Publicado em 24 de outubro de 2024 às 19:04
Quando Javier Milei assumiu a presidência da Argentina em dezembro de 2023, a inflação, que já chegava a quase 13% ao mês, dobrou.>
O dólar “azul” – como os argentinos chamam o dólar livre, ou de mercado, principal referência de preços no país – subiu, atingindo uma alta de 25% até o final de janeiro.>
E os sinais de alerta começavam a soar à medida que o homem que tinha entrado na política havia pouco, apenas três anos antes, fazia "o maior ajuste na história da humanidade" (como o próprio descreveu), cortando imediatamente os gastos públicos em cerca de um terço.>
Os mais pessimistas (e opositores) previram que o presidente não estaria no cargo ao final do ano e reviveram os traumas de 2001-2002, quando o país sofreu uma das suas piores explosões econômicas, políticas e sociais, e teve cinco presidentes em apenas um ano e duas semanas.>
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Outros alertaram que uma nova hiperinflação estava a caminho, como a de 1989, quando os preços subiram 5.000% ao ano.>
Mesmo muitos dos 56% do eleitorado que escolheram Milei e rejeitaram o ministro peronista da Economia, Sergio Massa, no segundo turno eleitoral preparavam-se para a possibilidade de o “azul” subir sem freios após o novo governo de La Libertad Avanza (LLA) dobrar o valor do dólar oficial (desvalorizando o peso em 50%), após promessas de campanha de dolarizar a economia.>
No entanto, dez meses após a posse de Milei – o primeiro economista a tornar-se presidente da Argentina e o primeiro político libertário a liderar uma nação – nenhum destes cenários pessimistas se concretizou.>
Pelo contrário: a inflação foi reduzida para 3,5% ao mês, o valor mais baixo em quase três anos.>
E o dólar paralelo, que atingiu o recorde de 1.500 pesos em julho, hoje está em níveis semelhantes aos de janeiro.>
Embora tenha perdido cerca de 10 pontos de popularidade – ele ainda está acima dos 40% – Milei consolidou seu poder, obtendo importantes vitórias legislativas apesar de ter uma pequena minoria no Parlamento e de não haver nenhum governador do seu grupo político partidário.>
“Votei nele porque queria uma mudança e ele está conseguindo”, diz Diego, 56 anos, passeador de cachorros em Buenos Aires.>
“Embora tenham sido meses muito difíceis, principalmente para meu velho [pai], que está aposentado, com a inflação e o dólar baixo estamos em melhor situação”, disse ele à BBC Mundo.>
Apesar disso, não há dúvida de que a Argentina atravessa um momento bastante difícil: segundo os últimos números oficiais, no primeiro semestre do ano o país registou o seu pior salto na pobreza em duas décadas, com mais de metade da população em situação de pobreza (quase 53%), incluindo quase 7 em cada 10 crianças.>
Além disso, o consumo despencou e o Produto Interno Bruto (PIB), índice que mede a atividade econômica, caiu 3,4% em comparação com o primeiro semestre do ano anterior. Tanto o Banco Mundial quanto o Fundo Monetário Internacional concordam que a Argentina será a economia latino-americana com a maior contração econômica este ano.>
No entanto, pelo menos por agora, Milei está cumprindo sua promessa de limpar a macroeconomia, reduzir a inflação e estabilizar o dólar.>
“Estamos saindo do inferno com sucesso”, anunciou o presidente em entrevista recente ao canal de notícias LN+.>
A BBC Mundo explica como ele está conseguindo isso (e por que nem todos acreditam que sua estratégia seja bem-sucedida).>
“Para entender como Milei reduziu a inflação, é preciso entender essencialmente a origem da inflação”, explicou à BBC Mundo o economista Miguel Boggiano, um dos membros do Conselho de Assessores Econômicos do governo argentino.>
“Na Argentina, a explicação é relativamente simples: como os diferentes governos gastaram mais do que arrecadaram, o que acabou acontecendo foi que esse excesso de gastos acabou sendo financiado pela impressão de papel-moeda, ou seja, com emissão monetária, porque ninguém empresta dinheiro à Argentina.">
Boggiano garante que “o problema foi piorando” porque, além de imprimir dinheiro para o Tesouro, o Banco Central também passou a conceder empréstimos ao Tesouro, o que deixou ambas as organizações endividadas.>
“O Banco Central sabia que geraria inflação com todos aqueles pesos que deu ao Tesouro, porque havia um excesso de pesos que o público não demandava e depois iria para o dólar ou para os preços.”>
Para evitar que isso acontecesse, explicou, o Banco Central criou um mecanismo para absorver uma parte importante desse dinheiro: os chamados passivos remunerados, dívida de curto prazo que foi contraída com os bancos.>
E essa dívida foi se acumulando.>
Quando Milei assumiu o cargo, o déficit do Tesouro equivalia a 4,6% do PIB. Mas o do Banco Central era o dobro, devido à “bola” de juros que a dívida de curto prazo gerou.>
