• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: A realidade da minha ilusão

Publicado em 03/12/2023 às 07h00
Festival das luzes

A mestra explicou que estávamos em pleno "Diwali" - semana das luzes, que simboliza a vitória do bem sobre o mal dentro de cada ser humano. Crédito: Shutterstock

A confusão entre realidade e sonho é tema recorrente na poesia do dia a dia. Previsões, mitos, crenças, superstições e coincidências se misturam facilmente aos fatos. E é exatamente por isso que, na nossa vida, a imaginação tem tanto espaço...

Eu já estava grávida de quatro meses quando, na véspera da manhã em que faria o exame de ultrassom para descobrir o sexo do bebê, fui fazer uma aula de ioga para gestantes. Naquela noite, por acaso, quem deu a aula foi uma professora diferente. Uma senhora, mestra não sei das quantas, que havia morado anos e anos na Índia e que tinha uma cara tão enrugada quanto pacífica. A prática foi mágica, eu diria. Diferente das outras, por alguma razão não sabida. Sei que me lembro bem do que ela encerrou dizendo:

"Atenção! Esta é a semana das deusas, meninas".

A mestra explicou que estávamos em pleno "Diwali" - semana das luzes, ou festival das luzes, que é celebrado uma vez ao ano e simboliza a vitória do bem sobre o mal dentro de cada ser humano. Segundo a professora, o terceiro dia do festival é inteiramente dedicado à Lakshmi, que para religião hindu, representa a deusa da prosperidade, da sorte e da beleza.

Lakshmi nasceu de um lótus que brotou das ondas do mar e seu corpo reflete a abundância através de seus seios fartos e quadris largos. Acredita-se que neste dia, ela passeia pelos campos verdejantes despejando bênçãos, por isso, para que ela visite suas casas, é comum as pessoas acenderem lamparinas nas janelas.

E continuou: "Fêmeas em estado de lótus, não deixem de acender a casa para ela".

Ouvindo aquilo, tocada pelo meu estado hormonal (e de profundo relaxamento, alcançado depois da aula), me lembro de ter achado tudo uma incrível coincidência. Ora, dali a poucas horas eu, finalmente, confirmaria o sexo do bebê que trazia na barriga.

"Que sorte a minha!", pensei. "O dia da deusa da luz junto à notícia sobre a chegada de uma menina..."

*Nota: é que, apesar de sempre ter desejado como primeiro filho, um menino, logo que descobri sobre a minha gravidez, uma senhora muito especial disse que antevia ser uma menina. Na hora, fiquei em choque com a notícia (tão precoce! - ora, eu me achava no direito a pelo menos alguns meses de dúvida). Mas, diante daquela informação mística, fiquei, primeiro conformada, depois, pouco a pouco, animada com a ideia e, dali em diante, bolei o nome, imaginei o rostinho e fiquei sonhando com o dia em que, enfim, a conheceria.

Pois bem, na noite da véspera do exame, eu não dormi sequer um instante. Passei a madrugada em claro, ansiosa e com todas as luzes de casa acesas. Às seis da manhã, eu estava um bagaço e, como o exame só seria às nove, achei prudente tentar dormir pelo menos um pouquinho. Foi quando tive um sonho importante: sonhei que chagava para fazer o exame e que o médico que me aguardava na sala, vestido de jaleco de médico, era meu pai. Ele deslizou a câmera pela minha barriga e disse: "é um menino, minha filha". E eu: "não. Você está enganado. Olha de novo". Aí, eu mesma via um menino de camisa verde sorrindo... Tsc, acordei num susto e me dei conta de que estava só sonhando. Aliviada, esgotada de sono e quase atrasada, fui correndo fazer o exame.

"Advinha!". 

Ah! Como explicar sonhos, previsões, coincidências... (Maria, algumas coisas simplesmente não têm porquê, pensou você). Mas, não adianta, minha imaginação quer, gosta, precisa entender.

Assim, vejamos: se na mitologia, da união entre o Caos e a Noite, surgiu a divindade chamada Destino; e no hinduísmo, Lakshmi deu a Indra, o Rei dos Deuses, o sangue do conhecimento de seu próprio corpo para que ele se tornasse o Rei dos Devas (divindades regentes da natureza); então, na vida real, podemos dizer que o amor entre a mulher e o homem dá vida a três novos seres.

Um rei e dois semi-deuses.

Tsc, terráqueos só experimentam a condição de divindades quando geram outra vida (seja ela de um menino ou uma menina). Mas, em todo caso, antes de conhecerem a glória, serão súditos de V. Majestade. O bebê, é claro. Único ser com o poder irrevogável de transformar "gente" em mestres na arte da paciência, do afeto e da entrega.

Mas, depois os súditos serão recompensados. Venerados de forma incondicional pela cria. De repente, quando se derem conta, estarão carregando uma responsabilidade sem tamanho, um cetro gigante.

O pai, deus do saber, apresentará o mundo real ao pequeno rei que, se for menino, vai se nutrir dele para mais tarde ser homem como ele. Se for menina, irá se apaixonar por ele, para mais tarde saber escolher outro homem.

Já a mãe, deusa do amor, será a personificação da generosidade e da beleza. Então, no caso da cria ser uma menina, pequena rainha, o poder da deusa mãe será contestado desde sempre (está na lei da natureza: fêmeas não suportam hierarquia). Mas, se por outro lado, for um menino, rei pequenino, aí sim, a condição de deusa estará garantida por toda vida...

Claro, tudo invenção minha!

Ou, você acha que eu iria abrir mão da ilusão de me transformar numa deusa?!

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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