Publicado em 14 de julho de 2025 às 10:50
"Data de longe essa amizade. Vem dos primeiros dias da nossa Independência, a qual o governo dos Estados Unidos foi o primeiro a reconhecer [...] O tempo não fez senão ir aumentando, na inteligência e no coração de sucessivas gerações brasileiras, a simpatia e a admiração que os Estados Unidos da América inspiraram aos criadores da nossa nacionalidade".>
Esse discurso foi proferido em julho de 1906, por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o patrono da diplomacia brasileira, mais conhecido como Barão do Rio Branco. O discurso foi dado durante um jantar em homenagem a Eliot Root, então secretário de Estado dos Estados Unidos, em visita ao Brasil.>
Cento e um ano depois, o cenário nas relações bilaterais entre os Estados Unidos e o Brasil parece ter mudado radical e rapidamente. Especialmente nos últimos dias. Na quarta-feira (9/7), após uma série de ameaças, o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou que aplicaria tarifas de 50% sobre qualquer produto brasileiro exportado aos Estados Unidos.>
Mais que isso, ele condicionou as tarifas, em parte, ao processo judicial no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é réu, num caso em que ele é acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Ele nega seu envolvimento no caso. >
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"Este julgamento não deveria estar acontecendo. É uma caça às bruxas que deveria acabar IMEDIATAMENTE", diz um trecho da carta divulgada por Trump como anúncio das tarifas.>
Imediatamente, porém, soaram os sinais de alerta do Palácio do Planalto. Integrantes do governo interpretaram o episódio como um ataque frontal à soberania do país e, em alguma medida, como uma tentativa de interferência no processo eleitoral de 2026.>
Isso porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se apresenta como candidato à reeleição e Trump defendeu, em postagens em redes sociais, que Bolsonaro deve ser submetido ao "julgamento" do povo.>
Em uma nota divulgada por Lula na quarta-feira, o presidente disse que o país não aceitaria qualquer tipo de tutela.>
"O Brasil é um país soberano com instituições independentes que não aceitará ser tutelado por ninguém".>
Em entrevista concedida ao Jornal Nacional, da TV Globo, na quinta-feira, Lula voltou a criticar a postura de Trump.>
"É inaceitável que o presidente Trump mande uma carta pelo site dele e comece dizendo que é preciso acabar com a caça às bruxas. Isso é inadmissível", disse.>
Na sexta-feira (11/7), Trump falou publicamente sobre o caso e disse que, no momento, não pretende conversar com Lula. >
"Talvez, em algum momento, eu falarei com ele. Agora, não. Eles estão tratando o presidente Bolsonaro muito injustamente. Ele é um bom homem, sabe? [...] Ele também é muito honesto e eu conheço os honestos e os desonestos", disse o norte-americano. >
Em meio a essa troca pública de críticas e diante da possibilidade de um tarifaço sem precedentes na história brasileira, a BBC News Brasil procurou especialistas em relações internacionais com uma pergunta: este é o pior momento das relações entre Brasil e Estados Unidos?>
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a resposta é inequívoca.>
"Criou-se, realmente, uma agressão injustificada do ponto de vista político e econômico. Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de existência dessas relações", diz à BBC News Brasil o ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero.>
"Sem dúvida nenhuma, posso dizer que esse é o pior momento", diz à BBC News Brasil o ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2016 e 2018 e consultor internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Hussein Kalout.>
Na avaliação deles, a atual crise supera outros momentos de turbulência como a revelação de que os Estados Unidos espionaram a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e até mesmo o apoio dado pelos norte-americanos ao golpe de 1964.>
Ainda de acordo com os especialistas, o Brasil se encontra em uma situação delicada porque, ao vincular as tarifas ao julgamento de Jair Bolsonaro, o governo Trump não teria deixado margem de negociação para o governo brasileiro.>
Na avaliação deles, a atual crise pode deixar cicatrizes longevas no relacionamento entre os dois países e vai demandar enormes esforços diplomáticos da parte brasileira para tentar minimizar o impacto das tarifas prometidas.>
