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'Sistema prisional brasileiro passa por crise, e não temos solução'

"Sistema prisional brasileiro passa por crise, e não temos solução"

Coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima alerta que a superlotação nos presídios alimenta as facções criminosas

Publicado em 3 de fevereiro de 2019 às 01:11

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Coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. (Divulgação)

A guerra do tráfico de drogas, com vinganças e disputas por territórios na Grande Vitória, marcaram com sangue o primeiro mês do ano. Intimamente ligada a essa questão está a superlotação dos presídios, classificado pelo próprio governador do Estado como “bomba-relógio”. “Quando se tem situações de superlotação, os próprios presos têm que administrar suas vidas e, nesses casos, vale a lei do mais forte”, afirma o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

Na entrevista a seguir o especialista fala sobre a origem e as maneiras de se combater as facções criminosas. “Tem tratamento para esse problema. O Estado como um todo precisa demonstrar que quem manda é ele”.

Lima ainda ressalta a importância de integração entre os governos federal, estadual e municipal para ações coordenadas. “Separadamente, todos trabalham muito, mas cada um faz aquilo que acha certo e acaba gerando ruídos muito grandes e, quem está de fora, acha que não está acontecendo nada”, diz.

O presidente do Fórum ainda faz um balanço do primeiro mês de governo do presidente Jair Bolsonaro no campo da Segurança Pública.

Do ponto de vista da Segurança Pública, como foi o primeiro mês do governo Bolsonaro? Muito diferente dos demais?

De modo geral, percebemos que o governo federal tem agido a partir de uma lógica que nada tem de inovadora. Há mais ou menos cinco ou seis anos, nós temos visto no país a repetição de crises prisionais toda primeira semana do ano. Aconteceu em Pedrinhas, Manaus, Goiás. Sabíamos que aconteceria algo como o que aconteceu no Ceará. Ou seja, isso deveria ter sido pensado na transição e não foi. Em entrevista antes de assumir, Bolsonaro disse que esperava que o Nordeste não precisasse dele e, em um primeiro momento, o Ministério da Justiça teve uma certa resistência a dar o apoio. O tamanho da crise mostrou que não tinha como não fazer nada, e o que foi feito foi mais do mesmo: enviar a Força Nacional e abrir vagas federais.

Outro ponto importante do primeiro mês foi também a assinatura do decreto das armas. Como o senhor viu essa medida?

O decreto das armas foi pensado simplesmente como cumprimento de uma promessa eleitoral e não na lógica da segurança pública. O governo federal não tem sistema integrado de rastreamento de armas, o decreto não fala nada sobre protocolos de rastreamento, então vai sobrecarregar os Estados. Para a Segurança Pública o decreto deve piorar bastante o cenário. A lei tem outra questão fundamental: os critérios foram abrangentes demais. A taxa média de homicídios no Brasil é de 30 por 100 mil habitantes. Colocando como critério as cidades com mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, ele permitiu que praticamente todo mundo tivesse acesso. É um critério objetivo, mas ele é liberalizante demais, é quase como se não existisse.

Na recomposição dos ministérios, a pasta da Segurança Pública acabou sendo fundida com a da Justiça. Como avalia esse ”superministério”?

A gestão do Ministério da Justiça e Segurança Pública é de gente bastante qualificada, são profissionais com experiência no sistema de Justiça, muito bem formados, mas são quase uma só voz. Ou eles são delegados da Polícia Federal, ou são integrantes das Forças Armadas. O governo não incluiu nos quadros a Polícia Militar e a Polícia Civil em número suficiente que permita uma pactuação federativa suficiente. Isso gerou um fato novo: eles perceberam que precisam fazer uma agenda paralela sem, no entanto, rivalizar com o governo. No Ceará, a federação dos oficiais da PM viabilizou a ida de oficiais de inteligência de outros Estados para ajudar a PM do Ceará a debelar a crise. Isso passou à margem do governo federal. A mesma coisa aconteceu em Brumadinho. O Corpo de Bombeiros de Minas acionou diretamente o Corpo de Bombeiros de outros Estados, em uma cooperação federativa sem liderança da União. Em geral, quem fazia esse papel de articulação sempre foi o governo federal.

A crise no Ceará novamente nos lembrou da fragilidade do sistema prisional brasileiro. Como o senhor define a situação atua?

