Publicado em 8 de fevereiro de 2020 às 09:42
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O grupo musical é uma das faces do movimento armorial, criado por Ariano Suassuna em 1970 e que pretendia fazer uma arte erudita a partir da cultura popular. Já "O Sedutor do Sertão" é um romance inédito do autor, escrito em 1966 como roteiro para um filme nunca produzido mas que agora ganha a forma de livro, que chega às livrarias na próxima semana.>
O casamento quase perfeito entre texto e melodia não é acaso ou mera captação de um espírito da época. Ao contrário. É um movimento consciente de Suassuna, que encarava sua produção artística como algo mais coeso do que um amontoado de coisas. >
Embora cada publicação (e, aí, levando em conta romances, poemas, peças e até pinturas) possa ser vista de maneira independente, elas formam partes de um mesmo quebra-cabeça ou, na definição do autor, de uma "ilumiara".>
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Essa unidade que forma uma certa obra total foi sendo lapidada ao longo das décadas por Suassuna, conhecido por ajustar e reescrever constantemente seus textos. Não à toa, na edição de 2004 de "A Pedra do Reino", por exemplo, ele acrescentou João Grilo e Chicó na narrativa, personagens mais do que célebres de "Auto da Compadecida".>
O esforço teve um de seus ápices em 2013, um ano antes de sua morte. Na época, o artista paraibano tinha sofrido um infarto agudo do miocárdio e reuniu em sua casa o filho Manuel Dantas Suassuna e o professor da Universidade Federal de Pernambuco Carlos Newton Junior.>
"Foi duro. Ele passou a manhã inteira nos preparando sobre como conduzir a obra dele depois que morresse", lembra Manuel. >
Suassuna queria que toda a produção fosse reunida em uma única editora, com o mesmo projeto gráfico. "Para que não fosse lançado só o que já era sucesso de crítica, mas também os inéditos e os esgotados", conta Junior.>
É nesse contexto que a Nova Fronteira republicou "Romance d'A Pedra do Reino", considerada sua obra-prima. Em 2018, foi a vez de "Teatro Completo", com 1.890 páginas e 12 textos inéditos.>
É desse desdobramento também que chega às livrarias o romance "O Sedutor do Sertão ou o Grande Golpe da Mulher e da Malvada". Escrito em 1966, enquanto produzia "A Pedra do Reino", ele não é só a base de um roteiro cinematográfico nunca rodado.>
A história traz Malaquias Pavão, ao mesmo tempo herói e um sedutor quase mau-caráter, que surge em "A Pedra do Reino" como Malaquias Nicolau Pavão Quaderna, um dos irmãos do narrador. >
Como se passa anos antes dos fatos de "A Pedra", o novo romance pode ser visto como um prelúdio da famosa trama ou outra das peças que formam a "ilumiara" do autor.>
Recheado do humor de Suassuna, a edição de "O Sedutor do Sertão" é costurada por cerca de 50 ilustrações feitas por Manuel Dantas Suassuna. "Fiz tudo em quatro dias", diz.>
Segundo o filho do artista, ele partiu das ideias do movimento armorial e das xilogravuras de Gilvan Samico, artista morto em 2013, para produzir os desenhos pincelados a nanquim. "Não tenho mais tempo de fazer matriz de xilogravura", brinca.>
"Conversava muito com papai sobre o que seria uma pintura brasileira. Então peguei a xilogravura, a pintura rupestre, o grafismo africano e juntei com os ferros do movimento armorial", completa.>
Se "O Sedutor" é uma peça do quebra-cabeça de Suassuna, ela não forma somente a obra total do autor também ajuda a dar contornos à trajetória familiar do artista e até à história do Brasil. >
O romance tem como pano de fundo o ano de 1930 na Paraíba, quando sertanejos se revoltaram contra o governador, João Pessoa instabilidade política que acabaria com o assassinato do político e o golpe que levou Getúlio Vargas à Presidência.>
Pois o pai de Ariano e avô de Manuel, João Suassuna, havia sido governador da Paraíba anos antes e era adversário político de João Pessoa. Ao descobrirem que o assassino de Pessoa era João Dantas, primo da mulher de João Suassuna, o pai de Ariano se tornou suspeito de ter sido cúmplice do crime e foi morto a tiros três meses depois.>
Ariano tinha três anos na época. Por isso, nunca chamou a capital paraibana de João Pessoa, por exemplo, nome que a cidade recebeu após a morte do ex-governador. >
O impacto familiar fez ainda com que esse caldo político de 1930 aparecesse aqui e ali na "ilumiara" de Suassuna. A ponto de ele dizer que abandonou a ideia de transformar "A Pedra do Reino" em uma trilogia porque já não conseguia se distanciar do narrador, Pedro Dinis Quaderna, principalmente em relação aos fatos da Revolução de 1930.>
"Era uma briga política que se tornou pessoal", diz Manuel, que planeja lançar um livro sobre 1930 com histórias da família e uma carta do avô escrita na época, na qual ele nega que tenha participação na morte de João Pessoa.>
Enquanto o título não sai, a obra de Suassuna dá um tratamento ficcional para o caso. >
Para o segundo semestre, está previsto o lançamento da poesia completa do autor. "Ele surgiu como poeta na década de 1940, mas seus poemas foram pouco conhecidos", conta o professor Carlos Newton Junior, que hoje faz a organização dos escritos e da biblioteca do artista.>
Além da poesia, será publicado no ano que vem outro romance inédito: "As Infâncias de Quaderna", que já havia saído em fascículos no Diário de Pernambuco, mas nunca foi reunido em uma edição. >
"Que eu saiba, existe só mais um romance inédito, mas incompleto: 'A Guerra de Doze'. Mas nunca encontrei", afirma Junior.>
Além das novas edições, o autor também inspirou o recém-criado Instituto Ariano Suassuna, que pretende promover estudos, publicar livros, digitalizar o acervo, organizar mostras e abrir a casa dele, no Recife, para visitação.>
"É uma maneira de ficar perto depois do 'encantamento' dele", fala Manuel, que não diz que o pai morreu. "É como dizia o Guimarães Rosa: a pessoa não morre, se encanta.">
Ou como o próprio Suassuna disse certa vez: a arte é uma espécie de protesto contra a morte. Se for isso mesmo, a sua "ilumiara" é um protesto que segue vivo.>
O SEDUTOR DO SERTÃO OU O GRANDE GOLPE DA MULHER E DA MALVADA>
Preço: R$ 49,90 (248 págs.)>
Autor: Ariano Suassuna>
Editora: Nova Fronteira>
Ilustrador: Manuel Dantas Suassuna>
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