• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: O circo voltou

Publicado em 19/11/2023 às 07h00
Malabaristas: circo

O universo do picadeiro, onde tudo é brilho, som, luz e ato, me dava esperanças na mesma medida que me desafiava roucamente aos ouvidos. Crédito: Shutterstock

Do leitor espero: cumpra sua parte, me leve a sério.

De tempos em tempos o circo chega e instala uma crise em mim. Em silêncio, arma sua lona amarela-gigante bem na porta da minha casa. Aparece! E como uma bola de plástico que cai na água azul da piscina calma, faz marola – balança meu barco. E não sossega: quando a noite cai, ainda acende luzes brilhantes e pisca. Monumental, acendendo e apagando – o letreiro me chama. Me ameaça. Me instiga. Ele zomba de mim: “Maria, o que você tá fazendo aí?”.

(Se eu já vi o Cirque du Solei? Semanas em crise!)

Criança, acalentava inúmeros sonhos circenses – primeiro queria ser ajudante do mágico; depois bailarina sobre cavalos, trapezista, palhaço. O universo do picadeiro, onde tudo é brilho, som, luz e ato, me dava esperanças na mesma medida que me desafiava roucamente aos ouvidos: “calma, menina, um dia, quando já estiver crescida, você também vai poder escolher estar aqui”.

Podia? Hum... E qual dessas alternativas teria eu escolhido caso não fosse uma tentativa errante de ser aquilo que esperam de mim?

Andaria dia e noite sobre um fio de aço tremulante, calçada em sapatilhas de lantejoulas e collant dourado, segurando uma haste para me manter equilibrada? Ou aprenderia os truques para me deixar ser serrada viva por um charmoso mágico de cartola e bigode? Quem sabe não treinaria a arte de cavalgar dando piruetas, presa pela cintura com uma corda, vestida com um collant de plumas e luvas cor de rosa. Ou ainda – que de tudo, seria o mais difícil, apesar de parecer mais fácil – entregasse as armas, aceitasse minha absoluta inadequação, e reconhecendo meu poço fundo de imperfeições, me tornasse um palhaço?

Possibilidades épicas do mundo encantado que minha criança vislumbrava. Claro, a criança Maria desenhou um número de suspense, brilho, aplausos e risos como a visão do paraíso. Mas a vida obviamente cobrou uma outra direção: diploma, condomínio, luz, água, taxa disso, disso, daquilo, contratos, custo fixo, prazos. Donde concluo que me rendi. Meu plano circense deu errado.

Fio no que ouvi dizer: não existe riso sem dor – do mesmo jeito que não se faz samba sem alguma tristeza. Há sempre de haver alguma perda...

Perceba, a nobreza que há sobre o picadeiro também advém da perda daquilo que o sistema entendeu chamar de “tudo” – casa, carro, conta – por isso o artista que entrega a vida para o espetáculo nos deixa assim, tão perdidamente encantados (fazendo planos de virar o leme). Por que o olhar do artista não tem culpa, não tem ressentimento, não duvida – apesar de ter aberto mão de “tudo” ele acolheu seu lugar e isso eleva seu posto no mundo.

Em suma, viver a entrega a qualquer tipo de inquietação profunda e criativa, ou viver o próprio sonho – como dizem, sempre impele em perdas que se sublimarão em potência-luz-vida-big-bang-pisca-pisca.

Enfim, convivo com ímpetos indomáveis, mas na vida “ok” que domestico, dou meu jeito, levo como posso, rebolo, encontro novas saídas. Ainda assim, de tempos em tempos minhas resoluções me escorrem por entre os dedos e novamente, me perco.

Aí, meu chapa, quando isso coincide com o momento em que pousou no meu quintal o circo... Fica muito, muito mais difícil.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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