.>
Para ele, o enfrentamento do papa Francisco em relação ao tradicionalismo da igreja em temas como acolhimento a pessoas LGBTQIA+, imigrantes, divorciados ou mulheres de certa forma cria uma afinidade com o que os ateus defendem.>
Dentro do catolicismo, o papa Francisco sinalizou uma mudança de tom em relação a diversas questões sociais.>
"Todos são convidados à Igreja, inclusive pessoas divorciadas, pessoas homossexuais, pessoas transgênero", escreveu ele em sua autobiografia.>
"Isso torna ele mais próximo das pessoas comuns da sociedade", diz Kaufmann.>
O gaúcho conta que chegou a frequentar um seminário católico para fugir da ideia de se casar e, assim, se tornar um "orgulho para a família". >
Ele ainda buscou refúgio em igrejas evangélicas, centros espíritas e terreiros de umbanda, mas se encontrou enquanto ateu ao perceber que estava sempre procurando "onde está a falha" nas religiões, sem conseguir acreditar ou ser tocado pela fé.>
Mesmo distante da igreja, Kaufmann seguiu reconhecendo a figura do papa como importante.>
"Para muita gente ainda, por mais que eu não acredite nisso, o que o papa fala ainda é a baliza moral e de comportamento. Quando ele fala, o mundo olha", explica,>
"E ele me mostrou que é possível a Igreja Católica mudar. Grandes maldades já foram feitas em nome de Deus, mas também muitas coisas boas foram feitas.">
Uma pesquisa do Instituto Ipsos de 2023 apontou que 89% dos brasileiros dizem acreditar em Deus, o maior índice entre 26 países pesquisados. Por outro lado, o segmento populacional de ateus, agnósticos e sem religião é o que mais tem crescido nos últimos anos no Brasil, segundo pesquisas do instituto Datafolha. >
Além dos ateus, o papa também manteve um tom amistoso em relação a outras fés, mantendo encontros com líderes de diversas religiões e pedindo respeito aos que pensavam diferente.>
Numa das imagens marcantes de seu papado, na primavera de 2016, ele visitou um centro para requerentes de asilo nos arredores de Roma e lavou e beijou os pés de refugiados, entre os quais havia muçulmanos, hindus e cristãos coptas, da Igreja Ortodoxa no Egito.>
O padre Luís Corrêa Lima, da PUC-Rio, explica que desde os anos 1960, com o Concílio Vaticano 2º, a Igreja Católica tem enxergado "verdade e santidade em segmentos não católicos", algo que foi seguido por Francisco>
"O mais importante não é que se aumente o número de católicos. O importante é que haja uma fidelidade ao evangelho e aos valores essenciais", defende Lima.>
A maioria das histórias sobre o ateísmo costuma apontar uma origem nos filósofos gregos e romanos Epicuro, Demócrito e Lucrécio, ao defenderem ideias como a noção de que não há vida após a morte e que a religião era uma atividade humana.>
Mas a ideia do que é ser ateu mudou ao longo dos séculos.>
O historiador Diego Omar da Silveira explica que os próprios cristãos já foram considerados "ateus" no Império Romano, já que não cultuavam os mesmos deuses que os romanos.>
Na Idade Moderna, explica Silveira, a Igreja tratou ateus com grande repressão, inclusive com a inquisição perseguindo aqueles "com traços de ateísmo — ou seja, aqueles que desconfiassem de estruturas religiosas".>
Naqueles tempos, o poder da igreja estava sempre atrelado ao Estado e efetivamente conseguia reprimir qualquer pessoa que fosse de encontro às suas ideias.>
No seculo 19, a relação muda um pouco, segundo o pesquisador, já que igreja passa a ter um poder mais simbólico do que repressivo, pois começa a se dissociar do poder estatal.>
"Surge uma filosofia laica, senão ateia, que vai contestar aquilo que a igreja considerava verdade, baseada na ciência", diz o historiador. >
Em meados do século 20, há mais diálogos entre religião e muitos pensadores ateus, continua Silveira. Um exemplo é o marxismo, que reconhecia afinidade com ensinamentos cristãos da antiguidade, como um movimento comunitário e igualitário, pregando partilha de bens e cuidado com os pobres.>
Qual caminho a Igreja vai tomar a partir do papa que irá assumir no lugar de Francisco após a realização do conclave ainda é incerto.>
Para o padre Luís Correa Lima, a marca de Francisco na Igreja Católica foi muito grande, incluindo a indicação de dois terços dos cardeais que escolherão o novo papa. Por isso, ele aposta numa continuação de seu legado. >
Já o historiador Diego Omar da Silveira avalia que não há um caminho claro para o sucessor. >
Ou seja, o escolhido pode levar adiante a ideia de diálogo com os que pensam diferente ou voltar a fechar mais igreja, "pautado na ideia de que a única fonte de verdade é a cristã".>
>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta