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Polarização política gera sofrimento e afeta a saúde mental, diz psicóloga

Polarização política gera sofrimento e afeta a saúde mental, diz psicóloga

Integrante do Conselho Federal de Psicologia e psicóloga clínica, Rosane Müller Granzotto esteve no Espírito Santo para participar de palestra sobre "sofrimento político"

Publicado em 14 de junho de 2019 às 01:53

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Rosane Müller Granzotto é psicóloga clínica. (Carlos Alberto Silva)

Brigas entre amigos, discussões em grupos de família, ofensas por parte até mesmo de desconhecidos. A polarização política, que tem como centro divisor a disputa ideológica entre eleitores de Lula (PT) e do presidente Jair Bolsonaro (PSL), teve seu pico no período eleitoral de 2018, mas permanece viva desde as conversas de bar até as redes sociais. Embora discutir política seja algo importante e inclusive necessário para o desenvolvimento do país, a radicalização dos discursos pode ter consequências inversas. Entre elas está o sofrimento psicológico.

É o que aponta a conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e psicóloga clínica, Rosane Müller Granzotto. Ela esteve no Espírito Santo nesta quinta-feira (13) para uma palestra a psicólogos, com o tema "A Clínica Contemporânea e o Sofrimento Político".

A presença de Rosane no Estado é fruto de uma demanda dos próprios psicólogos que aqui atuam, que relatam que os casos de sofrimento psicológico em função de discriminações e de opressões que vêm chegando aos consultórios têm cada vez mais como pano de fundo o contexto político.

Em entrevista ao Gazeta Online, Rosane afirma que para além dos transtornos gerados pelos conflitos em si, as mudanças na condução das políticas públicas também afetam a saúde mental das pessoas, que em certos casos não conseguem lidar com as consequências que isso pode gerar em suas próprias vidas. Veja a entrevista completa:

No contexto político que vivemos, essa situação de polarização, criada desde o período pré-eleitoral, contribui de alguma forma para esse sofrimento?

Rosane Müller Granzotto - Não deixa de ser uma experiência de convívio com diferenças, onde, de repente, um grupo tem mais poder do que o outro. Mas como isso é feito? O que a gente viu acontecendo nesse período? Vimos um lado falando mal do outro, se a pessoa usava a camiseta de um determinado candidato, ela era ofendida, xingada nas ruas, e até sofria agressões físicas. Vimos muitos casos assim acontecerem em função dessa polarização excessiva. E é claro que isso traz sofrimento. Não só a polarização em si, mas também as consequências da implantação dessa nova forma de governo, que restringe direitos, possibilidades que a pessoa tinha de estudar, que restringe as escolhas que ela fez na vida, sejam elas sexuais ou de outra natureza.

Eu ouvi muitas coisas no consultório do ano passado para cá. Por exemplo, o caso de uma jovem de 18 anos, que faz Ciências Sociais. Ela vive o que uma garota de 18 anos vive hoje. Pinta o cabelo de azul, usa piercing, se relaciona de formas abertas. E ela começou a ter medo de abrir essas coisas para os colegas de faculdade. De se mostrar. Ela começou a ter medo de ser discriminada, agredida, xingada por alguns colegas que pensam de forma diferente da dela. Essa mesma jovem outro dia levou uma outra coisa, mas que também tem a ver com isso. Era o fato de que ela poderá ficar sem emprego quando terminar a faculdade, pois disciplinas como Sociologia poderão ser eliminadas dos currículos e ela teria que mudar de curso. Esse não dá mais condições para ela ter uma profissão.

Já relatamos em reportagens brigas que as pessoas tiveram em função da política, de pensamentos divergentes. A senhora observa isso?

