• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: O palhaço e o trapézio

Publicado em 11/06/2023 às 09h00
E essa é a história de um palhaço nato que tentou ser trapezista até cair (em si).

E essa é a história de um palhaço nato que tentou ser trapezista até cair (em si). Crédito: Shutterstock

Um circo é feito de inúmeros atos – diferentes, apesar de complementares. E essa é a história de um palhaço nato que tentou ser trapezista até cair (em si). Nota: na vida e no picadeiro, não se sabe o que veio primeiro, se a matéria ou o espírito... (Pessoalmente, acredito mais nisso do que naquilo.)

Porque a alma gesta. É gravida, cósmica, contém a graça... Esburacada por essência, a alma é como a arte (pura falta): desejo em ato. Cria-a-ação.

Enquanto a matéria dá a estrutura, é estável, fornece suporte, sustenta e trabalha com a gravidade; o invisível, o espírito, a alma cria elo, conecta. Faz intimidade... São diferentes atos.

E se o número do palhaço parece, de todos, o mais fácil, é porque o mundo privilegia o cálculo. É, o risco calculado do trapezista, por exemplo, impressiona, gera a sensação de "poder". Já a Graça do palhaço não tem forma, é abstrata, gera a emoção da conexão, através da compaixão.

É possível dizer que no circo, enquanto o trapezista demonstra toda habilidade e destreza com a matéria, o espírito tece intimidade com o enigma – e o espírito do circo é o palhaço. Você sabe, a nobre arte (da magia) da simplicidade.

Arquétipo inaugural da jornada, o palhaço, o bobo ou o louco, como queira, são gênios disfarçados. Trazem no âmago uma porção do sagrado.

Despidos do ego e da vaidade, seguem na beira, no penhasco, bem na margem, por caminhos fronteiriços... Instintivos e amantes incondicionais, nos convocam com a mestria da criança. E o riso coletivo é um portal da Graça.

Mas há quem duvide de que esta seja um ato nobre... Sem fazer conta do valor do arquétipo que nos transporta através da gargalhada.

Digo isso porque lá no circo onde trabalhava chegou um sujeito de nome gerente e decidiu que a partir daquele dia, todos os palhaços precisariam aprender um número de trapézio pra fazer bonito na cena. Que era um jeito novo, mais "Solei" de ser. Tudo pelo entretenimento e seus louros-rendimentos.

No começo achei que iria dar conta, que era só questão de prática, mas pouco a pouco, a verdade começou a aparecer. Fazer o que? O trapézio não é meu número!

E quanto mais eu me esforçava entre cálculos, contagens e barras, mais me afastava da pureza torta do meu palhaço... isso começou a marcar falta.

Porque a verdade é que eu sempre busquei no circo intimidade... Conexão imediata, laço invisível com o outro que encontra alguma parte de si mesmo a cada tropeço. E a cada trapalhada mais identificados com os medos, as angustias, incertezas e as risadas... Rir de si mesmo (junto) gera um tipo de energia rara, que faz elo. Conecta. E por isso é íntimo, sagrado.

E é esse o nobre ofício do palhaço: vínculo do ser (puramente humano) com o inefável. A palhaçaria fala do humano despido do ego, ainda que sobre um palco. É a brincadeira, de todas, mais respeitável.

Enfim, lá estava eu, passando talco nas mãos para fazer mais um salto no trapézio em busca de admiração e aprovação do gerente. Para quem já havia dito inúmeras vezes que o atletismo não é exatamente meu dom... Então, no meu número de palhaço trapezista, a queda no fim era certa. Um recorrente resgate da rede de proteção.

Dou graças pela oportunidade e aprendizado, mas cansei. Aprendi: meu número por aqui é esse do nobre e misterioso servir. É sobre ser mestre nisso, não naquilo. E ainda assim, sorrir.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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