Publicado em 3 de março de 2020 às 19:32
Brasil e Estados Unidos fecharam um acordo militar inédito que, se explorado integralmente, poderá ajudar a abrir o maior mercado de defesa do mundo à indústria nacional. >
O acordo, conhecido pela sigla RDT&E (sigla inglesa para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação), será assinado na semana que vem, durante a visita do presidente Jair Bolsonaro a Miami.>
Politicamente, servirá para Bolsonaro dizer que sua opção pelo alinhamento automático aos EUA de Donald Trump está rendendo frutos.>
Na realidade, o RDT&E começou a ser negociado por iniciativa americana em 2017, no governo de Michel Temer (MDB), mas a aproximação entre Bolsonaro e Trump acelerou as tratativas.>
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Em março do ano passado, o Brasil recebeu o status de aliado privilegiado fora da Otan (a aliança militar ocidental). Isso em si não significa nada sem tratados específicos, e essa lacuna deverá começar a ser suprida pelo RDT&E.>
O acordo, por ser internacional, precisa de ratificação dos Congressos dos dois países. A expectativa no Itamaraty é de uma tramitação rápida, ao estilo daquela do texto de salvaguardas que permitirá aos EUA lançar foguetes da base de Alcântara (MA) em cerca de seis meses.>
Essa visão otimista vai depender do Parlamento em pleno conflito político com Bolsonaro e paralisado a partir de julho, devido às campanhas eleitorais municipais.>
Dois acordos anteriores que permitiram a costura do RDT&E, de 2010, só foram aprovados cinco anos depois.>
O RDT&E permitirá, uma vez valendo, que os dois governos assinem acordos de projetos. A partir daí, empresas de ambos os países podem ser selecionadas e contratadas para tocar programas, que sempre terão a gerência de autoridades brasileiras e americanas.>
Negociadores do acordo não descartam que projetos sejam sugeridos diretamente por empresas interessadas e encampados pelos governos.>
Em princípio, contudo, o financiamento dos projetos é público -o que não impede a possibilidade de investimentos de risco privados.>
Do lado americano, o pote financeiro é virtualmente ilimitado no país que concentra 39% do gasto militar global. O principal fundo americano da área de defesa somou US$ 96 bilhões (US$ 432 bilhões nesta terça, 3) no ano passado.>
Os EUA aplicam 29% de seu orçamento militar, o maior do mundo no ano passado com US$ 684,6 bilhões (R$ 3 trilhões) em investimentos: compra de equipamento, pesquisa e desenvolvimento.>
O Brasil vive um momento de expansão de gastos militares sob Bolsonaro, com um aumento de sua fatia de investimentos dos previstos 9,5% em 2019 para 15,9% ao fim do ano.>
Mas mesmo seus gastos totais (R$ 109,9 bilhões em 2019), os 11º maiores do mundo, não dão conta nem de duas semanas do dispêndio americano.>
Pelo RDT&E, os projetos terão de ter contrapartidas de lado a lado. Elas não precisam ser equivalentes, contudo, o que sugere a capacitação da indústria nacional.>
Eventuais produtos desenvolvidos terão propriedade intelectual compartilhada, e o acordo prevê acesso de empresas brasileiras a laboratórios e a indústrias americanas -desde que autorizadas.>
A base industrial de defesa brasileira engloba cerca de 220 empresas, a maioria de pequeno e médio porte. Usualmente seu papel é ofuscado por vendas de grandes atores, como a Embraer, mas a vocação do setor é um ambiente semelhante ao das startups. O que falta é investidor.>
As exportações em si tiveram um salto em 2019, de 30% ante o ano anterior, e fecharam em US$ 1,23 bilhão (R$ 5,5 bilhões) -considerado um recorde recente, mas longe da meta de US$ 6 bilhões e uma fração mínima do total exportado (US$ 224 bilhões).>
Não há detalhamento, por questões metodológicas, mas é consenso na área que a era de ouro das vendas militares brasileiras foram os anos 1980.>
Ali, fornecendo para clientes como o Iraque de Saddam Hussein em guerra com o Irã, o Brasil estava entre os dez maiores exportadores do mundo. Um indicador de valor relativo de exportações do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo aponta essa curva e a decadência posterior.>
O RDT&E, negociado pelo Departamento de Defesa do Itamaraty e pelo Ministério da Defesa, tem a pretensão de ampliar a penetração brasileira no mercado dos EUA. A lógica é simples: as parcerias farão as empresas brasileiras candidatas naturais a entrar em cadeias de produção global puxadas por americanos.>
Aí a mira se volta também para os outros 28 países membros da Otan, grande parte dos quais tem acesso ao fundo americano de defesa. Também o tem aliados como Israel e Coreia do Sul.>
O Brasil já é o maior fornecedor de munição leve para a aliança militar ocidental, por exemplo. Para o governo brasileiro, é possível ampliar isso o exemplo do cargueiro C-390 da Embraer, já encomendado por Portugal, é citado em toda conversa sobre o tema.>
O novo acordo tem como um de seus pilares a adoção do padrão Otan para todos os produtos que vierem à luz, algo comum entre fabricantes ocidentais de produtos de defesa, mas que não é seguido de forma homogênea no Brasil.>
Hoje há diversos entraves para vender armamento e sistemas correlatos aos EUA, um dos principais a exigência da presença física do vendedor em solo americano.>
Nos dias 11 a 13, depois da visita de Bolsonaro, a comitiva de empresários do setor que o acompanhará irá a Washington com membros do Itamaraty e da Defesa para um seminário que visará explicitar ao governo dos EUA dúvidas e angústias brasileiras.>
Mesmo vendedores com presença forte nos EUA se queixam de buracos negros tributários e legais que desestimulam negócios.>
A simbiose estatal-privado é uma marca do setor de defesa no mundo todo.>
"Se por um lado exportar é preciso, dada a reduzida rubrica de investimentos, por outro a receptividade do produto brasileiro no exterior depende fortemente de que os mesmos sejam empregados pelas nossas próprias Forças", diz o presidente da Abimde (Associação Brasileira de Indústrias de Material de Defesa e Segurança), Roberto Gallo.>
Um exemplo é o próprio C-390, que só existe porque a Força Aérea injetou R$ 5 bilhões em seu desenvolvimento desde 2008 e fez a primeira encomenda de 28 aparelhos, de R$ 7,2 bilhões.>
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