Para resolver o problema do Tesouro, Milei foi diretamente à raiz: brandindo a motosserra metafórica símbolo de sua campanha, ele eliminou um terço dos gastos públicos de uma só vez.>
Assim, desde o primeiro mês de mandato, conseguiu reduzir as emissões de moeda – principal causa da inflação – e passou do déficit ao excedente fiscal (mais receitas do que despesas), algo que a Argentina conseguiu poucas vezes no século passado.>
Para resolver a dívida do Banco Central (e reduzir as emissões que gerava) ele recorreu a outro artifício, explica Boggiano.>
“Baixou a taxa de juros paga pelos passivos remunerados e também desvalorizou o peso, corrigindo a taxa de câmbio oficial e colocando-a quase no mesmo nível da taxa de câmbio do mercado”.>
“Isso produziu um ajuste nos preços relativos que significou um salto na inflação superior aos juros pagos por aquela dívida. Dessa forma, liquidou os passivos remunerados, deixando-os com taxas de juros reais negativas”, explica o assessor.>
Falando em um fórum de negócios na semana passada, Milei orgulhava-se de sua estratégia: “Ninguém sabia como resolver e resolvemos em seis meses. Nós tornamos possível algo que parecia impossível”, destacou.>
Embora muitos de seus críticos afirmassem ser impossível manter o superávit, pois isso exigiria continuar a adiar pagamentos que eventualmente teriam que ser feitos e congelar os gastos públicos em níveis mínimos históricos, a verdade é que o governo libertário conseguiu sustentá-lo em seus primeiros nove meses de governo.>
Conseguiu, inclusive, ter superávit depois de pagar os juros da dívida pública, algo inédito no país e considerado fundamental para o equilíbrio das contas.>
No entanto, há quem acuse o presidente e o ministro da Economia, Luis Caputo, de fazerem um malabarismo financeiro que simplesmente “esconde” o déficit.>
Ex-assessor de Milei, o economista Carlos Rodríguez, que foi secretário de Política Econômica no governo de Carlos Menem, alertou em sua conta X (antigo Twitter) que o governo não teria superávit se não fosse financiado com títulos do Tesouro, conhecidos como Lecap e LEFI, que permitem o adiamento do pagamento de juros uma vez que estes são pagos, juntamente com o capital, apenas no vencimento do título da dívida.>
Segundo Rodríguez, essa dívida remunerada que vai se acumulando “não aparece no déficit financeiro do Tesouro nem no cuasifiscal (nome oficial do déficit do Banco Central). Apenas aumenta a dívida pública”.>
"Como num passe de mágica, o déficit cuasifiscal desapareceu e Milei reduziu instantaneamente o déficit do Estado em vários pontos do PIB. Isso é simplesmente uma engano. O déficit continua. Eles não enganam ninguém, apenas perdem credibilidade, " escreveu.>
Na mesma linha, a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner disse através do X, na segunda-feira, que Milei, que disse em campanha que fecharia o Banco Central, acabou "passando ao Estado argentino seus passivos com o LEFI e os Lecaps que estão gerando juros mensais de mais de 2 bilhões de pesos (US$ 2 bilhões) e criando uma bola que, quando explodir, é melhor não se estar por perto”.>
Para além deste debate, Milei está confiante de que mantendo a sua política de “déficit zero” conseguirá reduzir a inflação, uma das suas principais promessas eleitorais.>
Em seu projeto de Orçamento para 2025, apresentado em setembro, ele estimou que este ano a inflação fechará nos 104,4%, metade do que era em 2023 (211,4%). E que no próximo ano cairá para 18,3% anuais.>
O mercado está um pouco menos otimista, mas concorda que haverá uma desaceleração significativa: a última Pesquisa de Expectativas de Mercado do Banco Central projetou que em 2024 a inflação será de 123,6%, um pouco abaixo do estimado pelo FMI (140%).>
“E se desta vez tudo correr bem???” perguntou no X Mariano – um advogado “com o desejo irreprimível de ver uma Argentina próspera” – em meio aos muitos posts que questionam se as metas do governo são realistas.>
Ao contrário da inflação, que diminuiu progressivamente de 20,6% em janeiro para 3,5% em setembro, o dólar paralelo, que reflete a confiança do mercado no governo e é uma referência incondicional no país, tem tido um ritmo mais errático.>
Quando Milei assumiu, valia mil pesos, subindo 25% no final de janeiro (1.250). Embora tenha voltado a cair e tenha permanecido próximo a 1 mil entre março e maio, a partir daí começou uma escalada que gerou preocupação entre os argentinos, que sabem que o valor do “azul” costuma refletir rapidamente nos preços.>
Em julho, o dólar atingiu seu valor mais alto: 1.500 pesos, cerca de 50% a mais que o valor do dólar oficial, regulado pelo governo, e se valoriza a uma taxa fixa de 2% ao mês, como uma “âncora contra a inflação”>
Isto levou a novos sinais de alarme devido aos receios de que pudesse pressionar os preços.>
Porém, desde então, o “azul” voltou aos níveis de janeiro, uma vitória para o governo libertário.>
