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Artistas e pesquisadores do ES escolhem o hino da quarentena

Artistas e pesquisadores do ES escolhem o hino da quarentena

Durante a pandemia, brasileiros têm redescoberto clássicos que se encaixam à perfeição com o atual momento, traduzindo o misto de sentimentos destes dias, como saudade e angústia, mas também de luta e resistência

Publicado em 12 de julho de 2020 às 15:00

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Amaro Lima, André Prando, Gabriela Brown
Amaro Lima, André Prando, Gabriela Brown elegeram músicas das décadas de 1970 e 1980 para compor a lista de hinos . (Montagem/Reprodução/Instagram)

Em uma das 14 definições de “clássico” formuladas por Italo Calvino no famoso ensaio “Por que ler o clássicos”, o escritor italiano aponta que é uma obra que “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Assim, pelo poder investido na arte, cada releitura de um livro, cada nova audição de uma música, guarda uma surpresa e muito espaço para outras interpretações.

Nestes tempos de pandemia, os brasileiros têm redescoberto canções antigas que, como clássicos que são, se encaixam à perfeição com o atual momento. Elas têm ajudado a traduzir o misto de sentimentos destes dias, como saudade, angústia e incerteza, mas também luta e resistência.

É o caso de “Menina, Amanhã de Manhã”, de Tom Zé, que embalou o episódio “Leveza”, em maio, do programa “Greg News”, comandado pelo humorista Gregório Duvivier na HBO Brasil. Lançada em 1972, em pleno governo Médici, a música originalmente denunciava a opressão da ditadura militar no país.

Agora, versos como “Menina, amanhã de manhã/ Quando a gente acordar/ Quero te dizer que a felicidade vai/ Desabar sobre os homens, vai” têm sua força restaurada. Assim como o “amanhã vai ser outro dia”, do marco da canção de protesto “Apesar de Você” (1970), de Chico Buarque, que virou até mote de propaganda de self-service em Jardim da Penha, Vitória.

Os exemplos de clássicos que ganharam novo verniz nestes últimos meses são abundantes. Por isso, o Divirta-se ouviu artistas e pesquisadores do Espírito Santo para saber qual é, na opinião deles, o hino da quarentena. Na trilha sonora montada por eles, o baú de pérolas do cancioneiro nacional mistura-se a faixas atuais, produzidas durante o período de isolamento.

O jornalista e escritor José Roberto Santos Neves, autor de livros como “A MPB de Conversa em Conversa” (2007) e “Crônicas Musicais e Recortes de Jornal” (2015), também resgatou da década de 1970 uma faixa que tem muito a dizer sobre estes novos tempos: “O Dia em que a Terra Parou”, de Raul Seixas e Claudio Roberto, lançada precisamente em 1977.

Na faixa, o Maluco Beleza descreve um sonho em que “todas as pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa, como que se fosse combinado em todo o planeta”. Empregado e patrão, dona de casa e padeiro, guarda e ladrão, professor e aluno, ninguém pôs os pés na rua.

“Mais de 40 anos depois, esse clássico de Raulzito ganha tintas premonitórias ao narrar um hipotético cenário da humanidade que, de fato, ocorreu – ou pelo menos deveria ter ocorrido não fossem os negacionistas – devido ao impacto da pandemia do coronavírus”, comenta Santos Neves.

Jornalista, escritor e músico José Roberto Santos Neves
José Roberto Santos Neves elege canções de Raul Seixas por retratarem bem o cenário atual. (Guilherme Santos Neves Neto)

Da mesmo ano da música de Tom Zé, a cantora Gabriela Brown garimpa não uma faixa, mas um álbum inteiro que, em sua opinião, estabelece um novo diálogo com estes dias de pandemia. Trata-se de “Acabou Chorare” dos Novos Baianos, disco repleto de clássicos e que, não à toa, é considerado pela crítica um dos mais emblemáticos do cancioneiro nacional. A dica da artista funciona também como uma homenagem a Moraes Moreira, um dos integrantes, que faleceu em abril deste ano de infarto.

A mistura de rock, samba, MPB e baião que saiu da usina do grupo foi um sopro de transgressão e alegria em pleno regime militar e exprimia, com alto-astral, que outro Brasil era possível. Em meio ao desassossego causado pelo novo coronavírus, o disco continua sendo um oásis musical.

