Publicado em 31 de agosto de 2025 às 17:25
Nacionalmente conhecido pelas crônicas de humor nas quais despontaram personagens como a Velhinha de Taubaté, o Analista de Bagé e o detetive Ed Mort, pelas tiras das Cobras e da Família Brasil e pelos roteiros para TV, cinema e teatro, Luis Fernando Verissimo era uma usina de inteligência e criatividade em carne e osso.>
A produção é tão vasta que se torna difícil até mesmo defini-lo com base nas categorias existentes da produção literária e artística. Escritor? Cronista? Humorista? Roteirista? Intelectual? >
Qualquer um desses rótulos corre o risco de deixar fora uma variedade de aspectos da trajetória do autor que sempre fez questão de não se levar demasiadamente a sério — nem aos outros — e que morreu neste sábado (30/8), aos 88 anos, em Porto Alegre (RS).>
Mais do que os predicados como profissional, muitos dos que conheceram Verissimo de perto admiram sua grandeza humana.>
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É o caso do publicitário e escritor Fraga, amigo de Verissimo por 53 anos e a quem coube, entre outros privilégios, emprestar as feições para o Analista de Bagé: "Gosto mais do Luis Fernando como pessoa do que como escritor", resume.>
Fato é que Verissimo foi dono de diferentes facetas, algumas pouco conhecidas por seu público mais cativo. >
Ele teve um lado desenhista, outro músico. Era fanático por futebol, apesar de ter passado parte da infância nos Estados Unidos e de ter sido visto muitas vezes como excessivamente influenciado pela cultura norte-americana e europeia. Cultivou uma relação afetuosa, porém difícil, com o pai e era bastante generoso com jovens artistas.>
Conheça essas e outras histórias a seguir.>
Nascido em 26 de setembro de 1936, em Porto Alegre, ele só passou a ser conhecido pelo sobrenome depois da morte do pai, Erico (1905-1975).>
Antes disso, era "o filho do Erico" ou "Luis Fernando" — qualquer outro tratamento implicaria risco de ser confundido com o maior nome da literatura gaúcha.>
Apesar de ter nascido e crescido em uma casa cheia de livros e acostumado à companhia de escritores e artistas — ou talvez por isso mesmo —, Verissimo jamais se viu como predestinado à atividade literária.>
A primeira e mais marcante influência do pai, aquela na qual ele parece ter visto um espaço para si próprio, foi a atividade jornalística e editorial.>
Natural de Cruz Alta, na região centro-norte do Rio Grande do Sul, que serviu de ambiente para boa parte de sua obra, Erico chegou a Porto Alegre em 1930 como tradutor da Livraria do Globo, uma das principais casas editoriais do país, e secretário de redação da Revista do Globo, principal publicação da casa.>
Era uma posição de prestígio, mas insuficiente para mantê-lo e à mulher, Mafalda (1913-2003), antes dos primeiros êxitos literários.>
Para complementar a renda, o escritor iniciante tornou-se colaborador do Diário de Notícias e do Correio do Povo, dois dos principais diários da época.>
Sua militância jornalística foi tão marcante que, em 1935, Erico foi eleito primeiro presidente da recém-criada Associação Riograndense de Imprensa (ARI), que existe até hoje.>
A exemplo do pai e de praticamente todos os grandes nomes da literatura gaúcha, Luis Fernando produziu grande parte de sua obra na e para a imprensa, inclusive diária.>
Embora tenha crescido entre redações de jornais e a sede da Livraria do Globo, uma das principais editoras do país, acompanhando o pai, Verissimo estreou relativamente tarde no ofício, aos 31 anos.>
Quando assumiu pela primeira vez como interino uma coluna de notas no jornal Zero Hora, em 1969, já era casado com Lucia e pai de duas filhas (Fernanda, nascida em 1965, e Mariana, em 1967).>
Passara por empresas de publicidade como redator até se tornar, no início dos anos 1970, sócio de uma delas, com o argentino radicado no Brasil Anibal Bendatti, chefe de diagramação de Zero Hora.>
Na era de ouro da publicidade impressa, o carro-chefe da parceria era a revista Carrinho, produzida para o Supermercado Real.>
Foi no coquetel de lançamento da publicação, no início dos anos 1970, que Fraga apertou pela primeira vez a mão do futuro escritor.>