Brasil e Estados Unidos são, ao mesmo tempo, as duas maiores economias e democracias do hemisfério americano. O relacionamento bilateral dos dois países completou 200 anos em 2024 e foi celebrado por Lula e pelo então presidente Joe Biden.>
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, Guilherme Casarões, diz à BBC News Brasil que a proximidade entre os dois países ficou maior a partir da proclamação da República no Brasil, em 1889.>
"Até então, o Brasil voltava suas atenções para Londres, capital do então império britânico. Com a proclamação da República, o eixo de atenção brasileiro se volta para Washington", disse o professor.>
Casarões explica que o Brasil se inspirou em uma série de instituições norte-americanas durante os primeiros anos da República e que, desde então, essa relação foi se aprofundando tanto política quanto comercialmente.>
"Havia ali um interesse de tornar o Brasil quase uma imagem espelhada dos Estados Unidos ao sul do Equador. Essa era uma discussão efetiva na formação do nosso período republicano, e os Estados Unidos assumiram muito rapidamente o lugar de primeira potência como primeiro parceiro comercial do Brasil", conta Casarões.>
Os Estados Unidos foram, até 2009, o principal parceiro comercial do Brasil, quando o país perdeu o lugar para a China. Atualmente, o país é o segundo principal destino das exportações brasileiras. No ano passado, os dois países comercializaram US$ 80 bilhões em produtos.>
Ao longo de dois séculos, dizem os especialistas, houve momentos de tensão nesse relacionamento, mas nada mais grave do que a atual crise.>
"Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de história e desde do início desse relacionamento", diz o ex-embaixador Rubens Ricupero.>
O ex-embaixador é autor de livros sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos. Neles, Ricupero descreve o vínculo entre os dois países como uma história marcada por momentos de aproximação e distanciamento. Nenhum, na sua avaliação, como o que existe agora.>
"O que aconteceu foi uma tentativa aberta de interferência num assunto da soberania brasileira, tomando partido num problema político, inclusive atacando instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal", diz o embaixador.>
Na avaliação dele, até então, o pior momento das relações entre os dois países havia sido o apoio dado pelos Estados Unidos ao golpe militar de 1964, que levou o Brasil a uma ditadura que durou 21 anos.>
Hussein Kalout faz uma avaliação semelhante sobre o atual momento do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos.>
"Antes disso (anúncio de Trump), a relação estava fria em função de serem dois governos que têm perspectivas muito diferentes sobre diversos assuntos e sobre o mundo", afirma Kalout.>
Agora, no entanto, esse esfriamento se transformou em outra coisa.>
"Agora, a relação está em seu ponto mais baixo. E isso acontece em função da conduta um pouco intimidatória e coercitiva que o presidente Trump tem adotado em relação ao Brasil", diz Kalout.>
Guilherme Casarões segue uma linha semelhante.>
"Pensando na relação bilateral, este é o pior momento. O que houve foi uma agressão frontal, aberta e gratuita ao Brasil, com demonstrado interesse de violação da soberania nacional", afirma o professor.>
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que as relações entre Brasil e Estados Unidos já tiveram outros momentos de tensão no passado.>
Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, os piores momentos da história recente do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos haviam sido:>
"Em 1962, durante o governo de John Kennedy, quando o João Goulart mostrou dificuldade para limitar o papel da esquerda na coalizão do seu governo, os Estados Unidos se afastaram definitivamente do governo brasileiro e passaram a apoiar o processo que levaria ao golpe de 1964", diz o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Matias Spektor.>
Para Ricupero, o apoio norte-americano ao golpe militar havia sido, até agora, o pior momento das relações entre os dois países.>
"O golpe de 1964 tinha sido o momento mais grave. O golpe não foi realizado pelos norte-americanos, mas foi muito estimulado por eles. E logo após o golpe, houve reconhecimento do governo (militar) e apoio maciço. Isso nos levou a uma ditadura de 20 anos", diz Ricupero.>