“O dólar cai, as despesas não sobem, o aluguel da garagem não sobe, meu salário sobe. OBRIGADO MILEI”, escreveu Matías, torcedor do Boca Juniors e simpatizante do governo, no X.>
Mas o que Milei fez para conter o dólar?>
Há quem considere a "lavagem" de capital um fator também relevante para explicar a queda da taxa de câmbio obtida pelo governo, ao permitir a regularização de até US$ 100 mil antes não declarados, sem penalidades ou impostos adicionais (valores maiores pagam entre 5% e 15%).>
Isso gerou uma maior oferta de dólares, o que contribui para a redução do valor da moeda.>
Mas o governo nega que seja um “veranito cambial” causado pela regularização de dinheiro antes não declarado e afirma que a queda do dólar é parte do plano.>
O próprio presidente explicou isso, inclusive, em discurso a empresários reunidos no fórum do Instituto de Desenvolvimento Empresarial da Argentina (IDEA), no dia 18 de outubro.>
“Diante de um ataque especulativo em que o dólar era negociado a 1.500 pesos e nos disseram que na semana seguinte iria para 2 mil, e assim por diante, decidimos mudar o esquema monetário e ir diretamente para a emissão zero”, afirmou.>
“Parece que também funcionou e aconteceu algo que nunca havia acontecido na Argentina, que é o dólar cair de 1.500 para 1.100 pesos. E assim o que também parecia impossível, nós também tornamos possível”, gabou-se.>
Boggiano explicou a estratégia com mais detalhes à BBC Mundo.>
“No início da administração do presidente Milei, o Banco Central emitia pesos para comprar dólares e reconstruir suas reservas (que o governo herdou com um saldo negativo de mais de US$ 11 bilhões)”, disse.>
"Há dois ou três meses, o Banco Central decidiu diretamente não emitir mais pesos para comprar dólares, o que significa que não há emissão por nenhum motivo.">
“E como, além disso, o Tesouro tem um superávit fiscal – ou seja, gasta menos do que arrecada em impostos – o próprio Tesouro está absorvendo pesos da economia. O resultado é que há mais pesos e isso está fazendo o dólar cair", disse ele.>
O paradoxo da estratégia de Milei é que alguém que falou em dolarizar a economia e durante a sua campanha chamou o peso argentino de “excremento” valorizou-a tanto que agora o país ficou caro em dólares.>
“Se o câmbio permanecesse onde está atualmente, nos primeiros 12 meses do ano a Argentina teria uma inflação de 104% a 105% em dólares”, destacou outro ex-apoiador e hoje crítico do presidente, Diego Giacomini.>
“Significa que, se no início do ano, quando Milei assumiu, você precisava de US$ 100 para pagar a luz, no final do ano você vai precisar entre US$ 200 e US$ 210 para pagar a luz”, explicou durante uma entrevista recente à Radio con vos.>
Segundo o economista “é um câmbio que não serve nem a quem produz para o mercado interno nem a quem exporta. Portanto, o nível de atividade está condenado a ser ruim”.>
“Isso terá que ser corrigido em algum momento com um salto cambial e posterior aceleração da inflação”, diagnosticou.>
Alguns argentinos compartilham seu pessimismo. “Estamos caros em dólares porque o valor do dólar está defasado porque eles o seguraram!!! Já vi esse filme e já sei o final: 2001, isso te parece familiar?!!!”, escreveu o tweeter Jean Valjean.>
Milei descartou uma nova desvalorização e afirmou que manterá sua estratégia de valorização do dólar oficial em 2% a cada mês, mesmo que isso tenha deixado seu valor defasado em relação à inflação.>
O ministro da Economia, Caputo, destacou que o plano do governo é que o dólar oficial e o "dólar azul" eventualmente convirjam, um passo importante antes de poder levantar os controles de capital (aqui apelidados de "armadilhas") que limitam o acesso à moeda americana no país.>
E também algo que deve preceder uma eventual dolarização, que continua a fazer parte dos planos oficiais, através da livre “competição cambial”.>
Entretanto, o governo minimiza as preocupações daqueles que alertam que, para além das boas notícias financeiras, a “economia real” não está decolando.>
E destaca que, embora as comparações anuais da atividade econômica sejam negativas, se compararmos mês a mês vemos que a tendência é positiva, uma mudança que já começa a ser notada em alguns setores.>
“De agora em diante só vêm boas notícias”, repete Milei em seus discursos e entrevistas.>
Seu otimismo é compartilhado pelo Banco Mundial e pelo FMI, que estimam que em 2025 a Argentina crescerá 5%, deixando de ser a economia latino-americana com maior contração econômica passando a ser a que apresenta maior crescimento.>
Há que esperar para ver se essa recuperação econômica é um trampolim para um futuro mais próspero, capaz de melhorar a vida dos cerca de 25 milhões de pobres que o país tem hoje, como promete Milei, ou se a Argentina novamente voltará a ficar, mais uma vez, presa numa outra espiral de dívida, como alertam os adversários do presidente.>
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