Depois, fizeram dupla como redatores da agência MPM, além de colunistas do jornal Folha da Manhã, do grupo Caldas Júnior, que editava o Correio do Povo, principal veículo da imprensa gaúcha na época.>
"Na MPM, ficávamos na mesma sala, cada um em uma mesa. O filho dele, Pedro (nascido em 1970), estudava no anexo do Instituto de Educação, e o meu filho também. Era um convívio muito próximo", diz Fraga.>
Outro companheiro de Verissimo na Folha da Manhã, o artista gráfico Edgar Vasques, deve ao escritor a consagração de seu mais célebre personagem.>
"Quando ele (Verissimo) tirou férias, não havia outro humorista no jornal. Aí os caras me escalaram para substituí-lo. Eu disse: quem sou eu?", recorda-se.>
Para dar conta da tarefa, Vasques lançou mão do miserável latino-americano Rango, que criara em 1970, ainda como estudante na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).>
Com o ambiente opressivo de censura sob a ditadura militar, a criatura amargara, no dizer do artista, "três aninhos na gaveta".>
Ao retornar à redação, Verissimo brincou com o substituto dizendo que "perdera o emprego", lembra Vasques, logo alçado a titular de uma coluna própria no jornal.>
Quando Verissimo lançou a primeira coletânea de crônicas, O popular, em 1973, pela José Olympio Editora, a matéria-prima foram os textos e tiras publicados na Folha da Manhã.>
Ele dizia que havia aprendido os fundamentos da arte gráfica com o "velho Zeuner" no departamento gráfico da Editora Globo.>
Formado na Academia de Artes de Leipzig, Alemanha, Ernst Zeuner (1895-1967) foi um dos responsáveis pela elevação do padrão gráfico das publicações da Globo, além de ter deixado pelo menos uma pintura icônica: o Quadro da Chegada, óleo sobre tela que retrata a chegada dos colonos alemães ao Rio Grande do Sul em 1824 e está no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.>
O traço despojado e conciso de Verissimo mostrava outra influência: a produção de Jules Feiffer, Saul Steinberg e outros grandes nomes do desenho de imprensa dos Estados Unidos, que conhecera nas duas passagens da família pelos Estados Unidos (1943-1945 e 1953-1956).>
Modesto, Verissimo costumava referir-se ao período até os anos 1970 como "a época em que eu desenhava mal".>
"Ele dizia, ironicamente: 'Eu desenho quando tô com preguiça de escrever'", afirma Vasques. E completa, rindo: "Como se fosse mais fácil".>
Em 1975, Verissimo retornou a Zero Hora como colunista diário e passou a colaborar também com o Caderno B do Jornal do Brasil.>
No jornal gaúcho, nasceram tipos como o Analista de Bagé e o detetive Ed Mort, enquanto a Velhinha de Taubaté, "a última brasileira a acreditar no governo", viria à luz em 1982 na revista Veja.>
Verissimo deixaria de escrever apenas em 2021, em razão de sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC).>
A relação de Verissimo com o pai foi marcada pelo afeto, por um lado, e pela incomunicabilidade, por outro.>
Em seu livro de memórias, Solo de clarineta, cujo segundo tomo foi organizado por Flávio Loureiro Chaves e publicado postumamente, Erico registra o desejo frustrado de uma relação mais próxima e transparente com o filho.>
Ao mesmo tempo, o escritor reconhecia no temperamento fechado de Luis Fernando traços de sua própria timidez.>
Às vezes, chegava a recorrer a terceiros em busca de pistas para se aproximar do filho.>
"Por favor, me fala do Luis", disse certa vez ao jornalista Ruy Carlos Ostermann (1935-2025), amigo de ambos e responsável pela passagem de Verissimo filho pela Folha da Manhã.>
Não se tratava de uma dificuldade típica de Erico.>
Indagado sobre se alguma vez notou Verissimo mais expansivo em 53 anos de amizade, Fraga sorri e responde de pronto: "Nunca".>
Relata, porém, um episódio que sintetiza a personalidade do amigo.>
"Uma vez, vi um álbum de um cartunista alemão maravilhoso que só tinha para vender nos Estados Unidos. Pedi: 'Luis Fernando, vocês estão indo de férias para os EUA, me traz este álbum que eu te reembolso'", conta o publicitário.>
Ao retornar, Verissimo entregou-lhe o volume e não aceitou ressarcimento. Fraga pediu-lhe, então, uma dedicatória e, quando o amigo estava com a caneta em punho, acrescentou: "Por favor, né? Escreve uma dedicatória bonitinha. Não vai escrever nada lacônico".>
