Publicado em 7 de novembro de 2021 às 08:25
De um lado, aumento da inflação dos mais pobres, famílias em busca de restos de alimentos no lixo, novos empregos com salários menores. >
Do outro, maior concentração de renda, aumento no número de bilionários e recordes de desempenho nos mercados internacionais. >
Os dois cenários antagônicos marcam a distância de renda, desempenho e oportunidades entre a base e o topo da pirâmide de renda --um fosso que conseguiu crescer ainda mais durante a pandemia do novo coronavírus. >
No meio do ano, o Credit Suisse divulgou que a desigualdade havia crescido em 2020 e o 1% mais rico passou a concentrar metade da riqueza do país. >
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Nesse quesito, o Brasil só ficou atrás da Rússia, em um ranking de dez países. Um ano antes, os brasileiros mais ricos detinham 46,9% das riquezas --com a pandemia, esse percentual subiu para 49,6%. >
Um movimento semelhante ocorreu na maioria dos países analisados pela instituição. A fatia concentrada pelo topo caiu apenas na França e na Alemanha. >
Além disso, mesmo com os desafios impostos pela crise da pandemia e suas consequências na perda de fôlego da economia brasileira, o país ganhou 40 novos representantes na lista de bilionários de 2021 da revista Forbes. A publicação atribuiu esse aumento ao aquecimento do mercado de capitais, que favoreceu os mais ricos. >
"Durante a pandemia, o topo da renda conseguiu lucrar, apesar do momento de pessimismo econômico. Uma parte dessas pessoas sentiu a valorização do mercado de capitais, que muitas vezes tem um desempenho descolado da realidade concreta", afirma Jefferson Nascimento, coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil. >
Enquanto boa parte dos trabalhadores viu o mercado de trabalho derreter e passou a depender de programas temporários de transferência de recursos, como o auxílio emergencial, gigantes do varejo, empresas de ecommerce e farmacêuticas aumentaram seus lucros no período, o que se refletiu na valorização dos ativos dos bilionários. >
Jeff Bezos, presidente da Amazon] é mais rico hoje do que antes da pandemia, lembra Nascimento. >
"Como vivemos um período de baixa de juros no mundo inteiro, isso tem consequência a elevação do valor de ações", afirma Matias Cardomingo, pesquisador do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades). >
"Vimos Bolsas subindo no mundo todo, com incentivos monetários. Passado o primeiro choque, quando tudo caiu, a recuperação não tardou a acontecer para os ricos." >
Além disso, parte dos mais ricos está ligada a setores que não foram diretamente afetados pela dinâmica da pandemia, diz o pesquisador. >
"Os serviços de maior qualificação tiveram até uma demanda aumentada, como consultoria estratégica e ensino a distância, e isso se opõe ao que estava acontecendo na base, nos serviços com mão de obra mais barata." >
Nascimento acrescenta que, além do investimento em áreas "oportunistas", outro motivo para o aumento da riqueza dos mais ricos tem relação com a maior facilidade de diversificação de investimentos e negócios que os donos das grandes fortunas têm, o que acaba funcionando como um colchão de proteção. >
"Considerando-se a fortuna dos bilionários medida pela Forbes em fevereiro de 2020 como base, a riqueza dos mais abonados caiu de 100% para 70% no começo da pandemia, em março e abril do ano passado. Mas em novembro de 2020, eles já tinham recuperado o que perderam, enquanto a maior parte das pessoas estava com medo da Covid-19 e ainda nem tínhamos vacinas." >
O relatório publicado pela Oxfam no começo do ano apontou que a pandemia gerou nove novos bilionários ligados ao setor farmacêutico --alguns deles tinham relação com as empresas que produziram vacinas contra a Covid-19. >
Como parte do desenvolvimento dos imunizantes contou com fundos públicos, para pesquisas e apoio de capital, é como se os governos tivessem colaborado indiretamente para fazer dessas pessoas ainda mais ricas. >
Ao mesmo tempo, o padrão de vida médio dos brasileiros --medido pelo PIB (Produto Interno Bruto) per capita-- deve ficar praticamente estagnado pelas próximas quatro décadas, de acordo com uma projeção da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). >
A organização, conhecida como o clube dos países ricos, também estima uma queda no número de brasileiros ativos no mercado de trabalho e na taxa de ocupação do país nesse período. >
A pandemia afetou os planos da família de Vagner Benedito, 67. Agora ele vai ao Mercado Municipal de São Paulo (região central da capital) em busca de peixes e pedaços de carne que seriam descartados pelos comerciantes. >
Desempregado há mais de um ano, ele não consegue mais comprar comida como antes. "Venho da Vila Prudente [na zona leste] até a região central em busca de algo diferente para levar para casa. A gente prepara os alimentos com cuidado e não tenho vergonha de dizer que sigo vindo buscar doações, por a vida ter ficado cara demais. Tento não reclamar, mas não precisava ser assim." >
Apesar das dificuldades dos últimos meses, Benedito ainda diz acreditar que a vida pode voltar a melhorar. Ele tenta retornar ao mercado de trabalho, apesar de ver as poucas oportunidades que encontra serem preenchidas por candidatos mais jovens. >
"O que me move é o desejo de que minha filha, que desenha como profissional mesmo sem nunca ter estudado desenho, possa ter uma vida melhor." >
As estimativas mais recentes, de 2020, apontam que o aumento da fome também é preocupante, lembra Nascimento, com 55% da população vivendo em insegurança alimentar (sem ter garantia de que terá o que comer) e 9% com fome --uma situação que retrocede ao patamar de 2004. >
É como se tivessem ocorridos duas pandemias ao mesmo tempo: uma que serviu para destruir empregos de menor remuneração, rebaixar remunerações e afetar preços de produtos básicos para a sobrevivência dos mais pobres, enquanto outra que ajudou os ricos a ficarem ainda mais ricos. >
Para Cardomingo, a saída da pandemia vai impor desafios ainda maiores que os anteriores, para a redução da desigualdade. >
"No mundo, o que se discute é uma ampliação de serviços públicos essenciais e isso se divide em identificar a importância da educação e também na de serviços de cuidado. Isso está ocorrendo tanto nos Estados Unidos, que agora falam em planos de zerar a pobreza infantil em um ano, quanto na Europa." >
"A nossa resposta deveria se dar por meio da reforma tributária, como parte do diagnóstico de que os super-ricos estão ainda mais ricos, enquanto os outros estão lutando pela sobrevivência na base, e os primeiros deveriam contribuir mais para a sociedade, pagando mais impostos", defende Nascimento. >
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