Publicado em 2 de dezembro de 2024 às 16:44
Maria Petrucci, de 22 anos, teve o pai preso por militares durante a ditadura no início dos anos 1970.>
Luana Lungaretti, de 22 anos, também sofreu com a tortura e prisão do pai por agentes no DOI-CODI, na mesma década.>
Já Elisa Nunes, de 21 anos, teve a avó exilada na França durante dez anos nesta mesma época.>
As três jovens, de idades semelhantes, compartilham histórias de familiares marcados pela repressão do regime militar brasileiro, que durou 21 anos.>
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Os relatos foram compartilhados graças a uma trend no TikTok, inspirada no filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, e que rendeu postagens virais, com mais de quatro milhões de visualizações.>
Um dos primeiros vídeos foi o de Maria, onde ela segura a foto 3x4 do pai, preso na época, e escreve: "O impacto de ver esse filme sendo filha de um preso político da ditadura que hoje tem Alzheimer em estado avançado".>
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O post tinha como trilha sonora a música É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo, do cantor Erasmo Carlos, e que compõe o longa.>
Após essa publicação, outros jovens começaram a compartilhar relatos sobre pais e avós que sofreram com a perseguição, destacando como o filme se tornou um marco para que o tema fosse falado abertamente.>
"Eu não imaginei que ia ter essa repercussão e muitas pessoas jovens perguntando o que foi a ditadura. Fiquei feliz que pude contribuir para que outras pessoas pudessem ter mais consciência de todo o prejuízo que muitas famílias sofreram. Vi um paralelo com a história do meu pai", diz Maria.>
Logo que ingressou na faculdade de administração pública na década de 1970, o pai de Maria, Sérgio de Azevedo, hoje com 78 anos, entrou para o movimento estudantil e ajudou pessoas que eram perseguidas pela ditadura.>
Ele e os amigos usavam um apartamento para salvar e abrigar indivíduos e deixá-los em segurança. >
"Eles chamavam de 'aparelho' e funcionava como uma espécie de esconderijo. Para dificultar a identificação, ele também usava o nome de Frederico", diz Maria.>
Na época, ele tinha uma amiga chamada Anita e os dois combinaram de se encontrar em uma praça no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. Ela demorou muito a aparecer no local e quando ele e um amigo estavam indo embora, foram surpreendidos por militares. >
"Os militares os pisotearam e os levaram para a penitenciária da Tijuca", relembra a estudante.>
Chegando ao local, ele passou cinco dias em uma cela, deitado em uma esteira no chão, com um militar armado ao seu lado.>
"Ele ficou por volta de dois meses na prisão e, nesse meio tempo, ocorreram diversas situações que o impediram de ser torturado", conta. Na primeira vez, segundo Maria, os militares haviam encontrado jovens de outro grupo e não realizaram a tortura.>
"Provavelmente acharam um outro grupo mais significativo. E talvez não desconfiaram dele, porque ele realmente escondeu muita gente relevante no apartamento", acrescenta.>
Em um outro momento, ele foi levado para uma sessão de tortura na qual as pessoas eram chamadas em ordem alfabética. >
Por ter o nome S, ele estava entre os últimos e, bem naquele dia, o horário para tortura havia acabado. "Ele nunca agradeceu tanto por ser Sérgio e ter o S no nome", relembra.>
Em outro momento, um militar o acorda no meio da noite e pergunta se ele era o Frederico e diz "que não queria estar na pele dele e que ele havia caído".>
Maria conta que o pai chegou a pensar que fora delatado pelos amigos, mas, ao chegar na sala de tortura, viu seu amigo ensanguentado e, mesmo assim, o companheiro disse que aquele não era o Frederico que os militares estavam buscando. >
"Até hoje a gente não sabe se ele quis poupá-lo ou se não era ele mesmo. Ele passou 'raspando' por sessões de tortura", conta a jovem.>
Após quase dois meses, ele consegue ser solto com a ajuda de um militar conhecido da família, que o ajuda com argumentos de que ele tinha bons antecedentes e que já havia estudado no colégio naval na adolescência.>
Ao sair da cadeia, Maria conta que o pai era vigiado constantemente por militares e precisou mudar de casa. Ele havia passado em um concurso para ser fiscal de renda e sofreu ameaças para assumir o cargo, o que o fez desistir.>
"Eles não queriam que alguém contra o regime ocupasse um cargo público", conta.>
Só depois de muito tempo e com uma liminar na Justiça, que ele conseguiu, de fato, pleitear o cargo.>