Atualmente o sistema prisional é a soma dos nossos erros e das nossas omissões. O sistema prisional brasileiro passa por uma crise gigante e que não temos solução aparente. O Depen (Departamento Penitenciário Nacional) não produz estatística desde 2017. Não há uma cooperação republicana, com os diferentes poderes, Ministério Público e polícias. Separadamente, todos trabalham muito, mas cada um faz aquilo que acha certo e acaba gerando ruídos muito grandes e achando que não está acontecendo nada.

Qual a situação do Espírito Santo?

O Espírito Santo era um dos Estados mais violentos do país nos anos 90 e investiu pesadamente para deixar essa posição. Mas, se olharmos hoje, há muitos anos o Estado não cria vagas no sistema prisional. Está alimentando uma bomba-relógio e, para que a situação não fuja do controle, é preciso atuar. A superlotação no sistema prisional capixaba é muito grande.

Quais as consequência de concentrar esses erros e omissões do Estado em um local fechado como uma prisão?

Aí sim você alimenta as facções. Aí sim é quase como uma promessa auto-realizada: você fala das facções e cria as facções. Quando se tem situações de superlotação, os próprios presos têm que administrar suas vidas e, nesses casos, vale a lei do mais forte. Se o Estado não consegue implementar o que está previsto na Lei de Execuções Penais, ou seja, fazer com que o apenado cumpra sua pena e tenha sua integridade fisica garantida, quem vai dar essa garantia são as facções. O grande desafio é que, hoje no Brasil, os presídios viraram depósitos de gente.

Quais são as soluções possíveis para a superlotação?

O ministro Sérgio Moro tem sugerido a questão da barganha. Acho que é perigosíssima porque foge da tradição do Direito brasileiro. Um efeito do ‘plead bargain’ é o aumento da população prisional. Em um acordo para não ter penas maiores, você vai barganhar uma pena menor, e isso vai lotar ainda mais as prisões. Acho que poderíamos começar a olhar para a experiência dos agentes de condicional, um pouco como já acontece com a liberdade assistida dos adolescentes. Ou seja, você cria uma parceria entre Judiciário, Executivo e Ministério Público, para criar um programa de condicional. O condenado cumpre a medida alternativa à prisão mas a gente vai verificar que ele está cumprindo. Hoje as pessoas têm uma resistência muito grande com relação às penas alternativas porque entendem que é o equivalente à impunidade. Temos que garantir que não seja. Se conseguimos criar estruturas para monitorar os apenados cumprindo medidas que não sejam a de prisão, a gente pode começar a deixar a prisão para quem realmente precisa estar preso. Hoje a gente lota prisão com flagrante. E fica tipo uma porta giratória, entra e sai, e acaba alimentando as dinâmicas de violência.

Como os Estados podem resolver o problema das facções criminosas, que prosperam nesse ambiente de superlotação nos presídios?

Tem tratamento para esse problema. O Estado como um todo precisa demonstrar que quem manda é ele. É preciso pensar soluções para o sistema prisional de curto, médio e longo prazo. Em curto prazo é preciso estancar a comunicação e a rota de corrupção e chantagem dos profissionais que cuidam dos presídios. Em médio prazo, é preciso pensar em saídas para a explosão prisional, ir atrás do dinheiro das facções, bloquear contas, fazer com que os bancos tenham mais ação nesse sentido. Também é importante criar unidades de inteligência para ver como o dinheiro está sendo lavado – que é diferente em cada local. Isso não é impossível se houver valorização das polícias. No longo prazo, é inevitável a construção de mais unidades prisionais. O essencial é que todas essas frentes sejam atacadas ao mesmo tempo. Com isso, com certeza o controle será retomado.

Ano passado , o presidente Michel Temer sancionou a lei que institui o Susp, que ficou conhecido como o SUS da Segurança. Com o novo presidente, como deve ficar essa iniciativa?

A gente ainda não ouviu o Ministério da Justiça falar sobre o Susp. Uma característica desses primeiros dias é que o ministro Sérgio Moro e sua equipe fizeram um mergulho na máquina e não deram declarações sobre o que pretendem. O que se sabe hoje é que o ministro vai tratar mais da agenda ligada à corrupção e federal, e os militares que assessoram ele, vão tratar da agenda mais relacionada ao policiamento nos Estados.

O Fórum teme que, com as restrições de informação governamentais, o Anuário de Segurança Pública seja prejudicado?

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