“É trilha sonora da quarentena, para mim, pelo valor artístico e histórico que carrega, pelo tempero brasileiro e pela calmaria. Ninguém pode sair de casa agora, o país está um caos, é notícia horrível todo dia. ‘Acabou Chorare’ mostra como a música salva”, avalia Gabriela, que lançou seu álbum de estreia, “Zeugma”, no ano passado, também uma obra que, na esteira do caminho aberto pelos Novos Baianos, é um caldeirão de estéticas e referências.

ROCK

Saltemos agora da MPB dos anos 1970 para o rock brasuca dos anos 1980 e 1990. É desse período que Amaro Lima resgata duas pepitas: “Perplexo” (Não penso mais no futuro/ É tudo imprevisível/ Posso morrer de vergonha/ Mas eu ainda estou vivo), dos Paralamas do Sucesso, que migra com exatidão do cenário de inflação galopante do governo Sarney para o atual panorama de doença desenfreada; e “O Teatro dos Vampiros” (Vamos sair mas não temos mais dinheiro/ Os meus amigos todos estão procurando emprego), do álbum “V”, da Legião Urbana.

“Letras de protesto, no Brasil, nunca ficam datadas. Quando têm cunho político, então, elas mantêm a pertinência mesmo 30, 40 anos depois, porque a situação está sempre nessa turbulência”, avalia o cantor, que viu uma de suas próprias músicas, “Dia Clarinho”, de seu segundo disco de carreira, “Moborama” (2009), também ganhar o posto de hino da quarentena.

O alerta veio de um amigo do músico. “Ele mandou um recado para agradecer, disse que a música conforta. Achei tão bacana que resolvi disponibilizar a faixa, que não estava em nenhuma plataforma digital, no YouTube”, conta. A canção, que traz versos como “preciso dormir para sonhar/ preciso do amor pra recomeçar/ preciso ter calma e fé na mente/ preciso ter alma pra seguir em frente”, chega aos serviços de streaming no próximo dia 24.

Há quem resgate músicas pelo conforto, há quem se conecte com o clima de decepção, infelizmente presente nestes dias. É o caso de Tamy, que também recorreu ao rock nacional. Ela cita “Ideologia” (1988), de Cazuza, dos famosos versos “meu partido é um coração partido”. “Temos cantado muito ultimamente. Que tristeza. Estamos partidos e desamparados”, conta a cantora, que acaba de lançar “Essa Vida que Não Para”, parceira com o músico Jahfa.

ESTALO

Provando que clássicos sempre guardam surpresas, André Prando teve uma revelação com um disco que é seu velho conhecido. Foi ouvindo “Coração Selvagem”, de Belchior, durante o isolamento em casa, que o músico teve o estalo de que “Clamor no Deserto”, composta pelo artista cearense em 1977, conversava diretamente com o atual momento, numa corda-bamba entre aflição e esperança. Quem ouve versos como “um novo momento precisa chegar/ eu sei que é difícil começar tudo de novo/ mas eu quero tentar” não tem dúvida do diálogo certeiro.

O insight levou Prando a finalizar duas músicas que estavam em processo de composição e, ao lado de uma versão da música de Belchior, nasceu o EP “Calmas Canções do Apocalipse”, disponível em streaming. Sem estúdio em casa, o artista capixaba abraçou a estética lo-fi no disco, que traz participações à distância na faixas “Gatinho na Internet” e “Dharma”. Esta última, parceria com Luiz Gabriel Lopes, mineiro integrante da banda Rosa Neon, foi a primeira a entrar no repertório.“Traz um bom sentimento de que as coisas que estamos passando serão, de alguma forma, aprendizado para nós e que ficaremos bem”, completa.

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Pop, MPB, rock. A lista de clássicos da música brasileira que, iluminadas pelos recentes acontecimentos, mostram novos contornos é interminável. Cada leitor certamente terá sua própria canção para somar às dicas de artistas e pesquisadores aqui citadas. E, para aqueles que ainda não conhecem alguma delas, há sempre tempo. Porque, como também definiu Italo Calvino naquele mesmo ensaio, os clássicos constituem uma riqueza para quem já tenha intimidade com eles, mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de apreciá-los pela primeira vez.

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