A mensagem que acabou rabiscada no livro dizia: "Para o Fraga, com a amizade lacônica porém sincera do Luis Fernando".>
O retraimento não impedia Verissimo de atender religiosamente pedidos de entrevista e produção de prefácios, orelhas e declarações que lhe chegavam todos os dias às dúzias, normalmente mediados pela mulher, Lucia.>
O jornalista e escritor Roberto Jardim foi um entre as centenas de agraciados pela generosidade do ídolo, que entrevistou pela primeira vez ainda como estudante de Jornalismo.>
"Ele pediu que eu mandasse as perguntas por fax. Nem e-mail existia ainda. Mandei. Uma delas devia ser como ele se descrevia. Ele escreveu: 'Um rapaz alto, moreno, cabelos castanhos ondulados, enigmático e sensual'", diz Jardim.>
À mão, Verissimo adicionou um comentário na folha de fax: "Espalha, espalha".>
Em 2020, Jardim voltou a contatar o escritor, desta vez com um pedido de texto de apresentação para seu segundo livro, Democracia Fútbol Club.>
"Uma semana depois, acho, recebi um envelope com os originais, algumas linhas elogiosas e o texto que entrou na contracapa do livro", afirma.>
Aficionado por música de todos os gêneros, assim como o pai, mas com especial predileção pelo jazz, Verissimo frequentou desde a adolescência auditórios e estúdios de gravação.>
Saxofonista amador, participou de conjuntos e bandas, a mais famosa das quais foi a Jazz 6, que se apresentou no Rio Grande do Sul e em São Paulo e gravou cinco álbuns, o último deles, Nas nuvens, em 2011.>
"Costumávamos nos encontrar antes e depois de programas de TV que tinham apresentações musicais, antes do advento do videoteipe, quando a cultura local tinha espaço nas transmissões", diz Batista Filho, presidente de honra da ARI.>
O amor pelo jazz foi apurado na segunda passagem dos Verissimo pelos Estados Unidos, nos anos 1950.>
Era o auge do bebop, estilo jazzístico caracterizado pelo virtuosismo no qual pontificaram Charlie "Byrd" Parker e Dizzy Gillespie, entre outros.>
Com Erico empregado na União Panamericana, com sede em Washington, onde a família vivia, o jovem Luis Fernando costumava pegar o trem para Nova York a fim de assistir apresentações de seus ídolos.>
Chegou a ouvir "Byrd" e outros ao vivo na noite nova-iorquina e decidiu-se a aprender trompete, mas, diante das dificuldades do instrumento, optou pela suavidade do sax.>
Às vezes, as facetas de músico e desenhista mesclavam-se, como quando integrou o Conjunto Nacional com os irmãos Chico e Paulo Caruso, amigos de longa data, e outros.>
Em outras, eram os artistas que buscavam inspiração em sua obra, como fizeram os também gaúchos Kleiton e Kledir ao compor Analista de Bagé.>
Visto muitas vezes como excessivamente influenciado pela cultura norte-americana e europeia, Verissimo não disfarçava a brasilidade em um de seus aspectos característicos: a paixão futebolística.>
Dizia com orgulho que tinha visto jogar os maiores times (Santos, Botafogo, Real Madrid) e jogadores (Pelé, Garrincha, Di Stefano) de sua juventude.>
Em Porto Alegre, tornou-se ainda criança um frequentador impenitente de estádios.>
Sua estreia como colunista coincidiu com a inauguração do Beira-Rio, estádio do Sport Club Internacional, time do coração, em 1969.>
Futebol não era apenas tema frequente de suas colunas diárias, mas acabou por se tornar parte do cotidiano da casa dos Verissimo no bairro Petrópolis, frequentada por jogadores e dirigentes.>
Foi durante um churrasco na residência que o zagueiro chileno Elías Figueroa, recém-contratado pelo Internacional, emocionou a todos ao declamar versos do poeta Pablo Neruda, seu compatriota morto meses antes, às vésperas do golpe militar de 1973 no país.>
O apego de Verissimo ao Internacional refletiu-se em um detalhe quase imperceptível em seu velório.>
Sobre o caixão, a família depositou um flâmula desbotada com o nome do clube acompanhado da frase "Campeão brasileiro".>
Como a peça não ostenta data e o time ergueu a taça do Campeonato Brasileiro em três oportunidades (1975, 1978 e 1979), é presumível que a comemoração seja alusiva à primeira conquista.>
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