Documentos oficiais e historiadores apontam que, a partir de 1962, com a renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de João Goulart, os Estados Unidos passaram a ver o Brasil como um risco, à medida em que Goulart era tido como um político simpático à esquerda influenciada pela antiga União Soviética.>
Esse material aponta que os norte-americanos teriam incentivado movimentos a favor da deposição de Goulart e chegaram planejar o envio de uma frota de embarcações militares para apoiar o golpe de 1964.>
A operação, no entanto, foi cancelada após os norte-americanos detectarem que não haveria resistência significativa à deposição de Goulart. O episódio ficou conhecido como "Operação Brother Sam".>
Spektor afirma que o cenário que desencadeou no golpe de 1964, na realidade, havia começado em 1962.>
Spektor e Casarões avaliam que as relações entre Brasil e Estados Unidos sofreram outro solavanco no final da década de 1970, quando Jimmy Carter venceu as eleições nos Estados Unidos.>
Carter, do partido democrata, era um crítico aos abusos de direitos humanos ocorridos em ditaduras latino-americanas. Sua posição contrariava a linha dura do governo brasileiro.>
Relatórios sobre a situação dos direitos humanos no Brasil foram divulgados pelo Congresso dos Estados Unidos, criando constrangimentos ao regime brasileiro.>
Além disso, Carter tentou impor freios ao programa nuclear brasileiro, uma das prioridades da ditadura.>
O democrata enviou seu vice-presidente, Walter Mondale, à Alemanha Ocidental para tentar convencer os alemães a abrirem mão do acordo nuclear com o Brasil e o movimento foi mal recebido pelo Brasil.>
"A relação degringolou muito rapidamente. Ficou tão ruim que o Brasil decidiu, unilateralmente, denunciar um acordo militar importante que o Brasil tinha à época com os Estados Unidos", disse Spektor.>
O terceiro momento mais crítico, segundo os especialistas, foi em 2013, quando documentos sigilosos de inteligência dos Estados Unidos foram publicados pelo Wikileaks e revelaram que os Estados Unidos haviam grampeado o telefone da então presidente Dilma Rousseff (PT).>
Os telefones haviam sido grampeados pela Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), do governo norte-americano.>
"(O episódio) acabou deflagrando uma crise diplomática importante. Dilma cancelou uma viagem importantíssima que faria aos Estados Unidos. Demorou mais de dois anos para que as relações fossem repactuadas, o que aconteceu no fim do governo de Barack Obama", diz Casarões.>
Kalout, no entanto, avalia que mesmo durante o ápice da crise envolvendo a espionagem norte-americana, houve canais de comunicação entre os dois países. >
"Nos bastidores, o governo Obama acolheu as reclamações do nosso embaixador em Washington. Houve reuniões de alto nível entre os dois governos e encontros entre as agências de inteligência. Havia canais de diálogo", diz Kalout. >
A crise das tarifas expôs um distanciamento político evidente entre Trump e Lula. Apesar de comandarem as duas maiores economias do hemisfério americano, os dois presidentes nunca conversaram diretamente. >
Em 2022, durante as eleições brasileiras, Trump foi às redes sociais, declarou apoio a Bolsonaro e atacou Lula, chamando-o de "lunático radical de esquerda". >
Em 2024, por outro lado, Lula declarou apoio à então adversária de Trump nas eleições norte-americanas, Kamala Harris. >
"Nós vimos o que foi o presidente Trump no final do mandato, fazendo aquele ataque contra o Capitólio, uma coisa impensável de acontecer nos EUA", disse Lula em entrevista a uma TV francesa. >
A carta divulgada por Trump em que anunciou as tarifas acompanhou o tom das suas últimas manifestações em redes sociais sobre o Brasil e sobre Bolsonaro.>
Em meio a esse distanciamento, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), se mudou para os Estados Unidos e passou a fazer campanha para que os Estados Unidos aplicassem algum tipo de sanção ao Brasil em função nos processos pelos quais seu pai e outros militantes de direita são investigados. >
A expectativa, no entanto, era de que os Estados Unidos pudessem aplicar uma sanção direcionada ao ministro do STF Alexandre de Moraes, que conduz o julgamento de Bolsonaro. >
No domingo (6/7), no entanto, Trump usou suas redes sociais para ameaçar com tarifas adicionais os países que se alinhassem com o que chamou de "agenda antiamericana" dos Brics. >
Naquele dia, o bloco de 11 países, dos quais fazem parte a China, Rússia, Brasil e Índia, havia dado início à sua cúpula de líderes, no Rio de Janeiro.>