Depois, passou por processos de exílio, quando foi estudar para um mestrado no Chile e na Argentina, até retornar ao Brasil, nos anos 70.>
Devido a todas as adversidades, Sérgio sofreu traumas e sempre falava sobre o assunto com muito receio e medo. "Ele falava baixo, falava com medo. Chegou a dar depoimento na Comissão Nacional da Verdade e ficou realmente nervoso", relembra a filha.>
Mesmo não sofrendo tortura física, as sequelas psicológicas foram graves, de acordo com Maria. Ele conta que o pai tomou por muito tempo ansiolíticos e, mesmo após anos, ainda tinha receio de falar sobre tudo que viveu na prisão.>
A estudante também relata que o pai parou de sonhar, literalmente, anos após sair da cadeia. >
"Ele não tinha mais a experiência de sonhar como as pessoas normais. Quando ele saiu da prisão, ele sonhava muito com tortura, tirando a camisa, a calça, para se 'desidentificar'", diz.>
"Como fazia abuso de ansiolíticos, teve um comprometimento psíquico e neural. Então, ele realmente não sonhava com nada ou não se lembrava. E também não tinha mais esperança com a vida. Tornou-se uma pessoa muito pessimista", acrescenta.>
Em 2018, Sérgio foi diagnosticado com demência e a doença foi evoluindo. Ele precisou se retirar da faculdade em que dava aula e foi tendo uma piora no quadro de saúde.>
Atualmente, por decisão da família, ele vive em uma ILPI (Instituição de Longa Permanência), e tem dificuldade em reconhecer as filhas. "Hoje, ele já está em estágio avançado do Alzheimer e muito debilitado. Tem dificuldade para se comunicar, para formar frase", diz.>
Mesmo diante da condição, Maria acredita que os resquícios da ditadura ainda permanecem. "Uma vez eu estava cantando Chico Buarque para ele e ele disse para eu não cantar aquilo que iam me prender", relembra.>
Para a jovem, a identificação com o filme veio justamente daí, já que, para ela, a cena mais emblemática foi quando a atriz Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice no fim da vida, reconhece o marido na televisão e esboça reação sem dizer uma palavra.>
"Foi muito impactante. Ela ressurge de si mesma. Fiquei muito comovida com esses paralelos", diz.>
Para ela, a obra é fundamental para preservar a história de todas as pessoas que passaram por algum tipo de tortura nessa época, além de mostrar para outras que duvidam que isso existiu.>
"Tenho relato de amigos que foram assistir com pais conservadores. E só de conseguirem ter empatia e entender o que pelo menos foi o regime militar, fico feliz. É muito importante a empatia que o cinema proporciona", diz.>
A estudante Luana Lungaretti, de 22 anos, cresceu ouvindo sobre o impacto da ditadura militar na vida de seu pai, Celso Lungaretti, hoje com 74 anos.>
Jornalista e ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ele foi preso aos 19 anos em uma operação que desarticulou o grupo ao qual pertencia.>
Celso foi preso no dia 16 de abril de 1970 e levado para a sede do DOI-CODI, na zona norte do Rio de Janeiro.>
Durante o tempo de detenção, foi submetido as sessões de tortura que incluíam choques elétricos e espancamentos.>
"Choques nos dedos, nos testículos e com eletrodos atados nos ouvidos, de forma que sentíamos como se um raio atravessasse nosso cérebro", relembra Celso, em entrevista à BBC News Brasil.>
Ele sofreu agressões pelo tenente Ailton Joaquim, que, segundo Sérgio, era considerado um dos mais violentos da época. O militar chegou a ministrar uma aula prática de tortura na Vila Militar, em outubro de 1969, para um grupo de sargentos e oficiais.>
"Em uma dessas sessões, ele teve o tímpano do ouvido direito estourado, uma lesão que resultou em anos de crises de labirintite e cirurgias", conta Luana.>
"Fiz três cirurgias, mas até hoje continua perfurado. O buraco só diminuiu de diâmetro, mas, se entrar água, infecciona", afirma o jornalista.>
Além dos danos físicos, as marcas psicológicas e sociais foram severas. "Ele passou quase um ano tentando se reerguer psicologicamente após a prisão. Ainda assim, enfrentou difamações e foi acusado injustamente de delatar seus colegas. Isso o isolou de muitas pessoas e comprometeu sua carreira profissional por décadas", relata a filha.>
Ele chegou a ficar um ano preso, e levou praticamente o mesmo tempo em que ficou em cárcere para se recuperar. "Não tinha dinheiro para pagar terapeuta, mas fui superando os traumas e revolta represada", diz.>
Segundo Celso, pelo menos 20 pessoas que ele conhecia pessoalmente foram assassinadas durante a luta armada ao participar de uma comunidade alternativa, a convite de antigos amigos dele da escola.>
Para driblar a hostilidade e os preconceitos, ele chegou a usar pseudônimos para assinar trabalhos na imprensa e conseguir trabalho.>
