Publicado em 9 de novembro de 2020 às 08:44
A disseminação de sistemas de teletrabalho, desde o início da pandemia, alterou o cálculo de profissionais, corporações e países quanto a novas oportunidades de mobilidade global. >
Só no Brasil, de 13 a 19 de setembro, 10% da população ocupada, ou 7,8 milhões de trabalhadores, atuava profissionalmente via teletrabalho, conhecido como home office, segundo o IBGE. Em julho, eram 8,4 milhões de trabalhadores nessa situação.>
A ameaça sanitária e o fechamento de fronteiras também promoveram a repatriação de técnicos e executivos estrangeiros para seus países de origem, de onde seguiram atuando junto às ex-equipes, agora à distância.>
Com isso, a proliferação do home office, improvável em tamanha escala antes da Covid- 19, acelerou aspirações desenhadas para um futuro distante chamadas de "work from anywhere" (trabalho a partir de qualquer lugar), sem que esse salto fosse acompanhado dos marcos regulatórios correspondentes, levantando questões migratórias, trabalhistas, tributárias e até criminais.>
>
Entre as novas tendências estão dois modelos em que contratante e contratado estão em países diferentes: o chamado "virtual assignments" (contratação virtual de alguém em outro país) e o nomadismo digital, trabalho remoto desempenhado por viajantes que atuam remotamente de qualquer lugar do mundo via internet.>
"No momento em que você cruza fronteiras, envolve duas legislações trabalhistas e fiscais, e é preciso estabelecer parâmetros para que não haja dupla tributação da renda do trabalho", explica a advogada Diana Quintas, sócia da Fragomen, uma das maiores empresas de imigração do mundo.>
"Esse tipo de arranjo é uma tendência global, e os debates têm ocorrido intensamente", afirma ela, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional.>
Pesquisa de 2020 da consultoria norte-americana Airinc apontou que 64% das 155 empresas internacionais consul- tadas observaram um aumento da demanda de funcionários por arranjos de trabalho que passem longe dos escritórios.>
Só 3% delas, porém, tinha política de recursos humanos instituída para dar conta do novo cenário. E, para 58% des- sas corporações, a contrata- ção virtual (virtual assignment) deve aumentar já neste ano.>
De olho nessa tendência, em junho a Estônia se tornou o primeiro país a adotar uma legislação específica para que estrangeiros possam trabalhar a partir de seu território.>
Conhecido pelo alto grau de digitalização e pelo uso intensivo de blockchain (tecnologia que permite o registro de transações em criptomoedas), o país criou um visto para que pessoas possam viver um ano lá enquanto trabalham para outros países.>
A ideia circula naquele país desde 2018, quando a presidente Kersti Kaljulaid tuitou que "o trabalho não é um lugar aonde você vai, é o que você faz. Governos e Estados precisam se ajustar ou a nova geração digital vai pular fora".>
Em julho foi a vez de a ilha de Barbados, no Caribe, criar um visto temporário de um ano para permitir que estrangeiros residam à beira do mar turquesa enquanto trabalham para fora de suas fronteiras.>
"Sabemos que as pessoas estão trabalhando remotamente, às vezes em condições extremamente estressantes, com poucas opções de férias. E nosso visto de 12 meses permite a essas pessoas se realocar para trabalhar a partir de um dos destinos turísticos mais queridos do mundo", declarou a primeira-ministra da ilha, Mia Amor Mottley.>
Em agosto, foi a vez de as Bermudas, no Atlântico Norte, se abrirem para esse tipo de trabalhador remoto estrangeiro, criando visto e regulação específicas para recebê-los.>
O pagamento de uma taxa e a comprovação de renda estável são alguns dos pré-requisitos para a aprovação dos novos vistos nesses países, que buscam largar na frente na regulamentação de um arranjo de trabalho agora mais possível do que nunca e ao mesmo tempo aplacar as perdas significativas da indústria do turismo. Afinal, os novos moradores estrangeiros farão suas despesas cotidianas nos diversos setores do novo território.>
"Ainda é cedo para análises, mas, com essas iniciativas, esses países estão apontando para uma realidade que requer a regulamentação de questões de tributação, o que precisa ser discutido e requer cooperação entre países", diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP.>
"Trata-se da tentativa de adiantar um posicionamento que, cedo ou tarde, outros países devem adotar, não apenas graças aos avanços tecnológicos mas pela crescente aceitação social de que é possível assumir funções corporativas de maneira remota.">
Segundo Stuenkel, a pandemia forçou multinacionais a adaptar processos que antes envolviam cargos e funções estratégicas com viagens intercontinentais semanais.>
"Muitas empresas descobriram que a produção funcionava sem isso, o que mostra que algumas ineficiências serão reduzidas nas cadeias globais de produção em que havia inércia organizacional.">
Diana Quintas explica que funcionários deslocados internacionalmente recebem benefícios como ajuda com aluguel, pagamento da escola dos filhos ou mesmo apoio para a carreira do cônjuge.>
"De um dia para o outro, essas empresas tiveram de encarar que o trabalho remoto seria um fato e, com o tempo, perceberam que ele funcionava.">
"Hoje, as empresas estão questionando tanto a necessidade de retorno aos escritórios como do deslocamento de executivos e técnicos para filiais em outros países.">
Na prática, diz ela, as corporações deixaram de pagar esses benefícios ao expatriados durante a pandemia, o que gerou uma economia de recursos importante.>
O Brasil, que abriga cerca de 1 milhão de estrangeiros e tem cerca de 3 milhões de cidadãos brasileiros morando e trabalhando no exterior, ainda não deu sinais de movimentação em torno da mudança em curso.>
"Hoje, qualquer prestador de serviço para o Brasil precisa estar aqui para ir à Polícia Federal e fazer um registro que lhe permita entrar na folha de pagamento das empresas, quando isso deveria estar regulamentado de modo a ser feito remotamente", aponta.>
"Sem essa regulamentação, não é possível controlar quem trabalha para as empresas do Brasil", explica ela, evidenciando um dos aspectos da falta de normas a respeito do trabalho remoto internacional, seja de estrangeiros ou mesmo de brasileiros.>
A jornalista Yasmin Wilke, 28, mora em Estrasburgo, na França, com o cozinheiro Rodrigo Ueta e trabalha com cria- ção de produtos digitais para uma empresa com sede em São Paulo e um braço em Berlim.>
"Tenho muito medo de, acidentalmente, estar cometendo alguma fraude que eu não saiba, por isso sou muito cuidadosa com as minhas finanças", conta ela, que considera novas andanças globais com o companheiro, depois de uma passagem pela Nova Zelândia antes da França.>
"Posso manter meu trabalho se quisermos mudar pra Indonésia ou para o Japão", conta.>
"Sou geograficamente independente, na medida do possível", diz ela, apontando como maior empecilho dos planos de deslocamento do casal os cuidados com o gato Pudim, que os acompanha desde o Brasil e tem até passaporte europeu, mas, afirma, daria muito trabalho na mudança.>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta