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De Castelo para o mundo, Natércia Lopes é a diva da ópera capixaba

De Castelo para o mundo, Natércia Lopes é a diva da ópera capixaba

Cantora lírica fala da vida, carreira, família e momentos da infância em Castelo, interior do Espírito Santo

Publicado em 3 de novembro de 2019 às 09:00

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A cantora lírica Natércia lopes em sua casa. Ela nos mostrou seu piano, objetos pessoais e fotos antigas . (Carlos Alberto Silva)

Em “Encontro com Vênus” (1991), o mestre húngaro Istvan Szabo nos mostrava as dores e as delícias de ser Karin Anderson – vivida com maestria por Glenn Close -, uma cantora lírica de inegável talento, mas de um perfeccionismo e um gênio que, às vezes, causava espanto por seu comportamento, digamos, espevitado.

Pois bem, naquela ensolarada segunda-feira de 28 de outubro, esperava ter o meu “encontro com vênus”. Afinal, iria passar momentos deliciosos com Natércia Lopes, símbolo da música clássica no Espírito Santo e personagem da vez da série “Somos Capixabas”.

Lógico que, nem sempre, a vida imita a arte... mas, espera? O que a artista castelense, com mais de 60 anos de uma consagrada carreira de prêmios e apresentações notáveis, tem em comum com a ficcional Karin Anderson? Quase tudo. O mesmo talento, gênio e perfeccionismo, por exemplo. Natércia, porém, tem um “plus”: é bem-humorada, um tanto ácida e desbocada, pois diz o que pensa na hora que quer e como quer. E esse é o seu charme.

“Uma vez me sondaram para ser candidata ao governo do Espírito Santo. Disseram que, como sou uma pessoa pública, venceria fácil”, suspira, sem falsa modéstia, sendo prática logo a seguir.

“Nunca seria política! Não sei mentir, roubar e nem enganar o povo”, dispara, meio que sem pensar. Minutos depois, retruca: “Está vendo por que sou chamada de louca por muita gente?”, brinca, dando uma deliciosa gargalhada.

Assim, sem papas na língua (da Diva, claro!), a conversa rolou deliciosamente em seu elegante apartamento, no Centro de Vitória. Natércia Lopes passa os dias de folga (atualmente está trabalhando como diretora artística do 7º Festival de Música Erudita, que acontece em Vitória a partir de 8 de novembro) em um “paraíso”, rodeada por seus cristais, vasos chineses, quadros afetuosos, um charmoso piano Steck, o simpático cãozinho Chopp, e o filho João Manuel, sua maior conquista.

“O João foi a minha realização como mulher. Como cantora, sempre tentei mesclar uma visão artística com a questão humanística”, filosofa, desabafando. “Se não fosse a música e o piano já estaria deprimida ou até morta. Não suportaria as dores e dificuldades da vida. Acho que sou uma louca lúcida”.

CASTELO

Natércia Lopes, cantora lírica. (Carlos Alberto Silva)

Filha de um pastor e uma professora primária, Natércia desenvolveu a paixão pela música desde criança. Aos cinco anos, começou com as aulas de piano. Além disso, estudava canto e tocava acordeom. “Minha mãe era apaixonada por arte, mas muito autoritária e rígida. Sempre dizia: não se iluda, quanto mais palmas receber, mais vezes precisa ensaiar e aprender”, relembra.

A primeira apresentação foi ainda menina, em um cinema de Castelo. “Sentei em frente ao aparelho, coloquei a mão no rosto e comecei a chorar. Minha mãe olhou rispidamente e a professora veio me acalmar. Minutos depois, toquei (mesmo com medo) e recebi muitos aplausos. Foi uma sensação de êxtase”, extravasa.

Na década de 1960, já adolescente em Vitória, começou a aprender o instrumento com Áurea Adnet, professora muito conceituada entre os músicos. “Também estudava canto e fiz as minhas primeiras aparições como profissional. Na verdade, fui a artista que minha mãe sempre sonhou ser”, rememora, dizendo uma tirada de Dona Cornélia (a matriarca) que ficou em seu baú de lembranças. “Estou lhe educando para a arte e para a vida. Se você não casar, vai se sustentar. E se o casamento der errado, não vai precisar viver de pensão de ex-marido”, brinca, hoje viúva.

