Publicado em 9 de junho de 2021 às 22:36
Em encontro na manhã desta quarta-feira (9) com o premiê da Espanha, em Buenos Aires, o presidente argentino, Alberto Fernández, disse que "os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, chegamos em barcos". "Eram barcos que vinham da Europa", afirmou, apontando para Pedro Sánchez. Depois, referendou: "O meu [sobrenome] Fernández é uma prova disso". >
O líder argentino acreditava fazer menção a uma frase incorretamente atribuída ao escritor mexicano Octavio Paz (1914-1998), Nobel de literatura em 1990, em que ele teria discorrido sobre a raiz asteca dos mexicanos e a origem inca dos peruanos. Fernández, porém, confundiu-se, e a frase é na verdade parte de uma canção do compositor argentino Litto Nebbia. >
Após a repercussão da declaração, o presidente argentino publicou uma mensagem no Twitter na qual diz que "nossa diversidade é um orgulho". "Mais de uma vez foi dito que 'os argentinos descendemos dos barcos'. Na primeira metade do século 20 recebemos mais de 5 milhões de imigrantes que conviveram com os nossos povos originários. Nossa diversidade é um orgulho." Na sequência, acrescentou que "não quis ofender ninguém" e pediu desculpas "a quem tenha se sentido ofendido ou invisibilizado". >
Também pelo Twitter, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) respondeu com uma foto acompanhado de indígenas e a palavra "SELVA!" ao lado da bandeira brasileira. >
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A oposição também reagiu por meio de redes sociais. O deputado Facundo Suárez Lastra, da União Cívica Radical, afirmou que "sempre há um nível mais baixo para que o presidente desça na escada do ridículo e da vergonha". "Ofende países irmãos e aparece como um ignorante. Nem professor nem acadêmico." >
Figuras públicas argentinas com frequência cometem o que a imprensa local costuma chamar de "gafe". A frase racista, no entanto, revela um traço cultural profundo que minimiza ou mesmo nega a raiz mestiça da população, pensamento presente desde o século 19 entre intelectuais e governantes importantes. Obviamente não se trata de uma postura de toda a sociedade, mas muito marcada na elite. >
O ex-presidente Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), autor de "Conflicto y Armonías de las Razas en América" (conflito e harmonia das raças na América), por exemplo, falava da necessidade de "embranquecer a Argentina" para o desenvolvimento do país. Em seu mandato, estimulou a imigração de europeus com essa finalidade. >
A teoria de Sarmiento influenciou seu sucessor na Presidência, Julio Argentino Roca (1843-1914), responsável por iniciar a Campanha do Deserto, em que, sob a justificativa de "levar civilização aos rincões do país", o Exército argentino assassinou comunidades de índios ranqueles e araucanos, entre outros. Não há consenso quanto ao número de mortes provocadas pela campanha, mas historiadores falam em genocídio ou em "impulso genocida". >
Essas etnias, porém, não foram totalmente exterminadas, tanto que a população do interior da Argentina guarda traços desses povos, e há pequenos grupos que mantêm os idiomas originários. >
O maior fluxo de imigrantes europeus na Argentina ocorreu entre 1850 e 1950, quando cerca de 7 milhões entraram no país. Já os africanos vieram em maior escala entre os séculos 16 e 19, como escravos. Embora a população de negros tenha diminuído no país, ela permanece grande. Em 1778, africanos e afro-descendentes eram 37% dos habitantes do país, de acordo com documentos oficiais espanhóis.>
Em Buenos Aires, nas primeiras décadas após a independência (1810), eles representavam 30% da população. Hoje, segundo o censo mais recente, 9% são afro-argentinos em todo o território. A Argentina tinha, de acordo com o Banco Mundial, 44,94 milhões de habitantes em 2019. >
No campo político, o ex-presidente Macri afirmou, na abertura de seu discurso no Fórum Econômico de Davos, em 2018, ao cumprimentar a plateia, que "somos todos descendentes da Europa". >
Em 9 de julho de 2016, data em que a independência argentina é celebrada, Macri disse que os "independentistas argentinos devem ter sentido uma grande angústia por terem de se separar da Espanha". A declaração foi dada na presença do hoje rei emérito Juan Carlos, chamado de "querido rei" pelo ex-presidente. >
Já o peronista Carlos Menem, também ex-presidente, negou em um discurso na Universidade de Maastricht, na Holanda, em 1993, que o país tivesse negros. Ao ser questionado sobre a escravidão na Argentina, disse que, em 1813, ano da abolição, os negros já haviam morrido, e que esse era "um problema brasileiro". >
Agora foi a vez de Fernández, que se apresenta como um nome de centro-esquerda e tem vínculos com organizações que defendem as minorias e os povos indígenas. A fala de Fernández vem num cenário de disputa entre brasileiros e argentinos no âmbito do Mercosul --o bloco regional, formado ainda por Uruguai e Paraguai, discute a reforma da TEC (Tarifa Externa Comum) e a flexibilização das regras de negociação.>
Enquanto o Brasil defende uma redução de 20% da tarifa, a Argentina propõe uma redução média de 10,5%, que incidiria principalmente sobre bens intermediários --produtos finais teriam as tarifas na sua maioria preservadas. A gestão de Jair Bolsonaro considera a proposição argentina pouco ambiciosa, e o governo de Buenos Aires, por sua vez, acha que o corte defendido pelo ministro Paulo Guedes (Economia) é profundo demais, constituindo um risco para a indústria do país.>
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