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Aborto evidencia idas e vindas entre Igreja e Estado na Argentina

Aborto evidencia idas e vindas entre Igreja e Estado na Argentina

O Senado da Argentina aprovou, na madrugada desta quarta-feira (30), o projeto de lei para legalizar o aborto no país

Publicado em 31 de dezembro de 2020 às 08:32

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Ativistas pelo direito ao aborto se manifestaram fora do Congresso enquanto legisladores debatiam o projeto de lei que legalizaria o aborto, em Buenos Aires, Argentina
Ativistas pelo direito ao aborto se manifestaram fora do Congresso enquanto legisladores debatiam um projeto de lei que legalizaria o aborto, em Buenos Aires, Argentina. (Gabriel Sotelo /Fotoarena/Folhapress)

A relação entre política e religião na Argentina é uma história de enfrentamentos e acomodações. O pensamento laico esteve muito presente na época da independência, no século 19, pois era uma forma de se diferenciar da tradição ibérica, vista como um atraso por vários dos independentistas e dos pensadores que desenharam as primeiras leis e projetos do país independente.

A União Cívica Radical, mais antiga grande força política do país, tem no laicismo uma das principais bandeiras. Sob seu comando nos anos 1920 e 1930, principalmente, a Argentina manteve uma forte separação entre a Igreja e o Estado.

Isso mudou bastante com o peronismo, que voltou a valorizar a influência da Igreja na sociedade. O general Juan Domingo Perón (1895-1974), nos anos 1940, se aproximou da Igreja Católica de modo intenso, como uma maneira de se projetar e ganhar popularidade.

Porém, quando Perón passou a promover o culto à sua própria personalidade, distribuindo, por exemplo, manuais escolares com as imagens dele e de sua então mulher, Eva Perón (1919-1952), como patronos da pátria, a relação começou a azedar. Seu crescente protagonismo nos atos públicos, deixando a Igreja de lado, gerava críticas fortes das autoridades católicas. Estas começaram a apoiar os militares que, em 1955, dariam um golpe e derrubariam Perón.

Pouco antes disso, porém, os seguidores de Perón, estimulados por seus ataques verbais aos religiosos, queimaram várias igrejas em Buenos Aires, enquanto sacerdotes foram presos e perseguidos. O golpe contra Perón recolocou os religiosos numa posição de poder.

No golpe de 1976, a Igreja também permaneceu ao lado dos militares e atuou em apoio de várias ações da repressão. Em algumas situações, chegou a atuar diretamente em atos delitivos, como na mediação da entrega de bebês que nasciam nos centros clandestinos de tortura a pais adotivos alinhados aos militares.

Essa relação tão próxima da Igreja com os militares deu à instituição uma má fama para parte da sociedade, principalmente na esquerda e entre o peronismo, depois da redemocratização do país, e até os dias de hoje.

Atualmente, existe um setor da Igreja mais tradicional que é ligado à classe mais endinheirada, à aristocracia e à direita, enquanto outra está mais vinculada a projetos sociais como o dos "curas villeros", os padres que atuam nas favelas. A esta última vertente pertence o papa Francisco, que se posicionou fortemente contra o aborto na votação do último dia 29.

Nas semanas anteriores à votação, tanto o setor mais tradicional da Igreja argentina, representado pela Conferência Episcopal Argentina (CEA), como os "curas villeros" condenaram a legislação. Na quarta-feira (30), a CEA lançou um comunicado dizendo que "esta lei aprofundará ainda mais as divisões no nosso país". Já os "villeros", como o famoso "padre Pepe", afirmou que as mulheres pobres da Argentina estavam sendo usadas como "desculpa para aprovar uma lei com a qual não estão de acordo". Do Vaticano, o papa Francisco também mostrou sua rejeição por meio de tuítes contra a aprovação.

A Igreja mantém com o Estado, porém, uma relação de certa dependência. O segundo oferece à primeira subsídios para pagar os padres e bispos e patrocina parte da educação católica, que corresponde a 36% das escolas do país.

A Constituição argentina, porém, determina que o Estado é laico e que há liberdade de culto. Uma reforma de 1994 eliminou o último resquício legal que vinculava as duas instituições: a necessidade de que o presidente da República fosse católico. Em 1989, essa norma obrigou Carlos Menem, originalmente muçulmano, a se converter ao catolicismo.

Segundo dados do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas), 62,9% dos argentinos se dizem católicos, 18,9% afirmam não ter religião e 15,3%, se declara evangélico.

Durante as últimas décadas, porém, os governos democráticos aprovaram legislações que foram de encontro aos interesses da Igreja. Isso causou críticas na época das aprovações, mas não houve danos maiores à relação. Entre elas, o divórcio (1987), a lei de educação sexual nas escolas (2006), o matrimônio igualitário para homossexuais (2010) e a lei de identidade de gênero (2012), que permitiu a mudança de sexo nos documentos de identidade.

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