EXPRESSÃO

Natércia Lopes, cantora lírica. (Carlos Alberto Silva)

Natércia se formou em História na Ufes. Além disso, estudou canto na Universidade Federal do Rio de Janeiro. De talento inegável, nos anos 1980 ganhou uma bolsa para aperfeiçoar sua técnica vocal na Itália, onde estudou no conceituado Teatro Alla Scala, em Milão, com gênios como Romano Gandolfi, Carlo Camerini e Otello Borgonovo.

“Foram os melhores momentos da minha vida. De lá, fiz apresentações na França, Portugal e Polônia”, conta, fazendo questão de também falar dos bastidores. “Nunca fui uma mulher vaidosa, mas era muito assediada na Europa. Os galanteios eram uma delícia, mas, quase sempre, dizia não”, despista, afirmando que a beleza é o atributo que menos lhe atrai em um homem.

“Tenho tesão pela inteligência e bom humor. A maioria dos homens não têm isso”, fala, colocando o dedo na ferida masculina, para depois confessar que já recebeu uma proposta de um fã para terminar uma ópera em um motel.

Apresentações memoráveis, foram várias, como a ópera “Dido e Enéias”, sob batuta do maestro inglês Harry Light, no Theatro Municipal de São Paulo, ou mesmo “A Viúva Alegre”, montagem encenada no Theatro Carlos Gomes, com regência de Sérgio Magnani e Helder Trefzger.

A inesquecível, porém, foi uma das mais simples. "Certa vez, fiz uma apresentação de ‘La Boheme’, de Giacomo Puccini, no Carlos Gomes, somente para prostitutas e mendigos na plateia. Muito doente, a Mimi (minha personagem) quase morre em uma cena. Na frente do palco, alguém gritou: ‘Pelo amor de Deus, não deixem a Natércia morrer!’. Foi a glória para mim”, suspira, alertando que a música clássica precisa deixar de pensar na erudição do público e tentar ser mais popular, aproximando-se das massas.

EDUCAÇÃO

Natércia Lopes, pianista e cantora lírica. (Carlos Alberto Silva)

Amante de Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e Maria Callas, Natércia Lopes defende aulas de educação musical nas escolas, de preferência na grade curricular do ensino fundamental. “Temos políticos que não desejam o senso crítico da população. Não querem que desenvolvamos formadores de opinião para não serem cobrados por seus erros”, aponta, dizendo que viver de arte no Brasil é sinônimo de luta e resistência.

“Me chamam de desbocada, mas não tem como não ser assim em um país onde não respeitam o artista. Falta instrumentos para uma orquestra, o público é esquecido e a Política Cultural nunca alavancou. Acho que esse é o meu papel: criticar, falar e até xingar, pedindo justiça”, brada, com emoção, a mulher que também já foi coordenadora de música da UFES e, por duas vezes, diretora da FAMES. “Não podemos viver só de Viradão (Cultural), Carnaval, Vital e funk”, critica.

A cantora lírica (que está ensaiando com Jeremias Reis para o próximo “Natal de Encantos”, em dezembro, na Praça do Papa) afirma que para ser um bom cantor não precisa apenas ter uma boa voz. “Roberto Carlos, por exemplo, é um ótimo intérprete por conta da emoção que consegue transmitir no palco, por sua sensibilidade. Ter ou não uma boa voz não faz diferença nenhuma para ele”.

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Após o fim da conversa, uma pergunta ainda ficou no ar: Por que, na infância em Castelo, era conhecida como “Natércia: A Única”, pois sempre ressaltou que a vaidade nunca foi um de seus maiores pecados? “Não tem nada disso, querido”, responde, carinhosamente. “Ser única não é por conta do talento, mas sim porque sou a ÚNICA mulher dos quatro filhos de meu pai”, finalmente revela o mistério, para depois soltar outra deliciosa gargalhada.

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