No dia seguinte, Trump foi às redes sociais de novo, desta vez, para defender Jair Bolsonaro.>
"O Brasil está fazendo uma coisa terrível no tratamento ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Eu tenho assistido, assim como o mundo, como eles não fazem outra coisa senão irem atrás dele, dia após dia, noite após noite, mês após mês, ano após ano! Ele não é culpado de nada a não ser por ter lutado pelo povo", disse Trump em seu perfil na rede social Truth Social.>
Em outro trecho da publicação, o presidente norte-americano classificou a situação de Bolsonaro como uma "caça às bruxas".>
"O grande povo do Brasil não vai tolerar o que estão fazendo com seu ex-presidente. Estarei assistindo à caça às bruxas de Jair Bolsonaro, sua família e milhares de seus apoiadores muito de perto. O único julgamento que deveria estar acontecendo é um julgamento pelos eleitores do Brasil — chama-se eleição", continuou.>
No mesmo dia, pouco depois de finalizar a Cúpula dos Brics, no Rio de Janeiro, Lula rebateu as declarações de Trump em duas oportunidades. Na primeira, por meio das redes sociais, ele disse que o Brasil não aceitaria interferências.>
"A defesa da democracia no Brasil é um tema que compete aos brasileiros. Somos um país soberano. Não aceitamos interferência ou tutela de quem quer que seja. Possuímos instituições sólidas e independentes. Ninguém está acima da lei. Sobretudo, os que atentam contra a liberdade e o estado de direito".>
Em outro momento, em uma entrevista coletiva, Lula disse que Trump não deveria dar "palpite" sobre o Brasil.>
"Eu não vou comentar essa coisa do Trump e do Bolsonaro. Tenho coisa mais importante para comentar do que isso. Este país tem lei. Este país tem regras e este país tem um dono chamado povo brasileiro. Portanto, dê palpite na sua vida e não na nossa", disse o presidente.>
A situação atingiu o ápice na quarta-feira, quando Trump divulgou a carta e anunciou as tarifas sobre o Brasil.>
Para todos os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos é, agora, incerto. Ricupero ressalta que ao atrelar as tarifas à situação de Bolsonaro, os norte-americanos deixaram pouca margem de manobra para o Brasil à medida em que o governo não deveria e nem teria como interferir no julgamento do ex-presidente.>
Ele argumenta que, do ponto de vista econômico, as tarifas não se justificariam porque os Estados Unidos teriam um superávit de US$ 400 bilhões em produtos e serviços na balança comercial com o Brasil nos últimos 15 anos.>
"Para poder ter uma conversa, só se ela for colocada em outras bases, sem ameaças e em bases puramente econômico-comerciais. Tomar partido em favor de uma pessoa não tem fundamental algum", disse o ex-embaixador.>
Matias Spektor diz que, agora, o Brasil deve tentar manter canais de negociação abertos com os Estados Unidos e insistir em algum tipo de negociação comercial.>
"O desafio, agora, é o governo brasileiro montar uma resposta às tarifas que permita, de um lado, controlar os danos e, de outro, tentar manter algum tipo de espírito diplomático de engajamento. É importante que o Brasil não feche os canais de diálogo totalmente para que seja possível manter algum tipo de negociação", afirmou.>
Guilherme Casarões também defende que o governo continue tentando encontrar canais de negociação com os norte-americanos. Ele avalia, no entanto, que diante das incertezas sobre como o opera o governo Trump e da proximidade das eleições presidenciais de 2026, fique ainda mais difícil restabelecer boas relações com os Estados Unidos.>
"O que se espera é que o Brasil consiga manter uma relação minimamente administrada para tentar negociar essas tarifas, talvez postergá-las ou encontrar outro resultado [...] O grande fator de incerteza é que há eleições no ano que vem. O governo brasileiro pode entender que não há como conversar com os EUA e que a melhor opção é incensar o nacionalismo dentro do Brasil", diz Casarões.>
Kalout, por sua vez, diz que, caso o Brasil não consiga reverter a disposição norte-americana de impor tarifas sobre o país, não haverá outra opção a não ser retaliar.>
"O Brasil tem mapeado todas as vulnerabilidades da relação comercial e sabe onde e como retaliar e, tenho certeza, se houver inflexibilidade, o Brasil vai aplicar a lei da reciprocidade. Não há como não aplicar. Do contrário, estaremos submissos a uma extorsão indevida", disse.>
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