Com certeza. Você acabou de descrever rupturas de relacionamentos familiares, de amizades por conta do acirramento dessas diferenças. É muito difícil lidar com a diferença. Nós precisamos nos educar para aceitá-las. A forma como fomos criados, o sistema todo, existe para não aceitarmos a diferença. Há um filósofo oriental que fala que nós vivemos num momento em que sempre temos que ser os melhores, bem-sucedidos, elegantes, saudáveis e temos que eliminar a diferença, nos encaixarmos em um padrão. Vemos nessas brigas, nessas posições mais radicais, um rechaço às diferenças, às escolhas que a pessoa pode fazer e que se diferem das demais.

O que esse tipo de conflito, de acirramento pode causar? Quais os sintomas ou consequências?

Estatisticamente, no mundo inteiro, a depressão tem aumentado de forma alarmante e também o índice de suicídios. A consequência mais evidente que percebemos em função dessa forma de vida que temos hoje, que é o excesso de trabalho, falta de tempo, uma tensão constante, e aí entram esses conflitos também. É um sentimento de fracasso. Essas são as questões mais alarmantes.

Mas as consequências não estão só nessa coisa de diferença de opinião. Isso tem um reflexo no trabalho, na vida profissional das pessoas, na dificuldade que elas têm de manter o filho na escola. O que tu pensas que teremos daqui a alguns anos em decorrência da reforma da Previdência?

O sofrimento, então, também pode surgir por essas mudanças na condução da política?

É que a vida muda, não é? Muda tudo. A implantação de mudanças nas políticas públicas, de mudanças econômicas atinge todo mundo. E a pessoa tem que se reequilibrar. Se ela não conseguir, ela vai sofrer. O ser humano tem capacidade grande de superação, mas podemos atingir um limite. E quando isso é muito repetitivo e a pessoa fica naquela angústia, ela adoece.

Existe alguma faixa etária que seja mais suscetível a essa polarização política?

O jovem. Eu acho que o jovem é um alvo muito vulnerável porque ele ainda está em formação, está no início da vida profissional, ele precisa trabalhar, cumprir com obrigações e o jovem tem muita potência. A gente vê que quando há manifestações, as pessoas mais jovens são as mais aguerridas. Eles se expõem mais e por isso também apanham mais.

Mas existe uma saída para isso? Como tratar?

É complicado. Primeiro porque existe algo aí que é real, existe uma ameaça real a essas pessoas (que se sentem oprimidas, vítimas de discriminação). E temos que ter muito cuidado ao trabalhar isso, pois existem riscos. Agora está um pouco mais leve, mas houve um momento, durante as eleições, que foi terrível. Tenho um colega psicólogo que estava numa parada gay, foi a um banheiro químico e eles o trancaram e viraram o negócio com ele lá dentro. É muita agressão. Isso é uma intolerância. Então, eu acho que a pessoa tem que se proteger um pouco nesse momento, tem que estar alerta para não se expor onde pode ser agredida.

E socialmente falando?

Eu acho que tem a ver com desenvolver valores humanos de solidariedade, de respeito à diferença, de saber ouvir. Não é preciso convencer o outro a pensar como você. Mas isso tem a ver com família, educação, todo um sistema que deve ser trabalhado para que se dilua essa animosidade. Esse ódio foi plantado, alimentado. A questão central é o conflito entre o desejo de um e o desejo do outro, que às vezes tem muito mais poder.

Acho que trabalhar, se juntar, ter grupos, comunidades, parceiros, fortalecem as ideias, os comportamentos. É impressionante, pois quando vemos uma catástrofe, como a de Brumadinho, há um movimento de solidariedade enorme e super bonito. Então sabemos que nós brasileiros temos isso, essa capacidade de ajudar o outro. Mas, por outro lado, vemos coisas tão cruéis sendo feitas. Como foi o caso do meu amigo, ou de pessoas que foram espancadas, mortas por conflitos políticos. Acho que nunca haverá uma solução total.

As redes sociais têm impacto nesse processo?

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As redes sociais são disseminadoras de ódio, tentam manipular as opiniões. A rede social é um grande campo de batalhas de sentimentos, não é nem de ideias. É manipulação de afetos, de paixões.

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