A história do pai nunca foi um tabu dentro de casa. Desde cedo, Luana ouviu sobre o período repressivo e como ele moldou sua visão de mundo.>
"Meu pai nunca se calou sobre o que viveu. Ele sempre participou de debates, deu entrevistas e escreveu sobre o tema. Em 2005, publicou o livro Náufrago da Utopia, onde relata sua trajetória na guerrilha e as marcas deixadas pela ditadura", ressalta.>
Ao assistir ao filme Ainda Estou Aqui, a estudante sentiu-se representada."Foi impossível não me emocionar e pensar no que meu pai enfrentou. Era como se eu pudesse sentir, mesmo que minimamente, o que ele viveu na pele", diz.>
No entanto, a experiência foi marcada por limitações: tanto ela quanto Celso têm deficiência auditiva, e a ausência de legendas nos cinemas brasileiros dificultou o acesso. >
"Uma pessoa que me acompanhava precisou escrever pelo WhatsApp o que acontecia para que eu pudesse entender." O pai da jovem ainda não conseguiu assistir ao longa, justamente pela falta de acessibilidade.>
A repercussão do filme e dos vídeos no TikTok, onde Luana compartilhou a história de sua família, é, para ela, uma oportunidade de conscientizar as novas gerações.>
"A maioria que defende, muitas vezes, é influenciada por opiniões extremistas e, em alguns casos, sem fundamento sobre o assunto. Falta mais estudo e, principalmente, humanidade", diz Luana.>
Questionados sobre as pessoas que pedem para que a ditadura retorne, ambos são categóricos nas respostas. Para eles, defender a volta desse regime é fruto da falta de informação.>
"Tais pessoas, ou estão sendo enganadas por gente inescrupulosa que lhes impingem mentiras cabeludas aproveitando sua inocência, ou são seres desumanos ao extremo", diz Celso.>
A filha ainda faz um apelo para que essas pessoas se coloquem no lugar das minorias, de quem perdeu alguém e de quem teve que lutar.>
"Viver com medo, viver sendo vigiado, viver sob cautela o tempo todo, viver sem direitos. Isso não é viver, e não podemos permitir que se repita.">
A avó da estudante Elisa Nunes, Vera Tude de Souza, precisou abandonar sua vida no Brasil durante a ditadura militar.>
"Minha avó era muito jovem, praticamente da minha idade, e teve que largar tudo para acompanhar meu avô, que era da luta armada. Ela não era militante, mas ajudava pessoas perseguidas, como o Rubens Paiva", conta Elisa.>
Vera acabou sendo identificada pelas autoridades após ajudar na fuga de um amigo, que acabou capturado. A situação se tornou insustentável, e ela partiu para o exílio na França em 1969. Lá, ingressou no Partido Comunista Francês e passou a observar as diferenças sociais e políticas em relação ao Brasil.>
"Ela via como políticas públicas, saúde e educação de qualidade mudavam a vida das pessoas, e isso marcou muito a visão dela", explica a neta.>
Mesmo politicamente ativa no exílio, sua avó enfrentou dificuldades financeiras. Sem formação acadêmica completa, fez trabalhos manuais e passeava com cachorros para sustentar as filhas gêmeas. "A ditadura roubou isso dela, e ela teve que se virar com o que dava para criar minha mãe e minha tia", relata Elisa.>
Segundo a jovem, a avó conta que o período, apesar dos desafios, foi importante para a formação política dela, que agora tem 81 anos. "Ela nunca escondeu essa parte da vida para a família, sempre contou suas experiências. Foi uma época difícil, mas que trouxe muito aprendizado para ela e meu avô.">
Elisa também explorou a história da avó em sua monografia do ensino médio, que abordava o papel das mulheres na ditadura. >
"Usei os relatos dela para mostrar como era ser mulher na linha de frente naquele período. Foi muito especial trazer essa memória para o trabalho", afirma.>
A identificação da família com o filme de Walter Salles foi imediata. "Assistimos juntos porque sabíamos que nos reconheceríamos nos personagens. Somos uma família de classe média, e a trajetória deles lembra muito a da minha avó.">
Ao levar a história de Vera para o TikTok, a estudante quis destacar a força e resiliência da avó. >
"Ela é uma heroína invisível, a mulher que eu mais admiro no mundo. É importante contar essas histórias para que ninguém esqueça o que aconteceu e para que possamos entender melhor nosso passado.">
Para Elisa, a falta de punição aos responsáveis pelo regime contribui para o esquecimento coletivo. >
"Os culpados nunca foram punidos, e isso cria um fator de esquecimento muito grande nas pessoas. Muitos defendem a ditadura sem saber o que realmente aconteceu”, diz>
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