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Vida x liberdade: um falso dilema

Vida x liberdade: um falso dilema

A vida humana possui um valor intrínseco natural, de modo que a sua ausência implica na supressão de todos os demais direitos, via de regra, inclusive da liberdade

Publicado em 16 de dezembro de 2021 às 18:00

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Igor Awad Barcellos é sócio do Carlete Mourad Barcellos Advogados, professor da Faculdade Pio XII e mestre em Filosofia pela Ufes.
Igor Awad Barcellos é sócio do Carlete Mourad Barcellos Advogados, professor da Faculdade Pio XII e mestre em Filosofia pela Ufes. (OAB-ES/Divulgação)
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Questão muito intrigante que ocupa os nossos tribunais superiores atualmente, especialmente nos chamados hard cases envolvendo grandes dilemas morais, é uma suposta colisão entre a vida e a liberdade, dois bens jurídicos da mais alta estatura, que perpassam a nossa Constituição e alcançam até mesmo os tratados internacionais. Não digo apenas suposta colisão, mas já ouso afirmar tratar-se de um falso dilema.

A vida humana possui um valor intrínseco natural, de modo que a sua ausência implica na supressão de todos os demais direitos, via de regra, inclusive da liberdade. Não por outro motivo, encontra-se a vida sempre no topo dos bens jurídicos a serem tutelados.

Acerca da liberdade, é importante destacar que, atualmente, paira sobre a opinião pública (inclusive a jurídica) uma compreensão equivocada a seu respeito, o que parece ser a gênese do falso dilema sobre o qual nos debruçamos.

Em diversos setores da vida pública, há uma certa predileção (liberal) da liberdade em detrimento da vida. Essa afirmação se comprova quando nos deparamos com as posições convergentes de duas figuras públicas antagônicas a respeito do tema.

A primeira delas é a manifestação do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, na qual foi dito, textualmente, que a liberdade vale mais do que a nossa própria vida.

O leitor, provavelmente, está pensando que a citação acima carece de validade, uma vez que o entendimento do chefe da República Federativa do Brasil não teria qualificação jurídica suficiente à altura do debate em questão.

Quão grande não será a sua surpresa, leitor, ao se deparar com o fato de que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, cuja opinião possui qualificação jurídica inconteste, comunga da mesma cosmovisão. Disse o ministro Barroso em palestra proferida no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro: “Se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar a minha liberdade individual, você perde”.

De fato, a vida humana anda com seu prestígio muito abalado...

Voltemos ao tema em questão.

Diante de defesas tão enfáticas da liberdade feitas por autoridades tão importantes, a ponto de ela ser citada como mais valiosa que a própria vida, cabe perguntar: o que é a liberdade? Em que consiste esse bem tão precioso? Será mesmo que a liberdade pode se sobrepor ou mesmo se contrapor à vida?

O Direito tem algo muito importante a nos ensinar acerca desse tema. Insculpida no caput do artigo 5º da Constituição da República, a liberdade aparece também nos incisos do mesmo dispositivo, sempre acompanhada de outro bem jurídico que não só lhe complementa, mas que lhe confere sentido.

Assim temos: liberdade de locomoção; liberdade de expressão; liberdade de consciência; liberdade de crença, dentre tantas outras manifestações explícitas e implícitas. Tanto a locomoção, quanto a consciência, a expressão e a religiosidade – apenas para ficarmos nos exemplos mencionados – são todas elas, bens jurídicos.

Dessa forma, podemos sem dificuldade, visualizar que a liberdade é um direito muito peculiar: ela se plenifica plenificando outros direitos, outros bens jurídicos. Explico.

A religiosidade só se torna plena quando exercida com liberdade. O mesmo pode-se dizer sobre a expressão do pensamento: só há plenitude da expressão do pensamento se exercida de forma livre. Não diferente é o caso da locomoção, de modo que só pode locomover-se, plenamente, aquele que o faz com liberdade.

Assim, vemos que o bem jurídico liberdade se plenifica não em declarações abstratas, mas no exercício concreto de outros direitos, ou seja, na plenificação de outros bens jurídicos.

A partir dessas considerações, é-nos permitido apresentar o conceito desse direito fundamental: a liberdade é o meio de realização de outro bem jurídico.

A vida, por sua vez, se revela para nós, em rota oposta – mas não antagônica – da liberdade. Se esta se apresentou como meio de realização de outro bem jurídico, a vida, em sentido mais pleno, revela-se como fim, como a finalidade de todas as liberdades exercidas em conjunto: unidade perfeita e harmônica de todos os bens jurídicos expressos e implícitos em nossa Constituição.

Mais uma vez, para ficarmos em nossos exemplos, a expressão do pensamento, a locomoção e a religiosidade consistem em aspectos da vida, sendo esta, a unidade perfeita de todos esses (e tantos outros) bens jurídicos.

Com efeito, se a liberdade é o meio do exercício pleno dos direitos fundamentais e a vida, por sua vez, consiste na síntese perfeita desses mesmos direitos, nossa conclusão não pode ser outra senão a de que a liberdade consiste no meio de concretização da vida e a vida, por sua vez, consiste na finalidade a ser alcançada pela liberdade.

Prova de que o nosso sistema corrobora a tese aqui apresentada é o teor do dispositivo do artigo 146, §3º, II do Código Penal, que estabelece não ser crime de constrangimento ilegal a coação exercida para impedir o suicídio, ato extremo pelo qual se decide dar fim à própria vida.

Se a liberdade consistisse na simples liberação de cada um fazer o que bem entendesse, não seria lícito impedir que uma pessoa, no auge do seu desespero, ceifasse a própria vida. O suicídio é um claro exemplo de ato contrário não somente à vida, mas também à liberdade, já que esta, como vimos, consiste em meio de concretização daquela e não no meio de sua destruição.

Ao invés de sua plenitude, o suicídio revela-se como um verdadeiro desvio de finalidade da liberdade, o que não é amparado pelo Direito, seja na esfera cível, por meio do artigo 187 do Código Civil que traz o desvio de finalidade na figura do abuso de direito como ato ilícito; seja na esfera penal, como acabamos de demonstrar no caso do artigo 146, §3º, II do Diploma Repressivo, seja mesmo na esfera constitucional por meio da interpretação teleológica, instrumento que, aliás, nos auxiliou no esclarecimento da essência da liberdade como um bem jurídico especial, meio de concretização de todos os outros bens, ou seja, meio de realização da própria vida.

Nesse sentido, é imperiosa a conclusão de que qualquer ato que, em nome da liberdade, atente contra a vida, em verdade se revela como uma falsa liberdade e, por isso, não possui e nem merece amparo do Direito.

Não existe liberdade para ceifar a vida, nem a própria e nem a alheia.

Portanto, qualquer interpretação que as contraponha - “vida versus liberdade” - apenas produz muita confusão e instabilidade à ordem, movimentando toda a sociedade brasileira em torno de um falso dilema.

Autor do artigo: Igor Awad Barcellos

É sócio do Carlete Mourad Barcellos Advogados, professor da Faculdade Pio XII e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

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