Publicado em 20 de junho de 2023 às 08:09
Tradicionalmente, as vacinas são pensadas para prevenir infecções causadas por vírus, bactérias e protozoários. Mas pesquisadores brasileiros testam uma estratégia diferente contra a febre maculosa: um grupo do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) está desenvolvendo um imunizante para animais capaz de eliminar os carrapatos transmissores dessa doença.>
Recapitulando: a febre maculosa é uma infecção grave e potencialmente fatal relacionada a algumas bactérias do gênero Rickettsia. Elas invadem o corpo humano e afetam as paredes dos vasos sanguíneos, provocando hemorragias e gangrena.>
Esses micro-organismos são transmitidos principalmente por carrapatos-estrela (Amblyomma sculptum), que também afetam outros animais como capivaras, gambás, cavalos, bois e cachorros.>
A enfermidade ganhou as manchetes nos últimos dias por causa de um surto detectado na região de Campinas, no interior de São Paulo, que já teve quatro mortes confirmadas.>
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Mas como essa candidata à vacina funciona? E quando ela deve ficar pronta?>
O grupo de pesquisas coordenado pela bióloga Andrea Fogaça, professora associada do Departamento de Parasitologia do ICB-USP, identificou uma proteína no carrapato-estrela que virou alvo de um potencial imunizante.>
Conhecida pela sigla IAP, essa proteína do artrópode é capaz de inibir um processo conhecido como apoptose, que é a morte programada das células.>
"E isso é fundamental para garantir a sobrevivência do carrapato enquanto ele se alimenta do sangue do hospedeiro", detalha Fogaça.>
Mas e se fosse possível desativar ou interferir na IAP? Foi justamente isso o que os pesquisadores fizeram no laboratório. >
"Quando nós reduzimos o nível dessa proteína no organismo dos carrapatos, eles passaram a apresentar uma alta taxa de mortalidade", descreve a especialista.>
Segundo as pesquisas publicadas até o momento, a abordagem permitiu eliminar 92% dos artrópodes.>
"Esse trabalho nos mostrou que a IAP é um alvo promissor para o desenvolvimento de uma futura vacina", complementa ela.>
Com os primeiros testes positivos, o time do ICB-USP deve iniciar em breve os estudos com modelos animais. >
"Nós estamos projetando peptídeos, ou seja, pedacinhos dessa proteína, para imunizar os coelhos em laboratório. Daí vamos conferir se essas cobaias produzirão anticorpos suficientes para inibir os carrapatos", detalha Fogaça.>
A bióloga reforça que a candidata à vacina contra a febre maculosa ainda está nos estágios iniciais, e é preciso aguardar os resultados das pesquisas que estão em andamento — portanto, ainda não existe um prazo para finalizar todo esse trabalho. >
A boa notícia é que o desenvolvimento de imunizantes para uso veterinário envolve menos etapas — o que pode acelerar a transição do projeto entre a bancada do laboratório e a disponibilização comercial das doses.>
Mas por que desenvolver vacinas contra os artrópodes, e não diretamente contra as bactérias Rickettsia causadoras da febre maculosa?>
"Nós acreditamos que, ao controlar a quantidade dos artrópodes no ambiente, poderemos diminuir o número de picadas de carrapatos em animais ou nos seres humanos e, com isso, reduzir o número de casos da doença", responde Fogaça.>
Outra questão: por que o candidato à imunizante é pensado para animais, e não para as pessoas?>
A bióloga lembra que seres humanos são hospedeiros acidentais do carrapato-estrela e da bactéria que ele eventualmente carrega — o "caminho" natural dessa doença não depende da gente.>
"O carrapato-estrela consegue manter seu ciclo de vida independentemente do homem ao circular por capivaras, gambás e outras espécies", diz ela.>
Proteger esses animais, portanto, seria uma maneira de diminuir a população de artrópodes na natureza — e, assim, resguardar indiretamente os indivíduos que porventura passarem pelas zonas de mata onde ele é mais comum.>
Para Fogaça, um futuro imunizante contra a febre maculosa traria mais de um benefício à sociedade.>
"Em primeiro lugar, falamos de algo importante para a saúde pública, pois reduziríamos a população de carrapatos e, por consequência, o número de casos e mortes por febre maculosa", conta ela.>
As estatísticas do último boletim epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde, compiladas pela BBC News Brasil, mostram que, entre 2012 e 2022, foram notificados 2.209 casos e 753 mortes por febre maculosa no país.>
"Mas há um aspecto econômico também. Isso porque o carrapato-estrela tem sido observado cada vez mais em rebanhos bovinos", complementa a cientista.>
Segundo a bióloga, as infestações desses artrópodes em vacas e bois são tão grandes e sugam tanto sangue que até deixam os animais com anemia.>
"E isso diminui a produtividade das fazendas", conclui ela.>
Uma solução para eliminar os carrapatos-estrela, portanto, seria muito bem-vinda para as criações de gado.>
Fogaça também especula possíveis caminhos para a imunização de animais silvestres, como as capivaras e os gambás. >
Uma estratégia seria desenvolver iscas de alimentos "turbinados" com a vacina e distribuí-las pelas regiões onde a doença é endêmica — como o interior de São Paulo, a zona serrana do Rio de Janeiro e o centro de Minas Gerais.>
Esse modelo já é usado na prática para evitar certas doenças infecciosas em raposas na América do Norte.>
"Neste caso, dependeríamos de um apoio das instituições de saúde pública para desenvolver estratégias para a proteção dos animais silvestres contra os carrapatos", conclui Fogaça.>
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